“DEVOLUÇÃO” DE CRIANÇAS ADOTADAS: um olhar interdisciplinar entre o direito e a psicanálise sobre as motivações dos pretendentes à adoção  

15/12/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

O presente estudo trata-se de uma pesquisa bibliográfica sob uma perspectiva interdisciplinar entre o direito e a psicanálise a fim de abordar as motivações que mobilizam os candidatos à adoção e que devem ser sopesadas a fim de evitar-se a “devolução” da criança adotada. Parte-se do entendimento de que todo sujeito, de origem biológica ou adotiva, precisa ser adotado no desejo dos pais que o escolheu enquanto filho. Em relação à filiação adotiva, sabe-se que a mesma acompanha a história das civilizações e, ao longo do tempo, o seu significado foi transformando-se segundo às mudanças socioculturais. A legislação pátria dispõe no § 1º do art. 39 e art. 41, caput, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que a adoção é medida excepcional e irrevogável, atribuindo a condição de filho ao adotado, gozando dos mesmos direitos e deveres, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes.

Ante os casos de adoções bem-sucedidas a sociedade vem elastecendo as discussões que envolvem a adoção, o que tem favorecido sua maior visibilidade, por muito tempo, refreada pelos preconceitos existentes na sociedade, o que não significa que estes deixaram de existir. A busca pela “normalização” da adoção implica no reconhecimento de que a família pode constituir-se não somente por laços consanguíneos, mas também por laços afetivos. Levinzon (2004) defende que toda filiação, independentemente da origem, implica uma adoção. No mesmo diapasão, Schetinni, Amazonas e Dias (2006, p. 287) afirmam que: “A adoção é a única possibilidade de se constituir uma verdadeira parentalidade e a única maneira de genitores tornarem-se pais”, aparecendo a parentalidade como a capacidade psicológica de exercer a função parental.

É cediço que a adoção requer um caminho longo e árduo e, infelizmente, ainda que todos os óbices sejam ultrapassados, o pertencimento a uma família ainda é algo inatingível para muitas crianças. Isto porque, é possível que ocorra a chamada “devolução” da criança adotada.

Segundo o dicionário Michaelis (2020) devolver significa mandar de volta, reconduzir, reenviar, restituir ou entregar ao dono. Sugere, pois, a ideia de que possui algo que não lhe pertence. No contexto da adoção, a “devolução” soa agressiva, pois a criança não é uma res –, uma coisa. De qualquer forma, a “devolução” é algo muito peculiar ao contexto da filiação adotiva, mas não da filiação biológica, pois aqui o filho nunca pertenceu a outra família e, portanto, pode ocorrer o abandono, mas jamais a “devolução”.

Ghirardi (2015, p. 33) afirma que a devolução de crianças ao instituir a ruptura da relação afetiva entre pais e filhos: “[...] revela aspectos fundamentais do sujeito que devolve, da criança que é devolvida e também daquele que a recebe de volta.” A “devolução” do filho denuncia que os pretensos pais não se sentem aptos para exercer a parentalidade, ao mesmo tempo em que leva à criança a vivenciar um novo abandono. Juridicamente, essa “devolução” representa a falha no processo de adoção desde seu nascedouro, refletindo no trabalho dos técnicos atuantes na preparação dos pretendentes à adoção.  

A “devolução” pode ocorrer durante o estágio de convivência em sentido estrito, ou após o deferimento do período de guarda provisória, quando ainda inexiste decisão definitiva. Contudo, em que pese a irrevogabilidade da adoção, é possível que ocorra também (e não raro) após o trânsito em julgado da sentença constitutiva. Em ocorrendo, compete ao Poder Judiciário encontrar parentes da família adotiva que queiram a guarda provisória da criança. Do contrário, o retorno da criança à instituição de acolhimento é inevitável. Assim, se a “devolução” sobreveio, significa que algo falhou durante o caminho para o alcance de uma adoção segura. A partir daí, é imperioso indagar quais as possíveis motivações dos pretendentes à adoção, conscientes ou inconscientes, que devem ser observadas no sentido de evitar a “devolução” da criança adotada? Nesse sentido, o presente estudo possui como objetivo refletir sobre essas possíveis motivações, conscientes ou inconscientes, que impulsionam os candidatos à adoção. E, especificamente, demonstrar a relevância de os pretendentes à adotante reconhecerem suas motivações inconscientes e, apontar as principais fantasias corriqueiramente surgidas durante o processo de adoção. A seguir, passa-se às reflexões sobre as motivações dos candidatos à adoção.

