DIA MUNDIAL DE COMBATE AO TRABALHO INFANTIL: A EXPLORAÇÃO DE ADOLESCENTES E JOVENS NO TRÁFICO DE DROGAS E A CONTRADIÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

08/06/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O próximo dia de 12 de junho será o dia mundial do combate ao trabalho infantil, data que foi instituída pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Neste âmbito, a convenção 182 da OIT trata das proibições às piores formas de trabalho infantil, dentre elas, o trabalho de crianças e adolescentes no tráfico de drogas. O Brasil se tornou signatário dessa convenção a partir do decreto nº 3.597 de 12 de setembro de 2000 que depois foi ratificado pelo decreto nº 6.481 de 12 de junho de 2008, porém, o que a realidade nos mostra é que os adolescentes trabalhadores do tráfico de drogas são cada dia mais criminalizados e responsabilizados por todo mercado que envolve a produção, distribuição e comercialização de drogas ilícitas. Dessa maneira, é fundamental que aprofundemos o debate sobre essa problemática, tratando a questão com a complexidade necessária.

O tráfico de drogas pode ser descrito como algo composto por diferentes escalas variáveis, que articula o comércio no atacado e no varejo, além de apresentar variações entre as diferentes funções dos trabalhadores, o que implica em diferenças no lucro, no risco e nas negociações (Hirata & Grilo, 2017). E, diante da lucratividade desse tipo de atividade, ela está longe de ser considerada um “problema social”, mas, ao contrário, torna-se um movimento funcional ao capitalismo. Teixeira (2016) exemplifica bem isso ao trazer a estimativa de que o mercado ilegal de maconha, cocaína, crack e ecstasy fatura cerca de 14,5 bilhões de reais por ano, sem ainda levar em consideração os imbricamentos disso com o mercado financeiro, através da lavagem de dinheiro, e outros ramos da economia, como a indústria bélica.

Dentro desse cenário, o adolescente trabalhador do tráfico segue uma lógica semelhante aos trabalhadores do mercado de trabalho formal, onde ambos têm sua força de trabalho superexplorada e não têm acesso ao lucro produzido. Porém, no tráfico, o trabalho se torna ainda mais danoso por conta do risco que é trazido devido à ilegalidade, fazendo com quem esses adolescentes estejam mais sujeitos a diversos tipos de violência, principalmente à privação de liberdade e ao homicídio. Fefferman (2008) reforça que o jovem trabalhador do tráfico de drogas não entra no mundo do crime, mas, sim, no mundo do trabalho, mesmo que esse trabalho seja fora da lei.

Logo, o que se evidencia é que o mercado de drogas ilícitas produz riqueza a partir da ilegalidade, o que promove o assassinato de milhares de adolescentes e jovens negros todos os anos, mas que, de maneira geral, segue o modo capitalista das relações de trabalho e expropriação da riqueza produzida pelos trabalhadores (Feffermann, 2008; Costa, Mendes & Guedes, 2020).  E apesar desses adolescentes não fazerem parte dos grupos que se apropriam das riquezas produzidas com o mercado ilegal de drogas, é a eles que é atribuída a personificação do sujeito violento, fazendo que com adolescentes e jovens pretos das periferias sejam a maioria das vítimas da violência letal e os principais alvos das ações policiais, do sistema punitivo brasileiro e das políticas que intensificam a retirada de direitos sociais e trabalhistas.

Logo, quem é esse jovem trabalhador do tráfico de drogas? De acordo com a pesquisa realizada pelo Observatório das Favelas, o perfil desses trabalhadores é de homens, negros, oriundos de famílias numerosas e chefiadas por mulheres, com baixo nível socioeconômico, além de ter como marca o alto índice de evasão escolar e de possuírem experiências anteriores no mercado de trabalho informal e precarizado. Ainda neste âmbito, a maioria dos entrevistados tinha entre 16 e 24 anos, porém 54,4% deles ingressou no tráfico de drogas quando tinha entre 13 e 15 anos de idade (Willadino, Nascimento & Silva, 2018).

Ademais, foi constatado que a maioria desses adolescentes e jovens desempenhavam a função de “vapor”, que seria o vendedor no varejo de drogas (25,7%), e soldado, que são aqueles que estão na linha de frente nos confrontos armados (24,5%), trabalhavam mais de 10 horas por dia (62,9%) e não tinham um dia de folga sequer (48,3%). Sobre os rendimentos, 51,7% disse receber entre 1000 e 3000 reais e 25,6% afirmou receber até 1000 reais (Willadino, Nascimento & Silva, 2018).

Constata-se, então, que a absorção de adolescente e jovens como trabalhadores no tráfico também ganha força a partir de uma realidade de desemprego estrutural e intensificação de retirada de direitos sociais e trabalhistas. Ou seja, o trabalho formal perde, cada dia mais, a capacidade de absorver uma parcela significativa desses adolescentes e jovens mais pobres, logo, o tráfico de drogas se torna uma opção viável e surge como oportunidade de trabalho como qualquer outra indústria, sendo capaz de empregar uma quantidade significativa de adolescentes e jovens, que podem tirar dessa atividade laboral o seu sustento (Feffermann, 2017).

