DESCONSTRUINDO A NOÇÃO DE PRECEDENTES JUDICIAIS E CONSTRUINDO TÉCNICAS DE PADRONIZAÇÃO DECISÓRIA

16/04/2021

  Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que trouxe novidades como as súmulas vinculantes e a repercussão geral, começou-se a ensaiar no direito brasileiro a construção de uma teoria dos precedentes judiciais. Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, alguns autores[i] chegaram a afirmar que tal teoria não só estava construída, como também estava devidamente aplicada no então novo texto legal e seria adequada ao marco teórico do Estado Democrático de Direito.

Após 5 anos de vigência do CPC, não seria ousadia concluir que a noção de precedentes judiciais não passou mesmo do ensaio iniciado em 2004. De fato, houve, com a promulgação do CPC, uma considerável mudança no que concerne à relevância da jurisprudência e quanto aos meios para construir uma jurisprudência uniformizada e garantir sua aplicação aos demais casos. Mas seria completamente equivocado compreender tal mudança como a implementação de uma teoria dos precedentes judiciais.

A palavra “precedente” se refere àquilo que é prévio, que precede, que antecede. E não é isso que criamos no nosso sistema. Neil MacCormick e Robert Summers afirmam que os precedentes são decisões passadas que servem de modelo para decisões futuras e que uma parte da razão humana consiste, exatamente, em utilizar lições do passado para resolver problemas atuais e futuros[ii].

A partir da compreensão do conceito de “precedente”, torna-se possível compreender que isto não existe no direito brasileiro e que o que CPC/2015 não criou um sistema de aplicação dos julgados passados aos casos futuros. O que é chamado de precedente sequer precede à alguma coisa. Sabe-se que um determinado julgado será chamado de “precedente vinculante” antes mesmo que ele seja julgado, desde o momento em que se instaura um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, um Incidente de Assunção de Competência ou se afeta determinada matéria em Recursos Especial ou Extraordinário Repetitivos, ou seja: antes mesmo que esse julgado possa preceder a qualquer outro procedimento.

Criaram-se, na verdade, padrões de decisão e mecanismos para construir provimentos jurisdicionais padronizados. Por isso, a sugestão já adiantada no título deste artigo é que seria correto compreender que nossa legislação deixou de lado a noção de precedentes judiciais e começar a reconhecer que, na verdade, trabalham-se técnicas de padronização decisória.

Isso fica ainda mais claro quando se constata a utilização de inteligência artificial nos julgamentos, o que já foi implementado pelo Supremo Tribunal Federal, que adotou o robô Victor, ainda em fase de treinamento, como ferramenta de leitura de autos processuais, identificador e classificador de demandas idênticas que tragam questões previstas em teses de repercussão geral. Ferramentas semelhantes também já são adotadas nos Tribunais estaduais[iii], permitindo, assim um eficiente “julgamento massivo de demandas aparentemente repetidas ou iguais (repetitivas), cenário em que um sem-número de casos serão decididos por um só clique”[iv].

Portanto, o que se chama de aplicação de precedentes é, em verdade, uma aplicação mecânica de um provimento jurisdicional, construído por meio de uma técnica destinada a uniformizar entendimentos judiciais, a outros casos, normalmente de forma massiva. Ou seja: estabelece-se um padrão, um modelo de julgamento para ser adotado em outros procedimentos considerados idênticos. Isso representa, em verdade, um resgate ao direito jurisprudencial mecânico do common law inglês.  

Antes mesmo da vigência do CPC atual, Dierle Nunes já apontava não existir, no Brasil, “uma teoria idônea dos precedentes, ocorrendo uma formação equivocada de padrões decisórios e uma preocupante aplicação mecânica desses padrões pelos julgadores do primeiro e segundo grau”[v], o que significa que houve pouca mudança com o CPC/2015.

Vale lembrar que o art. 926 do CPC determina que “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” e que este artigo faz parecer que buscamos aquela integridade trabalhada por Ronald Dworkin, capaz de estruturar um sistema de precedentes.

Dworkin apresenta uma visão historicista da construção do Direito, em que se alcançaria uma única resposta correta para os problemas jurídicos a partir de uma análise histórica das decisões judiciais, afirmando que se exige que “os juízes estudem os repertórios jurídicos e os registros parlamentares para descobrir que decisões foram tomadas pelas instituições às quais convencionalmente se atribui poder legislativo”[vi].