 

Reflexões sobre as motivações conscientes e inconscientes dos pretendentes à adoção

Antes de partir para reflexões sobre as manifestações conscientes e inconscientes dos futuros pais, é oportuno iniciar ponderando acerca do período de construção da identidade de pai e mãe. A literatura aponta a existência da chamada “gestação adotiva”, “gestação psicológica” ou “gestação simbólica”, experienciada pelos pretendentes à adoção durante o tempo que aguardam a chegada do filho adotivo. A “gestação adotiva” é um momento especial, pois não ocorre mudanças no corpo materno e, portanto, não há o privilégio materno de carregar o bebê no ventre, o que não significa que o casal viverá a experiência de forma unívoca, pois cada um possui sua singularidade. O referido período, de praxe, prolonga-se por tempo indeterminado, suscitando nos futuros pais, angústias, temores e dúvidas em razão das peculiaridades do processo de adoção. 

Segundo Huber e Siqueira (2010), o processo de construção da parentalidade, para os pais adotantes, terá impactos diretos sobre a forma de constituição da sua nova família. Assim, os pais poderão reproduzir o modelo de família biológica, por meio de um processo de identificação com a criança – o que pode justificar a busca por semelhanças físicas e a negação da origem do filho adotivo –, ou podem buscar outros caminhos para inserir a criança no imaginário parental, aumentando as chances de uma adoção segura.

Toda relação de filiação, seja de origem adotiva ou biológica, abarca aspectos profundos, vez que envolvem uma história de relações, as quais são alicerçantes da estrutura psíquica do ser humano. A relação de filiação por adoção, acaba por evidenciar, de forma mais incisiva, a importância da escuta interna dos pretendentes, ou seja, a possibilidade dos próprios pretendentes refletirem acerca da adoção. Por outro lado, assim como os pretendentes a pais, a criança também necessita de um período de adaptação para não somente assimilar as transformações que advirão em sua vida, mas para promover a convivência e a construção do vínculo afetivo.

Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê em seu art. 46 que a adoção será precedida de um período de convivência a fim de que seja avaliada a adaptação da criança na pretensa família, observando-se a afinidade entre os envolvidos com o intuito de evitar um futuro arrependimento. Weber e Pereira (2012) ressaltam que os técnicos que farão as avaliações devem, sobretudo, esclarecer dúvidas, dissipar temores, esclarecer sobre as etapas do processo de adoção, bem como conscientizar os candidatos a respeito das diferentes possibilidades de adoção. É um período voltado para minimizar as chances de devolução da criança, promovendo reflexão acerca das motivações dos futuros pais e a edificação dos vínculos afetivos entre os envolvidos no processo.

É sabido que durante o acompanhamento dos pretendentes pela equipe psicológica devem (ou deveriam) ser desveladas suas motivações, sejam elas conhecidas ou desconhecidas por eles mesmos. As motivações dos adotantes representam o primeiro ponto relevante a ser ventilado em um processo de adoção.  É bem verdade que muitas motivações conhecidas aparecem – podendo esconder questões da ordem do inconsciente –, como a infertilidade de um dos pares (ou de ambos), o altruísmo, vivenciar o exercício da parentalidade em razão da deficiência do primogênito, o desejo de escolher o sexo da criança, dar um irmão para um filho único, a impossibilidade de gestar outro filho biológico, o desejo de aumentar a família, etc. Levinzon (2004) enumera as razões manifestadas por pais, durante sua experiência clínica: a esterilidade, a morte anterior de um filho; o desejo de ter filhos após a idade fértil; motivações filantrópicas; o contato com uma criança que desencadeia o desejo da maternidade ou paternidade; o parentesco com os pais biológicos que não possuem condições de criar o filho; o desejo de ser pais por pessoas que não possuem um parceiro; o desejo de ter filhos sem atravessar a gravidez, seja por medo ou por estética.

