Desapropriação indireta: a inconstitucional prática de tomar a propriedade privada “na mão grande”

07/02/2017

Por Alexandre dos Santos Priess - 07/02/2017

A Administração Pública, no exercício de suas funções, está autorizada a intervir na propriedade privada (art. 5°, caput, e seu inciso XXII, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, CRFB/88), vale dizer: dispõe da prerrogativa de limitar o exercício daquela nos termos da Lei Fundamental. Para tanto, é dotada de diversos instrumentos jurídicos, entre eles: a) servidão administrativa; b) ocupação temporária; c) limitações administrativas; d) tombamento; e) requisição administrativa e f) desapropriação. Todos são mecanismos de intervenção urbanística. Para a implementação destes, há que se observar pressupostos legais, afinal, tratam-se de “privilégios” do Estado, mas, que, por evidente – em se tratando de um Estado Democrático de Direito (art. 1°, caput, da CRFB/88) – estão sujeitas ao regramento Constitucional.

Entre as modalidades interventivas existem as: a) restritivas, também chamadas de brandas, ou seja: que impõe ônus ou limitação de exercício, mas sem atingir o direito de propriedade da pessoa e, as b) supressivas ou drásticas, vale dizer: aquelas em que o Estado retira a propriedade do sujeito e transfere o bem para sua esfera de direitos.

Consideram-se modalidades interventivas restritivas (brandas): a servidão, a requisição, a ocupação temporária, as limitações administrativas e o tombamento. A supressiva (drástica), por sua vez, se materializa nas diversas subespécies de desapropriação. Esta se realiza por utilidade pública; necessidade pública; interesse social; com fins urbanísticos e rurais.

Há, ainda, uma forma de desapropriação que a doutrina chama de desapropriação indireta (ou apossamento administrativo). Esta é originária do Direito Francês[1].

Entende-se por desapropriação indireta a incorporação fática do patrimônio do particular, pelo Estado, sem as exigências legais da desapropriação[2]. Trata-se de ofensa inequívoca às garantias fundamentais da Constituição.

Em verdade, não se trata, tecnicamente, de uma espécie de desapropriação, mas de um abuso (isto mesmo: um abuso, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello[3]) do Estado quanto ao exercício de suas prerrogativas. Um arremedo de intervenção do Estado na propriedade privada. Em palavras bem simples: o Estado (Democrático de Direito?) toma o bem imóvel do particular “na mão grande” (Pode isto?) e, depois, o prejudicado, “corre” atrás do prejuízo por intermédio de ação judicial para se ver (em um futuro bastante distante) ressarcido.

Para Rafael Carvalho Rezende Oliveira[4] a desapropriação indireta pode ser concretizada: a) mediante o apossamento administrativo (definitivo e ilícito) de um bem pela Administração Pública ou b) por intermédio de atos lícitos do Poder Público que afastam os poderes inerentes à propriedade do particular. Exemplo da primeira situação: é a edificação de um prédio, pela Administração, que abrigará um posto de saúde e que avança e se apossa do bem imóvel do vizinho lindeiro; no segundo caso, imagine-se a proibição de trânsito em determinada rua para o conserto de tubulação de esgoto danificada que impeça o acesso, por vários dias, a um supermercado. Nos dois casos é viável o ressarcimento dos prejuízos suportados. O objeto deste estudo cinge-se apenas aos casos de apossamento definitivo abusivo.

Trata-se de uma prática consolidada na jurisprudência e encontra fundamento no art. 35 do Decreto-lei 3.365/41. Em idêntico sentido o art. 21 da Lei Complementar 76/93. Neste caso, porém, para as desapropriações indiretas de imóveis rurais[5]. Há, no entanto, proibição no art. 46 da Lei Complementar 101/00.

Um apossamento administrativo com essas características, portanto, configura-se em “esbulho inconstitucional”, afinal, o Estado ingressa no bem do particular sem qualquer observância à garantia fundamental do devido processo legal (art. 5°, LIV, da CRFB/88) e em escancarada afronta ao direito constitucional de propriedade e sua função social (art. 5°, caput, XXII, XXIII, art. 170, II e III, todos da CRFB/88). Até porque a função social da propriedade não é entendida apenas contra o proprietário de modo a legitimar a expropriação de patrimônio pelo Estado.

É grave violação constitucional, pois o Estado detém instrumentos constitucionais e legais de expropriar a propriedade privada. Não pode aviltar garantias fundamentais mínimas, que protegem a pessoa em tão relevante assunto de sua esfera de interesses, quando se detém instrumentos específicos que controlam sua intervenção em bens privados.

Viável, nesse caso, ação possessória[6]. Reconhece-se, porém, que uma vez afetado o bem, ou seja: definido e consumado o destino do imóvel e implementado o serviço público (irreversível o quadro fático), não será mais possível aviar ação possessória.

Ao proprietário do bem objeto da desapropriação indireta cabe apenas promover ação de conhecimento com pedido condenatório contra o ente estatal com o objetivo de ser ressarcido. Entenda-se: o imóvel não será restituído ao proprietário, mas apenas indenizado o sujeito que perdeu o bem. O objetivo, portanto, será a recomposição do patrimônio.