Não é difícil perceber que as técnicas implementadas no CPC/2015 não pretendem uma construção histórica do provimento jurisdicional, bastando que haja, em verdade, um posicionamento firmado por uma maioria, e que, a depender do procedimento adotado para alcançar esse posicionamento, deverá ser aplicado nos demais casos idênticos, de forma quase mecânica. Por isso, é preciso interrogar o que o nosso legislador quis dizer com essas três palavras: estabilidade, integridade e coerência.

Hoje, passados mais de 5 anos da vigência do CPC, talvez tenha ficado claro que a intenção seja dizer que precisamos de padrões. Criamos mecanismos por meio dos quais conseguimos reunir lides repetitivas, que tratam da mesma questão de direito, para alcançar, para todas elas um mesmo provimento jurisdicional. Ou seja: não se busca no CPC a implantação de um sistema de precedentes.

Assim, a estabilidade, integridade e coerência, previstas no art. 926 do CPC, referem-se apenas à identidade de provimentos jurisdicionais, nada tendo a ver com a integridade de Dworkin, que gostaria que os juízes, na verdade, se preocupassem com a trajetória histórica da jurisprudência, a fim de lhes garantir coerência, o que não impediria que uma decisão atual fosse diversa da anterior. Ele até se vale da ideia de um “romance em cadeia” e em romances podemos ter reviravoltas, certo? Desde que guarde coerência com o restante da história. E, embora o art. 489, § 1º, IV, do CPC, mencione a possibilidade de um juiz deixar de aplicar um entendimento jurisprudencial caso este tenha sido superado, não há esclarecimento no texto legal sobre como pode ocorrer tal superação. Vê-se que no “romance em cadeia brasileiro” não há reviravoltas. Apenas o art. 986 do CPC aborda a possibilidade de revisão de uma tese, admitindo a provocação para tanto apenas do Ministério Público e da Defensoria ou ainda do próprio Tribunal, ou seja, com limitadíssima legitimidade ativa. Essa limitação da legitimidade para postular a superação do padrão faz como que o entendimento jurisprudencial se torne imune à crítica, e, por isso, os procedimentos de resolução de demandas repetitivas não apresentam qualquer compatibilidade com o Estado Democrático de Direito.

Uma teoria dos precedentes não se pode limitar somente à questão da necessária aplicação de uma decisão passada a uma lide futura, sendo necessário analisar como essa decisão passada foi construída. Em um contexto democrático, tem-se por inviável a utilização de uma decisão autoritária como precedente vinculante. Obviamente, tal análise não ocorre no atual sistema de padronização decisória, o qual também inviabiliza a desconstrução do modelo construído, inexistindo técnicas viáveis para tecer críticas sobre os entendimentos uniformizados.

A partir desses esclarecimentos, surge uma nova interrogação: qual é a relevância em compreender que não estamos tratando de precedentes? Tal compreensão faz com que se continue o ensaio de instauração de uma verdadeira teoria de precedentes, buscando-se, ainda, uma teoria que seja adequada ao Estado Democrático de Direito, e não somente uma simples importação do modelo norte-americano e nem se conformando com a ilusória eficácia de julgamentos mecânicos em que tão somente se garante a perpetuação de um entendimento jurisprudencial.

O problema não se encontra na importação de mecanismos de outros modelos jurídicos ou na busca de meios mais céleres para julgar questões repetitivas, mas sim na falta de teorização e pesquisa acerca do problema, além de se encontrar, ainda, na ausência de preocupação em indicar uma teoria que atenda às diretrizes do Estado Democrático de Direito.

 

Notas e Referências

[i] A título de exemplo, vale mencionar Hermes Zaneti Junior, que, em sua obra “O Valor Vinculante dos Predecentes”, aponta que teria o CPC/2015 alcançado um sistema democrático de precedentes judiciais. (ZANETI JUNIOR, Hermes. O Valor Vinculante dos Precedentes: Teoria dos Precedentes Normativos Formalmente Vinculantes. Salvador: Juspodivm, 2016).

[ii] MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting Precedents: a comparative study. Londres: Routledge, 1997, p. 1.

[iii] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINSA GERAIS. TJMG utiliza inteligência artificial em julgamento virtual. Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/tjmg-utiliza-inteligencia-artificial-em-julgamento-virtual.htm#.YHWXROhKjIU . Acesso em 13 abr. 2021.

[iv] VIANA, Antônio Aurélio de Souza. Juiz-robô e a decisão algorítmica: a inteligência artificial na aplicação dos precedentes. In: ALVES, Isabella Fonseca (org.). Inteligência Artificial e Processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 37.

[v] NUNES, Dierle. A Litigância de Interesse Público e as Tendências “não Compreendidas” de Padronização Decisória. Revista de Processo, Vol. 199, setembro/2011, p. 82.

[vi] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 272.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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