Para um número considerável de pais, a decisão pela adoção surge a partir da infertilidade. Schettini, Amazonas e Dias (2006) ressaltam que a experiência psicológica da infertilidade caracteriza-se por um intenso sofrimento, exigindo dos casais uma redefinição de sua identidade não somente como indivíduos, mas também como parceiros. Ante a existência de uma sofrida sensação de perda, associada a sentimentos de inadequação, tristeza, decepção e fracasso, é imprescindível que os pretendentes antes de decidirem pela adoção, encontrem espaços adequados onde possam elaborar as suas questões inconscientes e assimilar as peculiaridades, de forma que as diferenças possam ser compreendidas e, por conseguinte, integradas à constituição de sua identidade parental.

Há, portanto, a necessidade de o casal trabalhar o luto do filho biológico não nascido, de forma que possam renunciá-lo e, concomitantemente, renunciar às fantasias a ele direcionadas no sentido de representarem a continuidade de si mesmos. A elaboração desse luto apresenta conotações sui generis em cada parceiro levando em conta a singularidade de seus respectivos desejos. Contudo, em ambos os casos, a aceitação da infertilidade é um caminho árduo permeado por grande carga emocional, pois é muito corriqueiro que o casal sinta-se excluído do seu meio social em razão da infertilidade. Essa necessidade de similitude em relação ao meio em que vive é ínsita ao ser humano. Contudo, há que se compreender que a aceitação da diferença em razão da infertilidade não implica em inferir juízos axiológicos ao fato. Mas importa na internalização da infertilidade como uma espécie de fronteira imposta ao casal, mas que não os impedem de tornarem-se pais por adoção. (Schettini, Amazonas E Dias, 2006)

Também não menos incomum é o altruísmo manifestado como motivação da adoção. Cecílio e Scorsolini-Comin (2016) esclarecem que a motivação de ajudar o outro, vem sendo cada vez mais combatida em cursos preparatórios para a adoção, bem como em avaliações realizadas por profissionais da Psicologia e do Serviço Social, haja vista que independentemente da ajuda, há a necessidade de que os pais externem o desejo de assumir uma parentalidade – priorizando, assim, a construção de vínculos entre pais e filhos.

Ante as diversas possibilidades de motivações conscientes, há também a possibilidade de existirem motivações desconhecidas pelos próprios pretendentes, permeadas por aspectos profundos inerentes à condição do ser humano, como por exemplo, uma carência originada da relação com os próprios pais, a idealização favorecendo uma projeção no filho de algo próprio que não foi realizado, etc. Mas qual a relevância de o pretendente à adotante reconhecer suas motivações desconhecidas? A relevância está entre outros pontos, no fato de o desconhecido de si mesmo ser inerente à condição humana e presente em toda relação de filiação. Sem dúvida, tais motivações despertam expectativas sobre os filhos, muitas vezes inalcansáveis, comprometendo a edificação de uma adoção segura.

Muitos são os pontos que devem ser objeto de reflexão pelos pretendentes, dentre eles: a compreensão de que o apaixonamento à primeira vista existe, mas que o vínculo afetivo necessita de um lapso temporal para consolidar-se; a reflexão sobre a possibilidade de idealização do filho em detrimento do filho real; a percepção da existência dos momentos de vulnerabilidade na relação associados às origens da criança, podendo levar ao surgimento de várias fantasias; a capacidade de lidar com as dores do filho em decorrência de sua história pregressa de desamparo e; a aceitação da relação da criança com a família de origem.

É muito comum o relato de apaixonamento à primeira vista dos pretensos pais em relação aos filhos[1], vivência esta indiscutivelmente verdadeira.  Porém, em que pese a sua existência, é necessário que o pretendente encontre um espaço onde possa refletir sobre a gênese desse apaixonamento, posto que pode encobrir a idealização como forma de superar uma decepção, uma substituição para uma dada perda, etc. Enfim, tal vivência pode ter várias origens, tornando-se necessária a compreensão de que o apaixonamento à primeira vista implica em uma verdade, porém, o amor que deve nortear a relação de filiação exige um lapso temporal para se fortalecer.

Da mesma forma, é importante a reflexão pelos pretendentes acerca do risco de fortalecerem uma idealização de filhos, a qual comumente ignora que a criança acolhida institucionalmente possui uma história de desamparo e/ou violência. Por certo, em decorrência dessas vivências, possuem feridas imensuráveis e, muitas vezes, desconhecem o amor advindo da relação paterno-filial, ou seja, não experienciaram a construção de vínculos. Pode até ocorrer que os tenham construído antes do acolhimento institucional, mas os perderam de forma lancinante. É preciso considerar também, que é muito difícil o estabelecimento de vínculos em instituição de acolhimento, devido, entre outros fatores, à rotatividade dos profissionais. A instituição não garante a individualidade alcançada no seio de uma família. Por isso, confiar em um vínculo novamente também requer tempo.

