Desejo em estado bruto

13/02/2015

Por Andréa Pachá - 13/02/2015

Memória olfativa é curiosa. Custei a entender que o cheiro de inseticida que exalou durante aquela audiência, tinha origem em uma lembrança de mais de trinta anos.

Era assim o ar em um hotel, em cima de um posto de gasolina em Paracatu, quase chegando a Brasília.

Foi a primeira das muitas viagens rodoviárias das férias de julho. Muitos quilômetros de estrada. Apenas meu pai no volante. Lotação completa e mais uma avó.

Crianças andavam no banco da frente. Sentavam em um banquinho de couro improvisado colocado estrategicamente sobre o freio de mão. Nenhuma lembrança de cinto de segurança. Nenhuma reserva de hotéis.

Se havia estresse ou confusão, irritação ou desgaste naquele confinamento Brasil adentro, a memória tratou de apagar.

Não lembro se antes ou depois do pernoite no Hotel Presidente, paramos em Cristalina.

Minha mãe era diretora de um jardim de infância. Nas vésperas da festa do dia dos pais, nada mais natural do que encher o carro com chaveiros de pedras brasileiras. Era o presente ideal. Fácil de transportar, barato, diferente.  Além da bagagem de seis, prosseguimos, então, com a tonelada de pedras no chão do carro, sob os pés de quem, por azar, viajava no banco traseiro.

Uma das formas de passar o tempo e evitar que as três crianças se engalfinhassem, ou que a viagem ficasse enfadonha, era anotar todas as frases dos para-choques dos caminhões.

Nossa iniciação ética e filosófica começava ali. Nas retas e curvas, entre gargalhadas e inquietações, aprendíamos muito:

“Não faça planos pra vida, pois isso pode atrapalhar os planos que a vida faz pra você.”

“Em casa que mulher manda até o galo canta fino.”

“Sogra é igual a onça. Todo mundo defende, mas ninguém quer ter em casa.”

“A paixão é igual fumaça, sufoca, mas logo passa.”

“A força da tua inveja é a velocidade do meu sucesso.”

“Não crio juízo porque não sei o que ele come.”

“Quem me vê na sombra não sabe o sol que já levei.”

Todas as lembranças emergiam de um mecanismo curioso. Em área pouco explorada do cérebro, onde ficam guardados os esquecimentos, uma seleção, aparentemente  caótica das reminiscências era pinçada para o tempo presente.

Tudo isso para chegar a uma frase cujo significado era, até ali, para mim,  indecifrável:  “Chifre dói pra nascer, depois ajuda a viver.”

Waldemir repetia sua história pela quarta vez. Concluía sempre da mesma forma:

- Por mim, tudo bem, doutora, eu volto... mas ela não quer...

Ela não queria mesmo. Não porque tripudiava do marido. Não porque não pretendia manter um casamento depois de 18 anos. Era cansaço. Ela não agüentava mais se submeter ao ciúme excessivo do parceiro.

Se chegava cedo em casa, era porque queria encontrar o vizinho no ônibus. Se atrasava, era porque estava com o patrão. Se faltava alguma coisa da feira ou do mercado, era porque se enrabichava com o feirante ou com o vendedor. Até na escola do filho, ele desconfiava do motorista da van e do inspetor que ficava na portaria.

No início, ela achava graça quando Waldemir insistia em se enxergar vítima de uma traição. Parecia uma brincadeira escolhida para jogar a dois. Ela negava, depois fingia que podia ser verdade, algumas vezes inventava histórias picantes, com detalhes eróticos que excitavam o parceiro. Terminavam, invariavelmente, na cama.

Mas, como toda brincadeira a dois, quando um não quer mais, o outro precisa respeitar. Ou insistir em jogar sozinho e acusar o que abandona o tabuleiro de levante ou traição.

Rosana cansou. Não era possível que depois de tantos anos, o marido apenas se interessasse pelos homens que ela inventava para trazer para a cama.

Não estava mais disponível e, a pretexto de evitar o marido, passava as noites no computador. Como as investidas de Waldemir não colaram, ele pediu o divórcio, usando o processo como uma ameaça e, agora, arrependido, tentava restabelecer o casamento.

