Por Fernanda Frizzo Bragato – 06/03/2017
O diálogo intercultural aponta tanto para a admissão quanto para o compromisso com a construção de um mundo pluriversal e, por isso, deve ser epistemológica e ontologicamente um diálogo francamente global. É o que sugere Dussel (2015, p. 81), ao mesmo tempo em que nos lembra que a desproporção no exercício do poder pelo Norte sobre o Sul torna necessário que as comunidades pós-coloniais estabeleçam entre si tal diálogo. Isso não é tão fácil quanto parece. O Sul é historicamente um espaço onde a produção do conhecimento é amplamente restrita ao paradigma eurocêntrico. Típico aqui é uma lógica de dependência epistêmica que dificulta a construção de autênticos discursos de legitimação para nossas demandas peculiares e a valorização de nossas experiências culturais e que acaba reproduzindo modelos de conhecimento pouco responsivos aos nossos processos de constituição social, econômica, política e cultural. Somos educados a obedecer e a (mal) copiar.
O domínio do paradigma eurocêntrico nas ciências sociais explica o distanciamento entre os pensadores e políticos do Sul Global, que historicamente favoreceram suas respectivas relações com o Ocidente (Europa e Estados Unidos). O diálogo sobre problemas e desafios comuns aos povos e sociedades do Sul, em grande parte derivado do seu passado colonial, mesmo que necessário, ainda é parco. No entanto, as perspectivas desse diálogo serão mais promissoras se as lacunas da perspectiva eurocêntrica forem finalmente reconhecidas e loci alternativos de produção epistemológica empreenderem a tarefa de interpretar e falar dessas realidades marginais no marco do que foi chamado, a partir da obra de Anibal Quijano, Walter Mignolo, Nelson Maldonado-Torres e Catherine Walsh, de descolonialidade do conhecimento.
O eurocentrismo é um conceito que expressa a racionalidade específica do padrão global de poder estabelecido na modernidade através das relações coloniais (Quijano, 2005). Trata-se de uma perspectiva binária e dualista das relações intersubjetivas e culturais entre a Europa e o resto do mundo, codificada num conjunto de categorias (Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico / mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno). Essas categorias foram impostas como globalmente hegemônicas no mesmo fluxo de dominação colonial da Europa sobre o resto do mundo. Sob o pretexto de que todos os mitos e histórias religiosas são irracionais, a modernidade negou qualquer validade aos relatos filosóficos das culturas do Sul. O eurocentrismo tornou-se uma perspectiva hegemônica da produção do conhecimento e baseia-se em dois mitos principais: a história da civilização humana é um caminho linear para o progresso cujo apogeu é a Europa; as diferenças entre a Europa e a não-Europa são naturais e não resultantes das relações assimétricas de poder (QUIJANO, 2005).
O fim das administrações coloniais e o surgimento dos Estados-nação na periferia não significam, contudo, que vivamos num mundo descolonizado e pós-colonial. A colonialidade e o colonialismo não são fenômenos ultrapassados do passado histórico, mas marcas contemporâneas que permanecem recalcadas. No entanto, colonialidade não é o mesmo que colonialismo. Como Maldonado-Torres (2007, p. 243) explica, “o colonialismo denota uma relação política e econômica em que a soberania de uma nação ou de um povo repousa sobre o poder de outra nação, o que torna essa nação um império”. E este foi um processo eminentemente moderno, que tornou possível a emergência do sistema-mundo global. Por outro lado, “colonialidade refere-se a padrões de poder de longa data que surgiram como resultado do colonialismo, mas que definem a cultura, o trabalho, as relações intersubjetivas e a produção de conhecimento muito além dos limites rígidos das administrações coloniais".
Mesmo que o colonialismo tenha praticamente chegado ao fim, a colonialidade sobrevive a ele. Os processos de exclusão social, que geram pobreza e marginalização, têm relação direta com a colonialidade, na medida em que o colonialismo foi legitimado e consolidado através de um discurso de superioridade europeu-ocidental que desumanizou seres humanos e desprezou o conhecimento e as formas de organização social e expressão cultural de outros povos. A colonialidade ainda está presente não só nas relações políticas, sociais e econômicas globais, mas também na maneira como se constrói e se adere ao conhecimento.
