O presente trabalho se inscreve em projeto maior de pesquisa, que pretende investigar a questão acerca da relação entre autoritarismo e desenvolvimento econômico, o que vem sendo objeto das atividades do grupo de pesquisa Constitucionalismo, desenvolvimentismo e autoritarismo no Brasil.
Neste sentido, pretende-se esboçar o trajeto percorrido de leituras, isto é, busca-se apresentar a revisão de bibliografia realizada. Dessa maneira, trata-se de um projeto em andamento, significa dizer que de maneira alguma se admite o fechamento de questões no que diz respeito a temática.
A problematização e a hipótese de trabalho se apresentam como algo fecundas e objetivam investigar por que o Brasil obtém significativo desenvolvimento econômico em períodos fortemente autoritários de sua história política e constitucional. Neste horizonte de perspectiva, apresenta-se razoável examinar, por hipótese, a aproximação das ideias de constitucionalismo, desenvolvimentismo e autoritarismo.
Importa considerar que esta aproximação pode parecer algo estranha, contudo, quando se observa a hipótese de Roberto Schwarz de que as ideias estão fora do lugar no Brasil (Schwarz, 2014), apresenta-se fecunda hipótese de trabalho investigativo. Por esta via, Gizlene Neder — nas pistas de Schwarz —, afirma que “vemos o autoritarismo presente, hegemonicamente, no processo histórico brasileiro” (Neder, 1979, p. 8). Ainda, afirma Neder “nosso raciocínio baseia-se no argumento de que a transformação burguesa no Brasil, porque tardia e relacionada com a internacionalização do modo de produção capitalista, efetivou-se de forma autoritária” (Neder, 1979, p. 8)
Nas trilhas apresentadas por Neder e Schwarz, ao se considerar as hipóteses de que as ideias estão fora do lugar, bem como de que o autoritarismo é uma constante no processo histórico-político brasileiro, torna-se possível, também, a aproximação de uma hipótese crítica acerca do constitucionalismo. Em outras palavras, a gramática do pensamento filosófico, político e constitucional apresenta o liberalismo econômico-político e o constitucionalismo como algo em oposição ao autoritarismo.
Contudo, há que se observar que esta imagem é aquela ligada ao cenário europeu, isto é, o constitucionalismo seria um movimento que se apresenta no século das Luzes - em especial a partir das revoluções burguesas e liberais do século XVIII -, como uma instância de ruptura com a monarquia absoluta, bem como movimento político que constitui o Estado de Direito moderno, fundamentado nas ideias de soberania popular e de cidadania, esta última compreendida como categoria jurídico-política de reconhecimento de direitos recíprocos e de limitação do poder do Estado, pela via da separação de poderes.
Dirá, então, Gizlene Neder (1979, p. 9):
É importante notar, no entanto, que no Brasil a ideologia liberal vai se dar num quadro econômico, social e político distinto do europeu. A especificidade histórica de nossa formação social conferiu um conteúdo todo especial à existência do liberalismo no Brasil. Esta observação é importante pois envolve uma questão bastante complexa, qual seja, dos mecanismos pelos quais o ideário europeu, liberal, penetrou na formação social brasileira.
Além disso, afirma Neder que para bem compreender a hipótese das ideias fora do lugar, mostra-se necessário considerar o “processo de assimilação de ideias” (Neder, 1979, p. 9), isto é, estas últimas sofrem “um mecanismo de ajuste/desajuste quando em confronto com a realidade concreta brasileira” (Neder, 1979, p. 9). Esta afirmação da autora se aproxima muito — por óbvio com distinções —, de um diagnóstico existente no circuito de juristas e constitucionalistas da Primeira República, como, por exemplo, Alberto Torres, Oliveira Viana e Francisco Campos. Em linhas gerais, estes autores, cada a sua maneira, afirmavam que era preciso levar em consideração a realidade sócio-política brasileira a fim de bem ponderar as reais necessidade do país, o que implicava em não apenas decalcar autores e ideias estrangeiras, mas, isto sim, apropriar-se delas em sentido de um ajustamento as demandas nacionais.
Por esta via, verifica-se fecunda hipótese de análise do problema de pesquisa, inclusive para bem angular noções como constitucionalismo autoritário e sua relação com o desenvolvimentismo, considerando uma chave de leitura antiliberal. Em torno ao conceito de desenvolvimentismo e sua gênese há interessantes caracterizações.
