DIÁLOGO COMO FIEL DA BALANÇA – MUDANÇA DE PARADIGMA EM FACE DO COVID-19

09/04/2020

Certa feita, há aproximadamente 1 ano, me perguntaram em um programa de rádio qual deveria ser o caminho para um consumidor insatisfeito com a prestação de serviço ineficiente; se o ideal seria procurar os Procons, Juizados Especiais ou Justiça Comum. A minha resposta foi direta e enfática: como primeira opção, nenhum deles.

Muitas vezes nos esquecemos de que o Direito tem sua premissa no diálogo. Temos a visão equivocada e diminuta de que litigar sempre foi a saída. Italo Andolina[1] há muito já previa o dano marginal de um processo, isto é, o dano inerente à própria demora do curso processual sem uma solução definitiva para as partes, gerando angústia para os envolvidos, independentemente de quem seria o vencedor da demanda.

Dito isto, não podemos negar que na situação de pandemia a qual vivemos há perdas amplas e irrestritas para todas as partes de uma relação jurídica, não somente afetiva e espiritual, assim como de ordem patrimonial e em todas as esferas (administrativa, cível ou até mesmo de consumo).

Conciliar é ceder, dialogar. E, o que era faculdade entre as partes, na prática, tornar-se-á imperativo. Explico. Não se desconhece o princípio constitucional do acesso à justiça, nem tampouco o caráter incentivador (não obrigatório) de métodos de solução consensual de conflitos do Código de Processo Civil, também presente no Código de Defesa do Consumidor.

Contudo, a leitura pelo magistrado será diferente. Assim como já o é na prática forense, em algumas situações ( ex.: o magistrado, ao aferir a quantificação do valor do dano moral, analisa se as partes buscaram compor administrativamente a demanda antes de procurar o Poder Judiciário[2]); no pós-Covid -19, a tentativa de resolução administrativa antes de ajuizada a demanda será o ponto de equilíbrio, decorrente da própria boa-fé entre as partes.

Rememora-se as lições de Karl Larenz[3] de que o princípio da boa-fé[4][5]  significa que cada um deve guardar fidelidade com a palavra dada e não frustrar a confiança ou abusar dela, já que esta forma é a base indispensável das relações humanas.

Serão levadas em consideração também as já conhecidas grandes funções da boa-fé na fiscalização do cumprimento das obrigações: interpretação das regras pactuadas (função interpretativa[6]), elaboração de novas normas de conduta (função integrativa[7]) e limitação[8] dos direitos subjetivos (função de controle em face do abuso de direito).

Larenz[9] prossegue explanando que, para aplicação da boa-fé, cabe ao juízo o viés interpretativo e valorativo das exigências geralmente vigentes de justiça.

O ideal de justiça é mutável e circunstanciado. Aqui, será valorado pela capacidade de conciliação/negociação entre as partes em todas as esferas contratuais, devidamente cotejada pelo magistrado da causa.

Aliás, o senso de responsabilidade social e processual de cada cidadão ficou mais acentuado com a Covid-19. Antes mesmo do Direito, há lição de Kant[10] o qual já prelecionava nos seus escritos acerca o imperativo categórico moral, no qual o cidadão age, de tal forma, que sua ação possa se tornar paradigma universal para todos.

Venturis ventis.

Na área de consumo, o cidadão tem inúmeras opções para fazer jus aos seus direitos, através do diálogo. Seja pelo call center, pelo chat online, pelas Câmaras Privadas de Conciliação ou até mesmo pela Plataforma Consumidor.gov.br[11] (alternativas que você não precisa sair de sua casa) há variadas formas de solucionar o seu problema.

Em síntese: seja de qual forma for, a comunicação entre as partes sempre foi e sempre será o melhor caminho para resolver seu conflito. Alçada como viés optativo, alcançará dimensão superior em tempos pós-Covid-19, sendo a tentativa de resolução extrajudicial o fiel da balança para dirimir inúmeras questões contratuais de uma relação jurídica.

É tempo de reflexão e mudança!

 

Notas e Referências

[1] Confira: ANDOLINA, Italo. “Cognizione” ed “esecuzione forzata” nel sistema della tutela giurisdizionale. Milano: Giuffrè, 1983.p 28 e ss.

[2] Confira: APELAÇÃO CIVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. FORNECIMENTO DE SINAL DE INTERNET INFERIOR AO CONTRATADO. Serviço de Internet que seria disponibilizado ao consumidor pela empresa de telefonia com velocidade de 01 megabyte por segundo. Velocidade de conexão muito abaixo do contratado, conforme testes colacionados com a inicial da ação, os quais não foram impugnados de maneira fundada e específica pela fornecedora. DANO MORAL. Em que pese o simples descumprimento contratual, por si só, não ser suficiente à caracterização de dano moral indenizável, no caso, o dano decorre da injustificada privação de serviços hodiernamente considerados essenciais em razão do fornecimento de sinal mais fraco do que o contratado. Caso em que a parte autora declinou na inicial quatro números de protocolos abertos junto ao Call Center / SAC da fornecedora, com vistas a resolver o problema na seara administrativa. Situação que não pode ser equiparada a mero dissabor ou vicissitude próprios do cotidiano. (TJRS/ Processo nº 70079938577).

[3] Confira:LARENZ, Karl, Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Brinz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 142 e ss.

[4] Há muito foi pontuada como princípio geral, consignado na LCCG portuguesa, nos seguintes termos: “são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé” (art.º 15.º). Mais que isso: o art.º 16.º da mesma norma pontua que na aplicação do artigo 15,  “devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente: a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis; b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.”

[5] Sobre o tema, o Professor João Calvão da Silva entende que no cumprimento das obrigações, as partes devem se ater a correção, a lealdade, a lisura e a honestidade próprias de pessoas de bem, inerentes à cooperação e solidariedade contratual a que reciprocamente se vincularam. Confira: Silva, João Calvão da. Não Cumprimento das Obrigações, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977. Vol. III – Direito das Obrigações. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 483 e ss.

[6] Confira artigo 113, do CC: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

[7] Confira artigo 422, do CC: Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

[8] Confira artigo 187, do CC: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

[9] Vide  LARENZ, Karl, Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Brinz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 142 e ss.

[10] Nos dizeres de Kant: “Finalmente, há um imperativo que, sem tomar por fundamento como condição qualquer outra intenção a se alcançar por um certo comportamento, comanda imediatamente esse comportamento. Esse imperativo é categórico. Ele não concerne à matéria da ação e ao que deve resultar dela, mas à forma e o princípio do qual ela própria se segue, e o que há de essencialmente bom na mesma consiste na atitude, o resultado podendo ser o que quiser. A este imperativo pode se chamar de imperativo da moralidade.” Confira: KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução, introdução e notas por Guido de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarola, 2009.p.197 e ss.

[11] Entendemos que a próxima etapa passa pela a adoção da arbitragem em conflitos de consumo. Certeza da solução em 30 dias, celeridade, expertise do julgador, comodidade ao consumidor e credibilidade do fornecedor. Sobre o tema, confira: Barros, João Pedro Leite. Arbitragem Online em Conflitos de Consumo. São Paulo: Editora Tirant Lo Blanch, 2019.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: Dun.can // Sem alterações

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