A verdade é que iniciada a aproximação com a pretensa família, a criança também necessita de um tempo de vivência para nascer enquanto filha. Inclusive, é possível que mesmo experienciando um significativo tempo de convivência, a criança não consiga atender às expectativas dos pais. Daí a importância de os pretendentes reconhecerem o melhor que puderem as suas próprias motivações, estando em sintonia com o filho real e não com o filho idealizado, como forma preventiva de obtenção de uma adoção segura. Weber e Pereira (2012, p. 106) sustentam que:

É preciso avaliar se o pretendente de fato está interessado em assumir a paternidade com todos os riscos que o processo acarreta ou se ele apresenta expectativas idealizadas sobre a criança e sobre a experiência com a adoção, as quais podem levar ao abandono e à decepção com a experiência real.

A questão da idealização do filho (informação verbal)[2] deve ser refletida intimamente à questão da história de desamparo e/ou violência a que seu filho foi exposto antes do acolhimento institucional. Isto porque, a criança possui registros de fatos penosos, como a dor da ruptura de um vínculo e da consequente ausência deste. É imprescindível que as especificidades desse contexto sejam trabalhadas pelos pretendentes de forma profilática. Afinal, é possível silenciar a história da criança ou mesmo esquecê-la? Quem pode dar colo para que o pensado e o lembrado possa ser sentido? E para que o sentido possa ser pensado? Quem será o provedor de segurança a fim de que a criança possa manifestar suas lembranças? Sem dúvida, a ajuda de profissionais é importante, mas o acolhimento dos pais é a mais poderosa fonte para tratar e amenizar as feridas de uma história que não pode ser dissipada, mas que pode ser ressignificada, de forma que as máculas do desamparo e/ou da violência, sejam esteadas pela presença dos pais.

Segundo Schettini, Amazonas e Dias (2006) os pretendentes precisam compreender que o adotando trará consigo uma história pré-adotiva que não poderá ser negada ou tampouco descartada, e que para o alcance da saúde psíquica da criança, precisará ser integrada à sua história de vida. Tal compreensão, não raro, é dificultada por processos de negação vinculados a questões inconscientes dos adotantes.

Sem dúvida, há momentos de vulnerabilidade em qualquer relação. E na relação entre pais e filhos adotados não é diferente. Comumente, a dor que a criança alimenta em razão de sua história pregressa à adoção, pode materializar-se em comportamentos agressivos, em isolamento, etc. É uma forma de a criança testar o vínculo com os pais a fim de certificar-se que não passará por um novo abandono. Dentre as várias dificuldades vivenciadas no estágio de convivência estão os comportamentos como a birra e choro diante de um contrariedade, dificuldade no atendimento às regras, os pesadelos, a agressão, ameaças de fuga, etc.

Essa dinâmica da criança, segundo Oliveira e Próchno (2010), exprime a dificuldade de estabelecimento de vínculos afetivos saudáveis e significativos, além de expressar a dificuldade de afetividade da criança não somente consigo mesma, mas também com quem se vincula. Esse momento de vulnerabilidade pode suscitar nos pais fantasias, receios e angústias associadas à origem da criança. Frassão (2000) defende que o fator preponderante encontrado como motivo para devolução está relacionado à dificuldade dos pais adotivos em lidar com a hostilidade da criança, aparecendo a devolução como uma forma de os pais se livrarem dos conflitos com a criança. Aqui, vale a pena destacar que a noção de conflito possui compreensões diversas no direito e na psicanálise. Caffé (2010) pontua que a prática psicanalítica dispõe o conflito em termos interpretáveis, pois ocorre no plano da subjetividade de cada pessoa, onde a interpretação, o deciframento e a análise constituem operações que permitirão a interpretação do conflito que sustenta o sintoma. Por sua vez, o direito dispõe o conflito em termos decidíveis, busca-se uma decisão sobre o conflito emanada pelo juiz. Daí a importância de interpretar-se e acolher-se os ditos e não ditos pelos envolvidos na adoção antes que o conflito jurídico possa ser decidido.

