(Des)medidas contra a corrupção e garantias constitucionais

16/10/2015

Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 16/10/2015

“...os políticos antigos falavam incessantemente de bons costumes e virtudes, os nosso só falam de comércio e dinheiro (...) Que nossos políticos se dignem a suspender seus cálculos para refletir sobre estes exemplos, e que aprendam de uma vez por todas que se tem tudo com dinheiro, salvo bons costumes e cidadãos.”

Rousseau

Corrupção política, como tudo mais, é fenômeno histórico. Como tal, ela é antiga e mutante. Os republicanos da propaganda acusavam o sistema imperial de corrupto e despótico. Os revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus políticos de carcomidos. Getúlio Vargas foi derrubado em 1954 sob a acusação de ter criado um mar de lama no Catete. O golpe de 1964 foi dado em nome da luta contra a subversão e a corrupção. A ditadura militar chegou ao fim sob acusações de corrupção, despotismo, desrespeito pela coisa pública. Após a redemocratização, Fernando Collor foi eleito em 1989 com a promessa de caça aos marajás e foi expulso do poder por fazer o que condenou. De 2005 para cá, as denúncias de escândalos surgem com regularidade quase monótona.”[1]

Os mais abalizados historiadores e estudiosos sobre a corrupção são uníssonos em afirmar que a corrupção é um problema que vem desde a Antiguidade. Trata-se, também, de um problema mundial que atinge países democráticos ou não.

A ideia que os antigos tinham da corrupção é que esta estava atrelada à morte do corpo político e às mudanças que afetam os regimes políticos.

A corrupção, em sentido amplo, abrange todas as formas com que o funcionário público tira proveito de sua atividade para obtenção de indevida vantagem. O objeto da tutela jurídica é a administração pública.

No Brasil, informa Fragoso[2], as Ordenações Filipina, no livro V, título 71, puniam os oficiais del Rei “que recebem serviços ou peitas, e as partes, que lhes dão, ou prometem”. A pena imposta consistia na perda do ofício e multa. Em se tratando de magistrado, a pena variava conforme o valor da peita, podendo chegar ao confisco e até a morte do condenado.

Já o Código do Império previa separadamente a peita (art. 130) e o suborno (art. 133). A peita (art. 130) referia-se à corrupção por dinheiro ou por algum outro donativo. Já o suborno (art. 133) tratava da corrupção por influência ou peditório. As penas para ambos os crimes consistiam na perda do emprego com inabilidade para outro qualquer, além de multa e prisão por três a nove meses[3].

Por seu turno, o Código de 1890 reunia a peita e o suborno sob o mesmo título (arts. 214 e seguintes), ao qual subordinava uma hipótese de concussão.

Interessante observa nos dias atuais a percepção da população brasileira sobre a corrupção. A jornalista Maria Cristina Fernandes[4], ao analisar pesquisa encomendada ao Vox Populi pelo Centro de Referência do Interesse Público[5], constatou que “a legítima indignação nacional com os casos de corrupção que envolvem a elite política não tem levado à compreensão sobre suas origens e seus efeitos”. Segundo Fernandesa corrupção não sai da boca do povo, que nunca achou tão grave, mas seus danos são considerados piores ao interesse público se originária do governo ou dos empresários. E tanto menores se tem como origem os atos do cotidiano dos brasileiros, vítimas que se consideram do Estado e do capital. O policial que achaca um cidadão é um corrupto execrável. O contribuinte que suborna o funcionário público, nem tanto...

Punida desde os tempos dos romanos, a corrupção está presente em todas as sociedades. Contudo, foi nas últimas décadas que esta ganhou uma magnitude desorbitada, atingindo tanto países pobres, como países ricos, tanto governos autoritários, como democracias consolidadas etc.[6]  Assim sendo, ninguém duvida que, talvez hoje mais que outrora, seja necessário combater a corrupção. Entretanto, não se pode, em hipótese alguma, em nome do combate a corrupção ou a qualquer outro crime, por mais ignóbil que seja, violar as regras e os princípios norteadores do Estado Democrático de Direito. No Estado de direito comprometido com a dignidade da pessoa humana os fins não podem justificar os meios. O homem na formulação kantiana não pode se transformar em instrumento (meio) e só pode ser entendido como um fim em si mesmo.

