Desculpe o incômodo: precisamos falar (sério) sobre garantismo penal

05/10/2016

Por Ana Cláudia Bastos de Pinho – 05/10/2016

Hoje cedo fui supreendida com alguns comentários na web sobre o texto publicado ontem pelo site do CONJUR, intitulado “premissas universais do garantismo penal são falsas”[1]. Claro que fui ler o texto, para tentar entender quais seriam as “premissas universais” e em que medida seriam “falsas”. Li, reli, “treli"! Continuo sem saber…

Foi muito difícil chegar até o fim, apesar do texto ser curto e rasteiro. Mais um exercício de verborragia, um desabafo, do que propriamente um texto com algum sentido científico/teórico, já que isento de referências, fundamentos, argumentos, enfim… essas coisas “chatas"que os acadêmicos precisam enfrentar…

Custa-me crer o quanto ainda se insiste em desqualificar - com base no “nada”- uma teoria sofisticada, como o garantismo penal. Luigi Ferrajoli merece respeito! E é exatamente por respeito a Ferrajoli e por compromisso com a seriedade acadêmica que me disponho a continuar falando sobre garantismo.

São incontáveis os erros grosseiros e deslizes do texto que diz apontar falsas premissas ao garantismo. É até complicado achar alguma ordem para tentar entabular uma crítica. Talvez seja melhor começar pela fonte, ou melhor pela falta dela! O autor, em momento algum, cita o mais básico fundamento de Ferrajoli para, depois, dirigir seus ataques. Isso, por si só, desqualifica totalmente o escrito. Não se pode levar a sério!!

Começa confundindo "direito alternativo" com garantismo. O absurdo é tamanho que arrisco dizer que o autor desconhece um e outro! Se ele ainda estivesse falando de Zaffaroni, ou algum criminólogo crítico, de viés marxista, poderia até ser feito algum esforço para compreender. Mas, não! Ele está falando de um POSITIVISTA!!! Positivista analítico! Herdeiro da Ilustração, do Círculo de Viena. Um liberal! Um clássico! Conservador!!! Sim, Ferrajoli está longe de ser um “alternativo”, ou anarquista, ou quaisquer desses epítetos absurdos que teimam em lhe conferir. O mestre italiano é um justificador do poder punitivo, sabia disso? Sim, ele legitima a punição! Veja você!!!

Se há um sentido em que o garantismo pode ser considerado “alternativo”, certamente o é em relação à seriedade e compromisso teórico com a defesa de direitos fundamentais, algo cada vez mais escasso pelas bandas de cá. Mas, sigamos…

FERRAJOLI inscreveu seu nome no rol dos pensadores clássicos! Temos uma grande dívida com ele! Isso sim!

O garantismo, desde sempre, representou um incômodo aos punitivistas de plantão. Esse - e não outro - é o principal motivo pelo qual a teoria não foi levada a sério ao sul do Equador. Uma formatação teórica com tamanha consistência e refinamento, a defender a limitação do poder punitivo, a partir de argumentos jurídicos e constitucionais, de fato, seria (como ainda é) um problema sério ao nosso bom e velho sistema inquisitório.

Não tardaram, pois, os discursos de ataque. As tentativas de desqualificar o garantismo, de fazer de Ferrajoli o arauto da “impunidade”, o responsável pela “insegurança dos homens de bem” e da “bandidagem solta nas ruas”. Sim, faz-se dessas coisas por aqui! Os adeptos da “lei e ordem”e do vale tudo punitivo são capazes, até mesmo, de tentar ridicularizar e menosprezar um dos maiores filósofos do Direito da contemporaneidade!! Afinal, quando não se tem conhecimento, apela-se ao poder. É a velha ditadura da mediocridade. Mais do mesmo…

O termo “garantismo" virou expressão pejorativa. Ser “garantista" é como ter uma doença incurável! Brincadeiras, igualmente, não faltam. Do tipo: “sou garantista! Garanto que o réu fique preso e seja condenado!”. É evidente que grande parte dos que aponta o dedo a Ferrajoli jamais abriu uma única página do Direito e Razão (nem falo do “Principia" ou daqueles excelentes livros que dialogam com Ferrajoli). Em suma: ataca-se por atacar. Sem base teórica alguma. De forma irresponsável. Somente com o objetivo de tentar neutralizar a teoria.

Dito isto, sequer se pode encarar esses gritos como “críticas”. Crítica é outra coisa. Bem diferente! Pressupõe conhecimento, pesquisa, estudo. Não é fácil criticar seriamente um autor da envergadura teórica de Luigi Ferrajoli! Precisa suar muito!!! Queimar muita pestana!!!

Agressões vazias, sem fundamento, assemelham-se a conversas de mesa de bar. São leviandades autoritárias e vazias. Garantismo, porém, é coisa séria! E assim precisa ser tratado!

Certamente, o claro entorpecimento crítico (fruto da mediocridade) pelo qual atravessa o ensino jurídico no Brasil - levando o aluno a “estudar” por manuais “receitas de bolo”, ou por simplificações grotescas (como se fosse possível simplificar o que é, na essência, complexo), do tipo “Direito Penal esquematizado, deglutido e empacotado” - tem grande responsabilidade nisso!

Não há, todavia, como calar diante de ataques infundados, como os que lemos no texto que ainda está procurando as falsas premissas do garantismo penal…E que, vai além… diz defender um garantismo social (oi?). Estamos esperando a definição do que seja isso, porque dizer que é algo que se contrapõe ao “nefasto garantismo do criminoso”, sinceramente…Precisamos sair da mesa de bar!

Outro mito explorado pelo "garantismo penal" é o da prevalência da função ressocializadora da pena. Simplesmente ignoram as finalidades retributiva e preventiva, afirma o autor. Como assim? Vamos relembrar? Ferrajoli é um justificador do sistema! Ele defende um utilitarismo reformado, apostando na função preventiva da pena! Mais: ataca, veementemente, a tal finalidade ressocializadora,  já  que incompatível com o postulado positivista da separação entre direito e moral. Ferrajoli afirma que o sujeito desviante tem direito à imoralidade e, portanto, não pode ser “corrigido".

Enfim, é muito preocupante (para dizer o menos) ver uma teoria tão complexa e refinada ser tratada com tamanha leviandade, atacada sem critério algum. Manias que temos por aqui: falar mal de um autor sofisticado como Ferrajoli, sem abrir uma página de sua obra. E nem precisaria ir ao "Principia". Bastaria um pouco de “Direito e Razão" para dar conta!!!

Mais do que nunca, precisamos resistir!!! PRECISAMOS FALAR SOBRE GARANTISMO. Precisamos tirar os mitos, as mentiras, as falácias, as desqualificações grosseiras, os achincalhes tacanhos e verborrágicos.

Claro que a teoria apresenta pontos de tensão, tem problemas epistemológicos, é passível de críticas! Como toda teoria complexa e de muito fôlego! Mas vamos fazê-las com seriedade acadêmica! Por favor!!

Se o garantismo é um incômodo, sinto muito, mas só há uma alternativa: estudar!


Notas e Referências:

[1] http://www.conjur.com.br/2016-out-03/eduardo-viegas-premissas-universais-garantismo-penal-sao-falsas


ana-claudia-bastos-de-pinho. . Ana Cláudia Bastos de Pinho é Doutora em Direito (UFPA). Professora de Direito Penal da UFPA e Promotora de Justiça (MPPA). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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