Como termo cognato, desenvolvimentismo remete a desenvolvimento. Este último, todavia, apareceu muito antes do primeiro. Já na primeira escola econômica, a fisiocracia francesa, a pretensão do tableau economique de Quesnay não se restringia a mostrar como a riqueza circulava, mas como crescia a partir do excedente criado pela produção primária. O processo de produção como criação de riqueza firmou-se a partir de A. Smith, e a ele associou, em meados do século XIX, o termo desenvolvimento ou progresso econômico (Fonseca, 2015, p. 22)
Além disso, Pedro Fonseca apresenta um diagnóstico do uso mais comum do termo desenvolvimentismo, que é referido de maneira imediata, no que tange ao corpo de ideias, a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) e, como fenômeno histórico, geralmente é associado aos governos presidenciais de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek, a partir da década de 1950. Não obstante, também seria possível verificar sua presença na sucessão de governos militares após o golpe de estado de 1964 (Fonseca, 2004; 2012).
O desenvolvimentismo surge a partir da consciência — que começou a formar -se nos países latino-americanos já no século XIX —, do fenômeno histórico e estrutural do subdesenvolvimento, ou seja, de uma “consciência do atraso”. O desenvolvimentismo seria uma resposta para a superação deste atraso, onde a intervenção estatal seria um fator fundamental, legitimada pela sua associação ao progresso. Aqui, aponta Fonseca, é inegável a influência do positivismo que adquiriu diversas versões criativas nos países latino-americanos (Fonseca, 2015, p.29).
No entendimento de Fonseca, devido à ausência de uma melhor definição do termo, verifica-se uma confusão deste último com outros fenômenos da experiência histórica, a saber: defesa da industrialização/intervencionismo, “que vai desde políticas econômicas expansionistas, pró-crescimento, até o planejamento e a criação de bancos de fomento estatais” (Fonseca, 2004, p.1).
Neste sentido, para Fonseca caberiam, dentre outras, as seguintes questões: “Quando um governo pode ser considerado desenvolvimentista? Qual a primeira experiência histórica do Brasil?” (Fonseca, 2004, p.2) Ainda, uma questão difícil do ponto de vista metodológico, a saber: “Qual seria este ponto de corte, já que a defesa da industrialização, de políticas intervencionistas pró-crescimento e de ideias nacionalistas é muito mais antiga do que normalmente se considera como desenvolvimentismo, um fenômeno típico do século XX, principalmente após a ascensão de Vargas ao poder em 1930?” (Fonseca, 2004, p.2).
A partir de tais coordenadas, Pedro Fonseca oferta uma primeira recusa e assinala que “simples declarações de autoridades em defesa de medidas de política econômica concretas ao referido ‘núcleo duro’ não permitem, por si só, que se considere um governo desenvolvimentista” (Fonseca, 2004, p.2). Tal diagnóstico tem uma razão empírica básica, pois “nem sempre os três elementos do ‘núcleo duro’ aparecem associadas historicamente” (Fonseca, 2004, p.2).
Neste horizonte de perspectiva, para uma abordagem rigorosa do ponto de vista metodológico, torna-se imperativo o reconhecimento de um primeiro pré-requisito, qual seja: “a associação dos três elementos do ‘núcleo duro’ em um conjunto comum de ideias concatenado e estruturado” (Fonseca, 2004, p.2). Todavia, salienta Fonseca que não basta apenas isto, uma vez que a concepção de desenvolvimentismo no Brasil e na América Latina “emergiu como um guia de ação voltado a sugerir ou justificar ações governamentais conscientes. Estabelece-se, portanto, a hipótese de que sem uma política consciente e deliberada não se pode falar em desenvolvimento” (Fonseca, 2004, p.2). Assim, a hipótese exige uma “defesa explícita de que a primeira tarefa do governo consiste na busca do desenvolvimento econômico, que este é seu principal dever, seu objetivo central, no limite, sua razão de ser” (Fonseca, 2004, p.2).
A partir desta hipótese geral, Fonseca formula e propõe duas hipóteses de trabalho. A primeira dispõe que são quatro correntes de ideias que antecedem o desenvolvimentismo e que elas constituem o conceito, a saber: os nacionalistas; os defensores da industrialização; intervencionistas pró-crescimento e, por fim, os positivistas (Fonseca, 2004, p.3). Dirá, então, Pedro Fonseca “neste ideário, o desenvolvimento não é apenas uma palavra de ordem a mais, mas o elo que unifica e dá sentido a toda ação do governo, ao legitimar a ampliação de sua esfera nos mais diferentes campos, além da economia propriamente dita: educação, saúde, legislação social, cultura, política pública, etc” (Fonseca, 2004, p. 3).