Apesar de se observar as condições de superexploração desses sujeitos no trabalho dentro do mercado ilegal de drogas e deles não serem os detentores dos meios de produção que faz com que esse mercado se desenvolva, são esses adolescentes e jovens que compõem a maioria das pessoas privadas de liberdade no Brasil. Segundo os dados do INFOPEN - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2017), existiam 176.691 pessoas presas no Brasil por crimes associados ao tráfico de drogas, o que corresponde a 28% do total de pessoas maiores de 18 anos presas. Desse total, 30% possuem entre 18 e 24 anos de idade e 25% têm entre 25 e 29 anos. Além disso, 64% são negras e 51% não chegaram a concluir o ensino fundamental. Acerca dos adolescentes, um estudo realizado em 2016 pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) mostra que 59,08% dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa são pretos e 22% estão em privação ou restrição de liberdade por ato infracional análogo ao tráfico de drogas.

Diante do exposto, percebe-se que há uma intencionalidade por trás do discurso hegemônico que atribui a adolescentes e jovens negros das periferias a culpa pelo problema da segurança pública. Designar uma culpa pelo problema da violência a corpos negros e periférico não se dá de maneira aleatória, isso faz parte da nossa estrutura social racista, que se consolidou a partir do processo de formação social do Brasil, marcado pelo escravismo colonial, e que se reproduz dentro do modo de produção capitalista de modelo dependente que temos hoje. O racismo estrutura toda a ordem social vigente e, por consequência, suas relações (Almeida, 2018; Moura, 1983).

Sendo assim, o fato do Brasil ter se comprometido com a OIT para atuar no enfrentamento às piores formas de trabalho infantil nunca trouxe nenhum tipo de melhoria nas condições de vida dos adolescentes trabalhadores do tráfico. Ao contrário, a política de “guerra às drogas” tem se intensificado e vem atuando no aumento das violências e violações de direitos contra adolescentes e jovens das periferias, garantindo a manutenção de uma ordem social violenta, que condena o trabalho de adolescentes e jovens no mercado de drogas ilícitas, mas que se utiliza justamente da violência por parte do Estado como forma de repressão a esses sujeitos.

Ao passo que o Estado brasileiro criminaliza e oferece cada vez mais repressão violenta contra adolescente e jovens das periferias, o chefe do executivo brasileiro reforça o estereótipo do trabalho como antídoto à marginalidade e defende o trabalho infantil¹, mesmo que exista evidências que comprovem que o trabalho precoce traz graves prejuízos para o desenvolvimento de crianças e adolescentes e que a própria OIT reforce isso na convecção que o Brasil assinou. Ou seja, o país incentiva que crianças e adolescentes se insiram no trabalho em suas condições mais precárias e ao mesmo tempo legaliza a violência contra esses sujeitos, criminalizando territórios para que, assim, o extermínio de pessoas pretas e pobres seja cada vez mais naturalizado.

Por fim, é preciso ressaltar que essa discussão não tem o objetivo de romantizar o trabalho no tráfico de drogas, mas, sim, de situar o mercado de drogas ilícitas como algo fundamental para reprodução do modo de vida capitalista e que, para sustentar seu valor, utiliza-se da mão de obra de adolescentes e jovens periféricos, tratados como sujeitos completamente descartáveis e que a atribuição do estereótipo de sujeitos violentos, a intensificação da retirada de direitos e o fomento à política de “guerra às drogas” não se dão por caso, senão que conferem valor ao produto final desse mercado.

 

Notas e Referências

¹ https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-defende-trabalho-infantil-sob-aplausos-de-empresarios/

Almeida, S. L. (2018). O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento.

Brasil. Ministério dos Direitos Humanos. (2018). Levantamento Anual Sinase 2016. Brasília, Brasil: Ministério dos Direitos Humanos.

Costa, P. H. A., Mendes, K. T., & Guedes, I. O. (no prelo). Juventude brasileira e o trabalho no tráfico de drogas: pauperização, precarização e superexploração. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia.

Feffermann, M. (2008). Cotidiano dos jovens trabalhadores do tráfico. Segurança Urbana e Juventude, 1(2), 1-14.

Feffermann, M. (2017). O jovem/adolescente “trabalhador” do tráfico de drogas. In Figueiredo, R, Feffermann, M, & Adorno, R. (Orgs.). Drogas & Sociedade Contemporânea: perspectiva além do proibicionismo. São Paulo: Instituto de Saúde.

Hirata, D. V., & Grillo, C. C. (2017). Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: Perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tempo Social, 29(2), 75-98.

Ministério da Justiça e Segurança Pública. (2017). Levantamento Nacional de informações penitenciárias/INFOPEN. Brasília, Brasil: Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Moura, C. (1983). Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. São Paulo: IBEA Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas.

Teixeira, L. S. (2016). Impacto econômico da legalização das drogas no Brasil. Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Brasília, Brasil: Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema10/impacto-economico-da-legalizacao-das-drogas-no-brasil

Willadino, R., Nascimento, R. C., & Silva, J. S., coordenadores. (2018). Novas configurações das redes criminosas após a implantação das UPPs. Rio de Janeiro, Brasil: Observatório de Favelas.

 

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