Desastre Climático no Rio Grande do Sul e os limites do Estado (de bem-estar) de Direito

31/05/2024

Os alagamentos sequenciais que começaram a atingir o Estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024, afetando quase a totalidade dos municípios gaúchos, tornou ainda mais evidente uma característica dos modelos de bem-estar contemporâneos: seu princípio, que é a diluição dos riscos sociais entre os participantes de uma determinada comunidade política, não é mais – como um dia já foi – suficiente[1]. Diante de suas crises fiscais-financeiras, filosóficas, antropológicas e ideológicas bem vistas tanto por Pierre Rossanvallon quanto por Jose Luis Bolzan de Morais[2], e diante dos limites de suas próprias condições de possibilidade, indo além das conhecidas e cíclicas crise do capitalismo e, no Brasil, de já bem debatidos déficits de republicanismo, a solução de compromisso do pós-guerra – como define Avelãs Nunes[3] – parece ter encontrado seus limites mais sensíveis: a catástrofe climática com impactos sociais gravíssimos nos alcançou, e o Estado – assim como muitas vezes o Direito – chegou tarde. Para muita gente, tarde demais.

O ponto, entretanto, é que talvez o saldo do que vimos – e ainda estamos cotidianamente assistindo no RS – parece há tempos refletido nas intensas discussões previdenciárias, nos contumazes colapsos na saúde pública ou em sistemas públicos de ensino deficientes: a estrutura pública orientada a diluição de nossos riscos sociais não dá conta das aproximações necessárias para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária. Direitos sociais com “qualidade” precisam ser “comprados”, como já naturalizamos tanto com saúde quanto com educação, por exemplo.

Mas o que dizer das enchentes (no plural mesmo) no Estado mais meridional do Brasil?

Na especificidade desse exemplo, diante da hostilidade da natureza bem marcada, também, pela mão do Homem, as promessas da modernidade não deram conta sequer dos primeiros-socorros, mas tornaram evidente um cenário distinto: sem o voluntariado atuante principalmente em resgates, albergagem e alimentação – cerca de 15 mil pessoas, considerando apenas os inscritos –, a condição do Rio Grande do Sul seria, no epicentro dos eventos sócio-climáticos, ainda mais delicada, reconfigurando a perspectiva de que “a carência de novos serviços públicos requer sempre a criação de novas estruturas estatais ou de que a única alternativa aos serviços estatais é a privatização”[4].

Muito por isso, talvez o exemplo drástico seja oportuno para trazer à tona a discussão sobre novos paradigmas responsivos à perspectiva jurídica de programas de bem-estar. Sem inventariar um catálogo de possibilidades nesse sentido – mas partindo da premissa de que os modelos centrados tanto no mercado quanto no Estado estão exauridos –, comunga-se da ideia de que “afiguram-se promissoras concepções que colocam a comunidade ao lado do Estado e do mercado como o tripé que sustenta o universo público, próprio do comunitarismo responsivo”, ou seja, uma das matrizes do pensamento comunitário que se inaugura na tradição aristotélica e perpassa as tradições judaico-cristã e utópica, o liberalismo – como uma espécie de anticomunidade –, o ideário socialista e anarquista, os estudos sociológicos voltados ao tema, o próprio pensamento autoritário, o republicanismo cívico e as teorias do capital social[5].

Mas o que é isto, o comunitarismo responsivo? Segundo João Pedro Schmidt[6], a proposta corresponde ao “[...]pensamento sistematizado por intelectuais norte-americanos, que emergiu na cena acadêmica e política na década de 1990, adquirindo ramificações na Europa e em outros países, mas praticamente ausente nos debates acadêmicos brasileiros”. Assim, buscaria a renovação do Welfare State – que em nossos estudos entendemos exaurido[7] – e o equilíbrio entre livre iniciativa e bem-estar social.  Entre as linhas básicas do comunitarismo responsivo estão, entre outros pontos, “a importância da comunidade na existência humana; o indispensável equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, entre bem comum e autonomia individual; o papel da voz moral diante do Estado e do mercado, exercido pela persuasão e pela educação; o fortalecimento da democracia mediante o incremento da representação, da participação e da responsividade da política em relação aos cidadãos”[8].