A giro descolonial propõe uma crítica radical ao projeto euromoderno a partir das experiências do colonialismo. Reconhece que a euromodernidade é marcada pelo avanço da ciência e das ideias liberais, ao mesmo tempo em que é também o sinal da escravidão, do extermínio de povos, do totalitarismo, do aprofundamento da desigualdade social e da pobreza extrema. Sob a ótica descolonial, a modernidade é um fenômeno global cujo lado obscuro é a colonialidade. É a outra face, que permanece invisível para a maioria de nós, mas que foi a condição de possibilidade para a centralidade e o poder do Ocidente.
Num mundo onde a modernidade está associada a ideias como racionalismo, progresso, ciência, todas as outras formas de conhecimento são desacreditadas como um sinal de primitividade e atraso, não há possibilidade de diálogo simétrico. O conhecimento é hierárquico e, portanto, aqueles que são considerados superiores se impõem. Há supressão do diálogo. Não há diálogo intercultural.
É verdade que desde que o Ocidente reivindicou sua posição central e transformou o resto do mundo em sua periferia, as culturas não-ocidentais foram colonizadas e, como resultado, excluídas, desprezadas, negadas e ignoradas, mas não aniquiladas. Tal desprezo não as impediu de continuar em silêncio, sobrevivendo na escuridão, como negação da exterioridade. Estas culturas do Sul têm sobrevivido como a alteridade que lentamente reaparece das cinzas do colonialismo. (Dussel, 2015: 282)
Para um diálogo fértil é necessário, como aponta Dussel (2015), que os pensadores do Sul discutam profundamente e por muito tempo quais são os problemas, as questões, as hipóteses de sua reflexão. Mas é difícil ter um verdadeiro diálogo num contexto dependente e colonial. A perspectiva teórica descolonial adquiriu relevância acadêmica nas últimas décadas, porque propõe uma ruptura com as formas dominantes de entendimento e de relação com o mundo, reivindicando a necessidade de um processo de descolonização em diferentes níveis disciplinares e sociais. Esse diálogo implica a desobediência epistêmica contra os regimes coloniais de conhecimento: por um lado, desafia a hegemonia das grandes narrativas da euromodernidade; por outro, coloca as próprias perguntas nas fronteiras dos sistemas de pensamento até a possibilidade de modos de pensar não-eurocêntricos.
No que diz respeito às relações e aos problemas específicos do Sul, o pensamento descolonial tem muito a contribuir. O giro descolonial propõe uma alternativa ao discurso hegemônico para ampliar o conhecimento com outra perspectiva: aquela de quem sempre foi apenas objeto de conhecimento e não seu protagonista. A proposta é abrir novas possibilidades de conhecimento, de modo a liberá-lo da necessidade de se referir a um locus de enunciação privilegiado e pré-concebido como condição para sua legitimidade. Ele procura "descolonizar" o conhecimento, a fim de permitir a inclusão de outras falas, diferentes visões de mundo, histórias esquecidas, outros valores que não apenas os ocidentais. Ou seja, procura diversificar o locus epistemológico da enunciação, substituindo-o por um campo interdiscursivo, intercultural e complexo. É preciso ousar.
E o que poderá resultar desse diálogo? Dussel propõe o conceito de transmodernidade como o horizonte que resultará desse diálogo intercultural simétrico que se estabelecerá entre as culturas que, como exterioridade, estão irrompendo. Trata-se de uma nova idade, para além da modernidade, que se anuncia diante do esgotamento do eurocentrismo, do capitalismo e do colonialismo, todos intrínsecos ao projeto euromoderno. Esta nova idade se constituirá como um pluriverso onde cada cultura dialogará com as outras desde uma semelhança comum, recriando continuamente sua própria distinção analógica, vertendo-se em um espaço dialógico, mutuamente criativo. Dussel nos exorta a acreditar que, graças às novas relações econômicas, o capitalismo será superado porque as exigências ecológicas e da vida da maioria da população da terra não mais permitirão um sistema baseado na exploração dos mais vulneráveis e da natureza (Dussel, 2015: 100). A pluriversidade seria o resultado de um diálogo intercultural autêntico que deve levar claramente em conta as assimetrias de poder. (Dussel, 2015: 283)
Num mundo de desesperança, precisamos continuar caminhando e a descolonialidade tem se apresentado como um caminho largo e promissor por onde andar.
Notas e Referências:
DUSSEL, Enrique. Filosofías de Sur. Descolonización y Transmodernidad. Mexico, D.F.: Akal, 2015.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (ed.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007. pp.127-167.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, 2005. p.227-278.
. Fernanda Fizzo Bragato é graduada em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS e Pós-doutora no Birkbeck College da Universidade de Londres. Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), ambos da Unisinos. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br
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