Para além de mera palavra de ordem, o conceito de desenvolvimento se configura em utopia, no sentido de um estágio de felicidade a ser alcançado, ou seja, como “prerrogativa de ser condição para desideratos maiores, como bem-estar social” (Fonseca, 2004, p.3), fortalecendo concepções como a soberania nacional, bem como, também, se apresentando como caminho para a superação do atraso e da condição periférica a exigir planejamento do Estado para reversão do quadro de atraso e subordinação internacional. Logo, exige um programa de ação e protagonismo do Estado (Fonseca, 2004, p.3).
Assim, Fonseca propõe uma segunda hipótese de trabalho e que diz respeito a “quando se pode detectar o ponto de inflexão [...]. Este teria ocorrido ainda na Primeira República, com a ascensão de Vargas ao governo do Rio Grande do Sul, em 1928” (Fonseca, 2004, p.3). Ainda, o autor afirma que, neste governo:
as quatro vertentes formadoras do desenvolvimentismo aparecem associadas não só como propostas, mas como medidas que o governo começa a implementar, configurando o embrião de nova relação entre Estado, economia e sociedade, ao sugerir que o primeiro deveria estar à frente das duas últimas, como forma de estimular seu desenvolvimento (Fonseca, 2004, p. 17).
Desse modo, ao se considerar a interessante hipótese de Fonseca que aponta o governo de Getúlio Vargas no Rio Grande do Sul no final dos anos de 1920, mostra-se bastante razoável, também, a hipótese de aproximação de um pensamento constitucional que negam as fórmulas institucionais, bem como a “estrutura constitucional do liberalismo” (Martins; Madeira Pinto, 2019, p. 154). Logo, verifica-se possível a aproximação da ideia de constitucionalismo autoritário, que encontra sua matriz no “projeto constitucional castilhista” que “transcendeu seu contexto local, estabelecendo-se como inspiração do vindouro projeto de Estado autoritário de Vargas” (Martins; Madeira Pinto, 2019, p. 154).
Para melhor compressão da hipótese de início do fenômeno desenvolvimentista brasileiro com Getúlio Vargas no governo gaúcho, é imperioso recobrar a gênese do constitucionalismo autoritário brasileiro a partir do minucioso trabalho de Argemiro Cardoso Moreira Martins, em seu texto escrito em conjunto com Francisco Rogério Madeira Pinto “A Constituição Castilhista de 1891 e as Origens do Constitucionalismo Autoritário na República Brasileira” (Martins; Pinto, 2019). Ao longo do referido trabalho os autores demonstram como “a Constituição Castilhista estabeleceu as bases de uma gramática jurídico-autoritária que influenciou modelos constitucionais ao longo de nossa história republicana.” (Martins; Pinto, 2019, p.154).
Portanto, calcado na doutrina positivista de Augusto Comte, Júlio de Castilhos lançou as bases do autoritarismo político nacional desenhando um modelo de ditadura constitucional no Rio Grande do Sul na recém-constituída República brasileira. Ou seja, a organização estatal proposta por Júlio de Castilhos, e aplicada no Rio Grande do Sul, lança as bases para o Desenvolvimentismo na medida em que “nesta versão de ditadura republicana, a legitimação do governo não ocorre em termos de vontade popular, mas de uma eficiente organização burocrática capaz de garantir a paz social.” (Martins; Madeira Pinto, 2019, p.169). A estrutura castilhista terá seu mais bem acabado modelo aplicado a partir de 10 de novembro de 1937, período em que tal estrutura de Estado “ora centrada na figura do líder, ora na forma de uma elite, com maior ou com menor sofisticação, será adotada pelo discurso autoritário brasileiro a partir de então, em especial durante o Estado Novo de Getúlio Vargas.” (Martins; Pinto, 2019, p.177).
Palavras-chave: Autoritarismo; Constitucionalismo, Desenvolvimentismo.
Notas e referências
FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil. Revista Pesquisa & Debate. Volume 15, nº 2(26), pp. 225-256.2004.
_____. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil. In: BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra (Orgs.). A era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: editora UNESP. 2012.
_____. Desenvolvimentismo: a construção do conceito. In: Texto para discussão. Instituto de pesquisa econômica aplicada. Brasília/Rio de Janeiro: IPEA. 2015.
MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; MADEIRA PINTO, Francisco Rogério. A constituição castilhista de 1891 e as origens do constitucionalismo autoritário na república brasileira. In: Revista do Instituto histórico e geográfico brasileiro, nº 180 (481), pp. 153-186. 2019.
NEDER, Gizlene. Os compromissos conservadores do liberalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé. 1979.
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Companhia das Letras. 2014.
TAVARES, José Nilo. Autoritarismo e dependência: Oliveira Viana e Alberto Torres. Rio de Janeiro: Achiamé. 1979.
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