Embora o voluntariado envolvido nas enchentes do RS alinhe-se muito mais à práxis, ao front dos desdobramentos sociais do evento climático (porque, no limite, não houve tempo para quaisquer deliberações), sua emergência parece um significativo aceno a participações mais republicanas em questões comunitárias. Em outras palavras, talvez a força motriz na coxia do voluntariado concorra para tornar, de fato, a gestão das políticas públicas uma tarefa comunitária, através da “[...] criação de instituições que transformem o Estado em parte da sociedade e esta em parte do Estado, gerando um espaço representativo do bem comum”[9], capaz de quebrar, enfim, o desequilíbrio político que certamente agudiza eventos climáticos como os do RS, como “facilidades ao agrobusiness” etc. Afinal, ao considerar de maneira substancial o fortalecimento da democracia mediante o incremento da representação, da participação e da responsividade da política em relação aos cidadãos, o comunitarismo facultaria a possibilidade de construção de mínimos valorativos, em tese o alicerce fundamental para as tomadas de decisão em espaços e responsabilidades redistribuídos. Parece utópico? Parece. Muito disso talvez reflita o fato de que, “aqui, o Estado precedeu a sociedade civil, o patrimonialismo e o clientelismo vêm de longa data, a participação dos cidadãos nos assuntos públicos mantém-se limitada e o grau de desigualdade econômica e social ainda é um dos maiores do mundo”. São – digamos – nossas “circunstâncias”. Entretanto, parece urgente, também, pensar em novos paradigmas político-jurídicos. A seu modo, os desastres climáticos no Rio Grande do Sul deixam isso muito claro.

 

Notas e referências

[1] Para mais, ver COPELLI, Giancarlo Montagner. A nova crise fiscal-financeira do estado social: observações sobre o esgotamento de um modelo de organização social e política. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas, v. 9, n. 3, p. 392-423, 2021.

[2] Ver BOLZAN de MORAIS, Jose Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. Livraria do Advogado Editora, 2021; ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. UFG, 1997.

[3] NUNES, António Aveläs. As voltas que o mundo dá: reflexões a propósito das aventuras e desventuras do estado social. Lumen Juris, 2011.

[4] SCHMIDT, João Pedro. Amitai Etzioni e o paradigma comunitarista: da Sociologia das Organizações ao Comunitarismo Responsivo. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; LEAL, Mônia Clarissa Hennig (Orgs.). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 15. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2015, p. 138-139).

[5] SCHMIDT, João Pedro. O comunitário em tempos de público não estatal. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; LEAL, Mônia Clarissa Hennig (Orgs.). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 13. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2013, p. 131 – grifo nosso) e SCHMIDT, João Pedro. Comunidade e comunitarismo: considerações sobre a inovação da ordem sociopolítica. In: Ciências Sociais Unisinos, v. 47, n. 3, p. 300-313, 2011.

[6] SCHMIDT, João Pedro. Comunidade e comunitarismo: considerações sobre a inovação da ordem sociopolítica. In: Ciências Sociais Unisinos, v. 47, n. 3, p. 300-313, 2011, p. 306. Conforme o mesmo autor, em 1991 “[...] foi divulgada a plataforma programática do movimento comunitarista responsivo – The Responsive Communitarian Plataform: Rights and Responsibilities –, que ainda hoje constitui o documento referencial dos responsivistas norte-americanos. A versão inicial foi formulada por [Amitai] Etzioni [- sociólogo israelense radicado nos EUA -] e discutida por um grupo de intelectuais vinculados a distintas linhas de pensamento, sendo o documento assinado por 104 personalidades, entre as quais intelectuais, lideranças feministas, negras, hispânicas, representantes religiosos, republicanos e liberais moderados. SCHMIDT, João Pedro. O comunitário em tempos de público não estatal. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; LEAL, Mônia Clarissa Hennig (Orgs.). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 13. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2013, p. 131 – grifo nosso (2015, p. 110 – grifo do autor; colchetes nossos).

[7] Grupo de Pesquisa Teoria Crítica do Constitucionalismo (FDV-CNPq). Dos autores, ver: MOREIRA, Nelson Camatta. Constitucionalismo dirigente no Brasil: em busca das promessas descumpridas. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, 2008; MORAIS, Jose Luis Bolzan de; MOREIRA, Nelson Camatta. Constitucionalismo, Estado de direito e a invisibilidade social que" teima" em continuar. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, 2019; COPELLI, Giancarlo Montagner. A nova crise fiscal-financeira do estado social: observações sobre o esgotamento de um modelo de organização social e política. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas, v. 9, n. 3, p. 392-423, 2021; COPELLI, Giancarlo Montagner. Déficits de republicanismo no Brasil: uma crítica à crítica contemporânea. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, n. 43, p. 119-136, 2020.

[8] SCHMIDT, João Pedro. Amitai Etzioni e o paradigma comunitarista: da Sociologia das Organizações ao Comunitarismo Responsivo. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; LEAL, Mônia Clarissa Hennig (Orgs.). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 15. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2015, p. 110 – grifo nosso).

[9] SORJ, Bernardo. A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 121.

 

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