Nesse contexto, é muito frequente a associação do comportamento da criança a sua origem biológica. Diante de um momento de conflito na relação entre pais e filho, Freud ([1909]2015, p. 420-421) faz uma referência direta à adoção:

Não são raras as ocasiões em que a criança é preterida, ou pelo menos sente que o é, que não recebe o inteiro amor dos pais e, sobretudo, em que lamenta precisar dividi-lo com os outros irmãos. A sensação de que seus afetos não são correspondidos acha então desafogo na ideia, muitas vezes conscientemente lembrada da primeira infância, de que é um enteado ou um adotado.

No referido texto, “O Romance Familiar dos Neuróticos”, Freud ([1909]2015) ressalta que a adoção integra a construção dos romances familiares da criança em algum período de sua vida. Para o autor, a expressão romance familiar relaciona-se às fantasias do sujeito visando modificar o vínculo firmado com os pais na infância, pois a fantasia da criança de pertencimento a outros pais, refere-se à idealização de pais cuja posição social é mais elevada.

Ghirardi (2015) enfatiza que a clínica com a adoção é reveladora de que a abordagem das origens é uma das questões que mais provocam a angústia nos pais adotivos, possibilitando uma diversidade de temores e fantasias. A revelação à criança acerca de suas origens implica a reedição nos pais de experiências dolosas associadas às perdas que os motivaram à adoção: a infertilidade, o filho biológico inexistente, etc. O processo de revelação permite o desvelamento das origens e, consequentemente, uma exigência psíquica de atribuição de sentidos sobre o lugar do filho no imaginário parental.

Renzi (1997 apud Ghirardi, 2015, p. 40) afirma que diante das dificuldades em manejar os conflitos, é reavivada nos pais a ideia de que a criança não lhes pertence e de que jamais se constituiu como filho próprio. Essas fantasias inconscientes seriam consideradas fachadas defensivas que encobrem um sentimento depreciativo por não haver podido conceber seus próprios filhos.  Neste contexto, a fantasia de devolução, de maneira similar ao que ocorre com a criança, tal como descrito por Freud [1909]2015), surge em momentos de conflito entre pais e filhos.

Por isso, é importante o espaço onde os pretendentes possam realizar a sua escuta interna, bem como onde os sentimentos da criança/adolescente possam ser manifestados e, principalmente, que os pais possam ter ciência de que devem aproximar-se das verdades emocionais da criança/adolescentes, o que lhes exigirá muito acolhimento.

Aliás, outro assunto que angustia e pode causar sentimentos ambíguos nos pretendentes à adoção é a relação da criança com sua família biológica, fato que está associado a muitas situações. Entre elas, ao fato de o imaginário social atribuir muita importância aos laços consanguíneos, considerando-os indissolúveis. Schetinni, Amazonas e Dias (2006) enfatizam que é comum os pais adotivos alimentarem a fantasia de que o filho adotado, impulsionado pelo desejo de conhecer os pais biológicos e em razão da “força dos laços de sangue”, os abandonem e parta em busca desses pais. O temor de que o “poder” dos laços sanguíneos, de alguma forma, determine a preferência pelos pais biológicos é frequente nessas situações. Refere-se, portanto, ao medo de não ser adotado pelo filho. Talvez tal receio possa justificar a decisão de muitos casais pela adoção de um recém-nascido. Huber e Siqueira (2010) afirmam que a preferência por recém­nascidos pode ocorrer pelo imaginário de que a criança possa ser moldada, vez que não possui uma história com a família biológica para além do fato de ter sido abandonada após o parto. Assim, os pais costumam entender que a história da criança começa a partir do momento em que a adotaram.

É salutar que durante a preparação dos pretendentes, seus receios em relação aos pais biológicos possam manifestar-se a fim de que sejam elaborados, afinal, a história da criança com a família biológica existiu, independentemente da idade com que tenha nascido como filho de pais por adoção. Até mesmo um recém-nascido, que tenha sido entregue ou abandonado, terá uma história curta com sua família de origem. Rossato e Falcke (2017, p. 01) ao abordarem a história da criança com a família de origem, destacam que: [...] existem especificidades que necessitam ser trabalhadas antes de ser efetivada a adoção.”

