Diário de quarentena: registros da (des)igualdade  

22/05/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

As mídias sociais informam, assustam, desinformam, noticiam, comunicam, levam entretenimento e, hoje, é possível acompanhar registros em diferentes lugares do Brasil e do mundo. Também é por meio delas que a publicidade vem se transformando, muitas vezes velada em rotinas roteirizadas. Hoje, 17 de maio de 2020, passados mais de 60 dias do início da quarentena, acordamos com a notícia da descoberta de um possível “anticorpo” ao covid-19, mas a notícia positiva acompanhava o alerta de que a vacina demoraria a chegar ao Brasil, tendo em vista a postura assumida pela “presidência” do País. Além das redes sociais, em que cada um é seu próprio diretor de cena, a televisão ainda marca presença, levando a tradicional distração às residências e o jornalismo na mesma estrutura mantida há anos.

O texto de hoje pretende traz algumas palavras acerca da forma como esse período de quarentena/isolamento social vem sendo noticiado, bem como seus reflexos (des)iguais, palavras essas provocadas por uma manifestação midiática: a falsa ideia de que o vírus atualmente enfrentado atinge a todos igualmente, sem distinção de gênero, raça e condição social. Numa determinada segunda-feira, um programa de televisão trouxe à programação um cantor, que havia tido “a graça” da cura do chamado corona vírus. A ideia, com o programa, era contar uma história de superação, de como o vírus poderia sim ser vencido.

Em outra plataforma de comunicação, o Twitter, na última sexta-feira, dia 15 de maio, o jornalista Raull Santiago noticiou logo cedo que o Complexo do Alemão estava passando por mais um episódio de enfrentamento entre polícia e moradores; a mensagem dizia assim: “com pandemia global e tudo, assim começou o dia aqui no Complexo do Alemão. Operação da polícia, carros blindados e muitos tiros. Terrível demais, um absurdo tremendo. Força moradores.”, seguida de áudios que ratificavam o texto[1]. Durante a tarde, vídeos foram sendo publicados, que demonstravam muita destruição e terror.

Na mesma rede social, há alguns dias vem sendo reproduzida a campanha #adiaenem, com o intuito de fazer com que o Ministério da Educação abra os olhos à realidade de grande parte dos brasileiros que serão submetidos ao Exame Nacional do Ensino Médio, em que a falta(inexistência) de acesso internet para o estudo online é o menor dos problemas. Da mesma forma, a demora na liberação do auxílio emergencial, as filas em postos de saúde, as aglomerações obrigatórias em zonas de pobreza, nada diferente do que as ruas nos mostram: uma população que depende das ajudas arrecadas em sinaleiras, dentre elas, boa parte composta por crianças.

Vamos nos situar: começamos esse texto com mídias sociais e seus contrapontos à mídia tradicional (televisão); falamos das notícias sobre o covid-19 e como as diferentes realidades vêm sendo transmitidas. Mas qual a relação entre esses pontos e a sociedade de consumo? Outros textos aqui da coluna trataram da publicidade, com textos que tratam, inclusive, acerca da publicidade voltada ao público infantil.

Fato é que a publicidade – hoje acessível de “qualquer” aparelho celular, têm se direcionado à influência, a partir da percepção de que cada vez mais as pessoas são influenciadas pelo que veem na internet. E isso não se refere somente ao consumo; ideias são propagadas, opiniões, “fake news”, etc. E, não diferente disso, propagou-se a ideia de que o vírus atinge a todos igualmente, uma falsa ideia de igualdade e união. Nos dizem “estamos juntos”, mas devemos perguntar: “será mesmo?”.

O texto “El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho”, publicado no volume 8 da REDES – Revista Eletrônica Direito e Sociedade[2], refere o que se pode chamar “dever imperativo ao Estado”, no sentido de que identificar pessoas em situação de vulnerabilidade e destinar a elas ações que, de fato, se adequem a essa realidade é responsabilidade da atividade estatal. Trazendo para a realidade objeto do presente texto, significaria dizer que o Estado não pode fechar os olhos para as diferentes situações vividas pelos brasileiros, ignorando aqueles que vivem em condições de extrema vulnerabilidade e desigualdade.

Em novembro de 2019, o IBGE noticiou o número de pessoas vivendo em condição de extrema pobreza no Brasil, segundo o critério adotado pelo Banco Mundial. O número, em 2018, era de 13,5 milhões de pessoas vivendo com uma renda mensal inferior a R$ 145,00 e, ainda, em torno de um quarto de brasileiros vivendo com uma renda inferior a R$ 420,00[3]. O mesmo texto extraído da REDES ensina que não apenas a renda mensal deve ser avaliada para definir a condição de pobreza, mas principalmente a restrição de acesso às oportunidades. Desses números, diversas informações podem ser extraídas, como aumento da desigualdade, impactos de crises econômicas, etc. Mas, no cenário atual, esses números “gritam”: os impactos do vírus não são democráticos.

Para encerrar, precisamos dizer o óbvio e o não tão óbvio. O primeiro é que, como registrou George Orwell na obra “A Revolução dos Bichos”, de 1945, pessoas em condições diferentes, precisam de tratamentos diferentes; trazendo para a realidade: as ações governamentais não podem fechar os olhos para as desigualdades enfrentadas no Brasil, o ENEM, a atuação nas Comunidades, a mídia de identificação, não podem agir como se a realidade de poucos substituísse a realidade cruel de muitos. O não tão óbvio, por sua vez, é que as políticas públicas com o intuito de dirimir as mazelas enfrentadas pela população devem ser pensadas por e para as pessoas que delas necessitam, ou seja, a essas pessoas deve ser dado, em primeiro lugar, espaço de fala e de pensamento. Essa ideia foi a mim introduzida na leitura do livro “Mulheres, Cultura e Política”, de Angela Davis, uma coletânea de textos e manifestações da ativista publicados entre 1984 e 1989, mas ainda tão atuais.

 

Notas e Referências

[1] https://twitter.com/raullsantiago

[2] SOSA, Guillermina Leontina. El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho. Revista REDES - ISSN 2318-8081. V. 8. N. 2. Canoas: Unilasalle, 2020.

[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25882-extrema-pobreza-atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivel-em-7-anos

 

Imagem Ilustrativa do Post: Covid-19 // Foto de: F. Nestares P. // Sem alterações

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