Desacato continua a ser crime – Por Ricardo Antonio Andreucci

01/06/2017

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento ocorrido no dia 24 de maio próximo passado, nos autos do HC 379.269/MS, tendo como impetrante a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul e como impetrado o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, por maioria de votos, decidiu que o desacato continua a ser crime.

Com essa decisão, o Superior Tribunal de Justiça pacificou a questão, que se tornou controversa no início deste ano, a partir de outra decisão monocrática do Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca, da Quinta Turma, proferida nos autos do “habeas corpus” mencionado, que entendeu ser a tipificação do desacato contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) por afrontar a liberdade de expressão.

É conveniente recordar que o crime de desacato vem previsto no art. 331 do Código Penal, tendo como objetividade jurídica a proteção à Administração Pública, no que diz respeito à dignidade e ao decoro devido aos seus agentes no exercício de suas funções.

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, inclusive o funcionário público fora do exercício de suas funções. Com relação ao desacato praticado por funcionário público no exercício da função, divide-se a doutrina e a jurisprudência.

Uma primeira orientação é no sentido de que o funcionário público não comete crime de desacato quando estiver no exercício da função, já que tal delito insere-se no capítulo dos “Crimes praticados por particular contra a Administração”.

Uma segunda orientação posiciona-se no sentido da possibilidade de desacato por funcionário público apenas quando praticado contra superior hierárquico.

A terceira orientação, mais abrangente, sustenta a possibilidade de desacato por funcionário público em qualquer circunstância, uma vez que o bem jurídico tutelado é o prestígio, a dignidade e o respeito à função pública. Assim, nada impede a ocorrência de desacato praticado, por exemplo, por policial militar contra Juiz de Direito durante depoimento judicial; ou por escrevente contra Promotor de Justiça no exercício da função; ou por Juiz de Direito contra Juiz de Direito; ou ainda por Promotor de Justiça contra Promotor de Justiça etc.

Sujeito passivo do crime é o Estado e, secundariamente, o funcionário que sofre o desacato.

A conduta típica vem expressa pelo verbo “desacatar”, que significa desrespeitar, desprestigiar, ofender, menosprezar, menoscabar, humilhar o funcionário público no exercício da sua função ou em razão dela. O delito pode ser cometido por meio de gestos, palavras, gritos, vias de fato, ameaça etc.

Na modalidade “ofensa cometida no exercício da função” (‘in officio’), o desacato deve ocorrer no momento em que o funcionário, investido da função, é ofendido.

Já na hipótese de “ofensa cometida em razão da função” (‘propter officium’), o desacato deve se referir ao exercício da função, embora o sujeito passivo não a esteja exercendo naquele momento.

É necessário que haja um nexo de causalidade entre a conduta (o ato de desacatar) e o exercício da função - nexo funcional.

É indispensável, ainda, que o desacato seja cometido na presença do funcionário público, não importando se a ofensa é cometida perante outras pessoas. Se a ofensa não for cometida na presença do funcionário público, estará caracterizado, em tese, crime contra a honra.

Trata-se de crime doloso, que deve abranger o conhecimento da qualidade de funcionário público do sujeito passivo.

O delito se consuma com o efetivo ato de ofensa, independentemente de o funcionário público sentir-se ofendido, bastando que a conduta possa agredir a sua honra funcional. Trata-se de crime formal. Em tese, é admissível a tentativa.

Vale ressaltar que o crime de desacato absorve infrações menores como vias de fato, difamação, lesão corporal leve etc. Se houver infração mais grave, haverá o concurso de crimes.

Discute-se na doutrina e na jurisprudência se o “ânimo calmo e refletido” do agente seria elemento imprescindível à caracterização do crime de desacato. Entendemos que não, estando o crime configurado ainda que o agente se encontre em estado de exaltação e ira. Há, entretanto, respeitáveis posições em contrário.

Com relação à embriaguez do agente, o mesmo dissídio se instala na jurisprudência, sendo nosso entendimento o de ser ela irrelevante na aferição do elemento subjetivo do crime de desacato.

Voltando ao acórdão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Antonio Saldanha Palheiro, autor do voto vencedor, entendeu que a tipificação do desacato como crime seria uma proteção adicional ao agente público contra possíveis ofensas sem limites, nada impedindo que o cidadão se manifeste livremente, desde que o faça com “civilidade e educação”. Asseverou, ainda, o ministro, que a responsabilização penal por desacato se justifica para inibir excessos, constituindo uma salvaguarda para os agentes públicos, expostos a todo tipo de ofensa no exercício de suas funções.

Por fim, merece destaque também o voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, que, acompanhando o voto vencedor, anotou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, mais de uma vez, já deixou claro que o Direito Penal pode responder a eventuais excessos na liberdade de expressão, ponderando, em contrapartida, que há o crime de abuso de autoridade a punir eventuais arbitrariedades daqueles que, no exercício de suas funções, reagirem de modo autoritário a críticas e opiniões que não constituam excesso intolerável do direito de livre manifestação do pensamento.


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