É possível também que a angústia dos pais em relação à família de origem se materialize em hostilidade. Evidentemente, são muitas as causas que inviabilizam a criação de filhos pela família biológica. São causas multifatoriais relacionadas às ausências de políticas públicas, dependência química, etc. A possível agressão à imagem desses pais não possui o condão de evitar a possibilidade de os filhos desejarem saber o motivo pelo qual foram rejeitados por sua família biológica. Assim como os pais adotivos idealizam a criança que integrará o seio da família, esta criança também idealiza os seus pais biológicos e o desejo de os conhecerem muitas vezes, é incompreendido pela família por adoção.

Também é comum encontrarmos nos casais adotivos, a fantasia de autoacusação de roubo, entendida pela literatura como complementar à fantasia de devolução. A fantasia de autoacusação de roubo consiste no medo de perder o filho, como se a relação construída a partir da adoção estivesse em iminente perigo e, está associada ao sentimento de culpa, de forma que os pais sentem, inconscientemente, que “roubaram” o filho de sua mãe biológica. Nesse sentido, Giberti (1992 apud Ghirardi, 2015, p. 83) entende que a fantasia de devolução é intrínseca à experiência adotiva, complementar à fantasia de autoacusação de roubo, por meio da qual alguns pais adotivos experimentam de forma angustiante a fantasia de haverem retirado a criança do convívio da família original e de não terem dado todas as oportunidades para que a mãe biológica pudesse ficar com ela.   

Não menos importante é a necessidade de que os pretendentes possam refletir sobre a sua história de vida com seus próprios pais, pois tal relação é parte constituinte da relação que estabelecem com os seus filhos. Para Machado, Féres-Carneiro & Magalhães (2015, p. 443) as inscrições da história familiar são configuradas na vivência de dois processos psíquicos interdependentes e simultâneos: a parentalidade e a filiação, enfatizando que a aquela não pode ser pensada sem esta, pois para ser pai é preciso existir o filho, a partir de uma relação dialética. Tais processos psíquicos denotam a construção da teia familiar, determinando o tipo de arranjo dos vínculos.

A relação entre pais e filhos, pode ocorrer de forma elaborada (ou não), imbuída de aspectos que podem refletir de forma positiva ou negativa na relação filial e, por isso, a reflexão acerca da relação com os pais pode lançar luz valiosa em relação às idealizações, temores, etc.

 

Considerações finais

Ao finalizar estas reflexões, impõe-se destacar a imperiosa possibilidade de interlocução entre o direito e a psicanálise no contexto da adoção. A intenção do presente é de apenas lançar luzes para o fomento de discussões acerca da temática, sem qualquer pretensão de esgotá-las, nem tampouco ignorar a singularidade de cada sujeito.

Sem dúvida a adoção é um dos caminhos para a constituição de uma família, por isso, é necessário um olhar acolhedor e atencioso não somente à criança, parte mais vulnerável da relação, mas também aos pretensos pais, pois carregam consigo várias motivações conscientes e/ou inconscientes, as quais podem desembocar na “devolução” do filho. Portanto, há a necessidade de um espaço privilegiado de escuta para além do que foi dito pelos futuros pais, o que implica em escutar o lugar que a criança ocupará no imaginário parental, pois, a partir deste lugar poderão advir consequências nocivas aos envolvidos na adoção.

Os pais que devolvem o filho denunciam que não se sentem aptos ao exercício da parentalidade, apesar de ter passado por um processo de preparação à adoção antes da obtenção da sentença constitutiva. Sem dúvida, a devolução é a reedição da experiência dolorosa da rejeição e, por conseguinte, fonte de intensas angústias. Daí a importância da preparação e avaliação dos adotantes. Isto porque, a gestação adotiva, que antecede a adoção, é bastante ansiogênica, haja vista que os pretendentes a pais nutrem muitas dúvidas, fantasias e preconceitos.

Em suma, é preciso que haja um esforço conjunto e, cada vez maior, dos órgãos viabilizadores da adoção a fim de que a cultura da filiação adotiva seja estimulada e consolidada. Não menos importante é a preparação dos profissionais que lidam com os adotantes, no sentido de que possuam um espaço adequado, sobretudo, para o favorecimento da escuta interna dos adotantes, o que já contribuiu bastante para evitar-se a “devolução” da criança.

 

Notas e Referências

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[1] Palestra de Ana Mafalda Azor em novembro de 2020 durante o Primeiro Encontro Mineiro de Adoção – Online.

[2] Palestra de Ana Mafalda Azor em novembro de 2020 durante o Primeiro Encontro Mineiro de Adoção – Online.

 

 

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