Descriminação de Drogas e seus Desafios. Breve análise sobre a Política Nacional de Drogas

23/09/2023

Diante da repercussão sobre descriminalização de drogas destinadas para o uso pessoal, originam-se diversas dúvidas – e com razão – no entanto o tema carece de uma atenção especial.

Dá-se o início ao Recurso Extraordinário 635.659, o fato acontecido no interior de um centro carcerário no estado de São Paulo, onde um dos detentos foi encontrado com uma quantia de 03 (três) gramas de maconha (cannabis sativa), sendo ele processado e condenado posteriormente.  Diante da ocorrência originou-se a ação movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo esclarecendo que o fato é somente prejudicial para a saúde do usuário, não sendo a apreensão uma afronta a saúde pública.

Sabemos que a questão dos entorpecentes é diretamente relacionada com a saúde pública, e de fato, o maior causador desta é a traficância, mas precisamos distinguir o que é a traficância do usuário de entorpecentes.

Com isto, temos o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a ação que pode descriminalizar a posse de entorpecentes para o uso pessoal. Contudo diversos posicionamentos são criados e difundidos.

Inicialmente, devemos esclarecer que o art. 28 da Lei 11.343/2006, que define as condições do usuário de entorpecentes, não prevê a pena privativa de liberdade, ou seja, é Despenalizado, de certa forma, tendo formas alternativas para o cumprimento da punição, sejam elas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

No entanto, o que temos em debate atualmente, é a Descriminalização da conduta de que quem adquiri, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo entorpecentes. Com a descriminalização não poderá sequer ter as punições citadas acima.

Hoje, contamos com um número enorme de pessoas que são detidas pelo art. 28, ou seja, pessoas que foram abordadas não efetuando a prática da traficância, mas sim, a atividade propriamente de estarem com os entorpecentes para o uso próprio. Sabemos que todo o tramite legal é burocrático e composto por diversas etapas, no entanto, a efetivação de todo processo legal, desde o flagrante, condução, inquérito policial, processo judicial e a execução das medidas alternativas, gera a movimentação da máquina judiciária - mesmo que falamos sobre o JECRIM (Juizado Especial Criminal).

E pior, traz prejuízos irreparáveis para o processado, visto que constará em seus antecedentes criminais – bem como a folha de certidão de objeto e pé – que foi processado anteriormente.

Sabemos que conforme o ordenamento jurídico brasileiro a autolesão não é punível, ou seja, o indivíduo que pratica a lesão contra si mesmo, não afetando bem jurídico alheio, não há crime. Descritivamente temos o princípio da lesividade.

Com base nesse esclarecimento, temos a questão: Seria, então, o usuário de entorpecentes que destina somente a droga para uso próprio, que lesa a própria saúde, abrangido pelo princípio da lesividade?

A mera análise, sim, estaria.  Então por que temos um artigo que pune a conduta? Sendo que exemplos similares relativo à autolesão não são punidos?

Para isto analisaremos a Política Nacional Antidroga - que fique claro, a análise consiste nas práticas e ações governamentais e legislativas que houve desde a implementação do Decreto-Lei n. 891/1938.

Sabemos então que desde a efetivação do Decreto-Lei, há uma conduta atuante do estado que visa coibir, uso, produção e comercialização de entorpecentes em território nacional, bem como, a importação.

Como já citado anteriormente, temos o fato de que entorpecentes são um caso diretamente ligado a saúde pública, para isto, o legislador decide "punir" o usuário, como uma maneira de coibir o uso, não só a prática da traficância, e isto se manteve no art. 16 da Lei n. 6.368/1976, bem como no art. 28 da Lei 11.343/2006 que revogou a Lei de 1976.

Temos que nos pautar que com o lapso temporal, desde o início da legislação que prevê as condutas tipificadas do tráfico de entorpecentes iniciada em 1938, e que houve mudança de pensamento e posicionamento da sociedade, e claro, cabe ao judiciário evoluir seu posicionamento juntamente.

Em comparação a demais países, que diferentemente de nós, já legalizaram entorpecentes como Portugal, Uruguai, Holanda e Canadá, ressalta-se o último que esperava que a população consumidora de maconha viesse a crescer após a legalização, viu essa apenas aumentar 1% após um ano da legalização. Importante ressaltar neste caso, que a população que fazia o uso de maconha apenas trocou seu meio de adquirir esta, antes pelo mercado ilícito e agora pelo mercado regulamentado.

No entanto isto nos demonstra um outro problema: o mercado diante da legalização. Portugal e Uruguai enfrentam atualmente este problema.

Na antiga Lusitânia, hoje Portugal, que já em 2001 descriminalizou a posse para uso pessoal de maconha, cocaína e heroína, e legalizou a venda por meio de farmácias em fevereiro de 2021 por meio de receitas médicas, enfrenta o problema de quem é usuário principalmente de maconha e não possui receita médica vem a recorrer ao tráfico de drogas para adquirir o entorpecente. Atualmente estima-se que cerca de meio milhão de portugueses são usuário de maconha.

Do outro lado do oceano, Uruguai enfrenta a mesma situação. Sendo legalizado desde 2013 o uso recreativo da maconha, esta que pode ser adquirida por cultivo próprio, comprada em clubes ou em farmácias – ressalta-se sem prescrição médica – ainda enfrenta a situação que grande parte dos consumidores de maconha adquirirem o entorpecente no mercado não legal.

Isto nos demonstra que não é somente uma tarefa de legalizar entorpecentes, ou estabelecer um percentual mínimo para ser classificado como usuário, mas sim que requer uma estrutura completa e complexa que contemple todas as situações, desde uso, comércio, produção e logística, mas que também trate sobre educação da população sobre entorpecentes de maneira geral, visando o melhor para a saúde pública.

Embora como fora dito anteriormente, mesmo sendo uma tarefa complexa, não podemos mais adiar e manter o posicionamento de processar milhares de pessoas anualmente pela mera posse de entorpecentes para uso próprio, gerando um desgaste desnecessário ao judiciário, um dano irreparável para o indivíduo processado e uma ação desproporcional as populações vulneráveis – que mais sofrem com o fato. 

Como percebemos diversos países se encontram em situações mais avançadas que a nossa, mesmo que tenham encontrado empecilhos, cabe a nós apreendemos com os exemplos deles e melhorarmos as políticas públicas para adaptar nossa sociedade.

Diante disso, caberá ao Supremo Tribunal Federal estabelecer se decide pela inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006, e com isso optando pela descriminação de quais entorpecentes bem como sua quantidade, tanto como cultivo. Esperamos que se for essa a decisão do Supremo Tribunal, os demais poderes virão a agir de maneira a colaborar com a decisão tomando atitudes que prezem pelo desenvolvimento da sociedade lhe oferecendo estrutura e as condições necessárias.

 

Notas e referências

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