A maneira torta que encontrou, no entanto, foi fazer com que Rosana se sentisse culpada.

- Ela não cuida de mim, nem do menino, doutora. É a noite toda, com a cara enfiada no computador. Só pode ser outro homem.

Rosana cansara de negar. Não era a primeira vez que o ciúme assolava a relação. Das outras vezes, as reconciliações foram tórridas e parecia que Waldemir decidira que o fio da navalha, afiado por uma desconfiança permanente, era o segredo do sucesso do seu casamento.

O casal vivia com dificuldades. Nenhum dos dois concluiu o segundo grau. Davam duro no trabalho e o que ganhavam mal cobria o aluguel e as despesas básicas. Rosana contava toda a sua história, sem nenhum pudor ou sem qualquer resquício de sofisticação do desejo.

Eu mal tinha completado 30 anos e, com a arrogância que a juventude é capaz de produzir, embora não julgasse o comportamento do casal,  enxergava como improvável que os dois, preocupados em sobreviver e pagar contas, pudessem ser se entreter com  brincadeiras eróticas que alimentassem o desejo sexual ao longo dos anos.

Felizmente e com sorte, o tempo ajusta a lente, amplia o olhar e reduz a arbitrariedade das convicções que engessam e aniquilam a criatividade.

Rosana não conseguia verbalizar, claramente, o que sentia.

- Um enjôo, doutora. Eu não tenho vontade de ficar perto dele. Ele encosta em mim e eu não sinto mais nada. Não tenho ninguém, não, mas não acho que é certo ficar junto quando não tem mais fogo.

Waldemir, meio sem graça, mas ainda esperançoso, insistiu:

- Não tem falta de fogo não...pros amantes do computador, você tá sempre pronta.

O tom distante de Rosana fechou o diagnóstico:

- O que eu faço ou o que eu deixo de fazer não é problema seu, homem! Vá cuidar da sua vida.  Eu, se fosse você, procurava era um macho pra ver se fica feliz. Nunca vi um homem gostar tanto de ser corno!

Eu não sabia como lidar com aqueles desejos em estado bruto. Olhando de longe, poderia parecer grosseiro ou insuportável o diálogo que eu acabara de ouvir. Mas, naquele contexto, o que um dizia era compreendido pelo outro e nenhum dos dois se ofendia com a clareza cortante dos substantivos e adjetivos.

O triste não foi constatar que aquela brincadeira acabara. Difícil foi comunicar a Waldemir que todas as brincadeiras acabaram. Rosana não o amava mais e não queria continuar casada.

O fato de os dois não conhecerem os discursos simbólicos ou dominarem os desejos, expressando-os  com as palavras acertadas, não os fazia menos angustiados diante da constatação do fim do amor.

Waldemir chorou como criança, mas concordou com a separação.

Eu não tinha o que dizer para diminuir a dor que ele experimentava, mas achei que Waldemir e Rosana não mereciam sair assim da audiência. Elogiei os dois pelo tempo que viveram juntos, pela alegria do convívio de 18 anos  e pela maturidade em compartilhar a guarda do filho, dividindo a pensão. Disse que eu fazia separações todos os dias e sabia que tudo ia passar. Torci, de coração, que ambos encontrassem novos caminhos nas vidas.

Quis muito repetir a frase do caminhão: chifre dói pra nascer, depois ajuda a viver. Felizmente silenciei. Também aprendi, nas muitas viagens que experimentei, que há verdades que não precisam ser verbalizadas, especialmente nos tribunais.

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Sem título-1Andréa Pachá. Juíza. Graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Titular da 4ª. Vara de Órfãos e Sucessões da Capital do Rio de Janeiro e Ouvidora do Poder Judiciário do Rio de Janeiro. Integra o Forum de Direito e Psicanálise e preside o Forum de Direito, Literatura e Cinema da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

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Imagem Ilustrativa do Post: Deseo - Desire Foto de: Gabriel S. Delgado C. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/neogabox/3759375253/ Sem alterações Licença de uso disponível em: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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