Por se tratar de ação com caráter real[7][8] deve ser ajuizado no foro da situação da coisa, conforme, art. 47 do CPC[9].

A indenização deve recompor, na totalidade, o patrimônio expropriado pelo Estado. Portanto, essencial a realização de perícia. Prova técnica esta que deve ser custeada pelo ente estatal expropriante, uma vez que não pode ser premiado por sua conduta ilícita e, ainda assim exigir do autor (que sofreu perda patrimonial) o adiantamento de tal importante despesa. Deve ser levado em conta[10] o valor real e atualizado do imóvel ainda que, como consequência de obra pública implementada, o bem tenha valorizado. Igualmente, eventual desvalorização do imóvel por fatores urbanísticos também será computada contra o expropriado.

No cômputo da indenização devem ser acrescidos juros compensatórios[11] e moratórios[12]. Honorários advocatícios, evidentemente, são devidos[13].

A prescrição da pretensão indenizatória é tema controverso e perpassa a imprescritibilidade até o exíguo lapso temporal de cinco anos[14]. O primeiro, no que pese soar exagerado, parece fazer justiça à postura arrogante do Estado. O segundo é reduzidíssimo. Tem-se, assim, que o prazo prescricional para as ações indenizatórias por desapropriação indireta é de quinze anos (art. 1.238, caput, do CC) e poderá ser reduzido para dez anos, nos casos do parágrafo único, do citado artigo, do Código Civil, a saber: quando o possuidor fixar no imóvel sua moradia habitual ou realizar obras ou serviços de caráter produtivo[15].

Por derradeiro, anota-se que, muito embora o expropriado encontre fundamento para demandar, em Juízo, os prejuízos sofridos, conclui-se que se trata de prática inconstitucional e que viola diretamente a garantia fundamental do devido processo legal (art. 5°, LIV, CRFB/88) e ao direito constitucional de propriedade e sua função social (art. 5°, caput, XXII, XXIII, art. 170, II e III, todos da CRFB/88). Infelizmente, incorporou-se ao comportamento do Administrador Público brasileiro, mas que merece o repúdio da comunidade jurídica, a fim de evoluir a se configurar como ato de improbidade, com o objetivo de compelir o Gestor Público a utilizar, única e exclusivamente, os diversos outros instrumentos de desapropriação da propriedade privada. Que não são poucos. É exagerada tal proposição? Sim, tal qual a arrogância e a fome do Poder Público. Mas, talvez seja um caminho à solução em favor da obediência à Força Normativa da Constituição.


Notas e Referências:

[1] ARAÚJO, Claudia Rezende Machado de. Desapropriação indireta. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a.33 n. 131 jul./set. 1996, p. 271.

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 845.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 845.

[4] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 611-612.

[5] NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 6. ed. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 783.

[6] ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1173.

[7] STF, Pleno, Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade n. 2260 , Rel. Min. Moreira Alves, julgada em 14/2/2001.

[8] ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1173. Contra (para quem se trata de ação pessoal): CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 926.

[9] Art. 47.  Para as ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro de situação da coisa.

§ 1oO autor pode optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição se o litígio não recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova.

§ 2oA ação possessória imobiliária será proposta no foro de situação da coisa, cujo juízo tem competência absoluta.

[10] Prova técnica equacionará o valor do bem.

[11] Estes juros são de até 12% ao ano, contados da efetiva ocupação do imóvel pelo expropriante, ou seja: da perda do bem pelo expropriado, incidentes sobre o valor da indenização fixada na sentença, devidamente atualizado. A constitucionalidade da variabilidade destes juros é duvidosa. Ver STF, ADI (MC) 2.332. Lição de: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 932.

[12] Estes juros são de até 6% ao ano, contados a partir do dia 1 de janeiro do ano seguinte aquele em que o pagamento deveria ser efetuado, incidentes sobre o valor da indenização fixado na sentença, somados aos juros compensatórios, conforme S. 102 do STJ. A constitucionalidade da variabilidade destes juros é duvidosa. Ver STF, ADI (MC) 2.332. Lição de: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 931.

[13] No ponto, a MP n. 2.183-56/2001 fixou a verba honorária entre 0,5% e 5% sobre o valor da diferença entre a indenização fixada na sentença e o preço oferecido pelo expropriante. Neste caso, tem-se típico caso de aviltamento dos honorários do profissional da advocacia, portanto, inconstitucional, razão por que se comunga do entendimento de que a remuneração do advogado deve seguir o CPC (art. 85, §3°).  Lição de: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 933.

[14] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 928-931.

[15] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 612-613.


Alexandre dos Santos Priess. Alexandre dos Santos Priess é Mestrando em Ciência Jurídica no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Especialista em Direito Público. Professor de graduação e pós-graduação em Direito (UNIVALI). Professor da Escola da Magistratura do TRT12. Advogado militante. E-mail: alexandrepriess@hotmail.com..


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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