Projetos e propostas que visam reduzir direitos e garantias nada mais são do que tentativas de subverter a ordem constitucional. Assim a proposta da Associação dos Juízes Federais do Brasil ao Congresso Nacional – projeto de lei do Senado 402/2015 - propiciando que, após uma condenação criminal, em segunda instância, por um Tribunal de Apelação, possa operar de pronto a prisão para crimes graves, independente de novos recursos, ou seja, antes do trânsito em julgado.

No mesmo viés autoritário e, porque não dizer, fascista, apresentam-se as propostas apresentadas pelo Ministério Público Federal contra a corrupção, a chamada “10 medidas contra a corrupção” – iniciativa dos procuradores da República que integram a força-tarefa da Operação Lava-Jato - apoiada pela Procuradoria-Geral da República. Trata-se de um conjunto de medidas legislativas propostas para, de acordo com os Procuradores, coibir os delitos que envolvam o desvio de verbas públicas e os atos de improbidade administrativa. A campanha reúne 20 anteprojetos de lei que visam regulamentar as dez (des)medidas propostas, entre elas a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes público e do caixa 2, o aumento das penas, a transformação da corrupção de altos valores em crime hediondo, a responsabilização dos partidos políticos, além de uma reforma na lei processual penal restringindo direitos e garantias.

Não resta dúvida, por mais que se tente dizer e convencer do contrário, que o projeto lei do Senado 402/2015 – proposta da Associação dos Juízes Federais do Brasil - atenta contra o princípio constitucional da presunção de inocência, o qual determina que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII da Constituição da República) e, portanto, afronta a Constituição da República.

Vale aqui a advertência do constitucionalista Paulo Bonavides[7], de que “a lesão a princípio é indubitavelmente a mais grave das inconstitucionalidades porque sem princípio não há ordem constitucional e sem ordem constitucional não há garantia para as liberdades cujo exercício somente se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes absolutos”.

O princípio da presunção de inocência, como bem salienta Luigi Ferrajoli[8], princípio fundamental de civilidade, é fruto de uma concepção garantista “a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”. Ainda, de acordo com o jurista italiano: “se é verdade que os direitos dos cidadãos são ameaçados não só pelos delitos, mas também pelas penas arbitrárias – que a presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica ‘segurança’ fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica ‘defesa’ destes contra o arbítrio punitivo”.

De igual modo, atentam contra os princípios constitucionais e garantistas que norteiam o direito penal e processual penal as “10 medidas contra a corrupção” apresentada pelos procuradores da República. A própria Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) é uma prova viva de que a exacerbação de penas e cerceamento de direitos não levam à redução da criminalidade, como alguns insistem em acreditar e a propalar.

Não é demais lembrar que a famigerada Lei dos Crimes Hediondos foi pensada e promulgada, conforme salienta Alberto Toron[9],em clima de grande emocionalismo, onde os meios de comunicação de massa atuaram decisivamente de forma a exagerar uma situação real da criminalidade, o diploma em estudo trouxe consigo não só questões ligadas à inconstitucionalidade das regras que o integram, mas conduziu-nos a uma verdadeira balbúrdia em termos de razoabilidade punitiva”. Hodiernamente, mutatis mutandis, o mesmo clima de “emocionalismo” e a mesma influência perniciosa da mídia vem alimentando, em nome de um ilusório combate a corrupção, medidas repressoras e violadoras das garantias constitucionais.

Como bem adverte Francesc Barata “os discursos jornalísticos não deveriam ser tão enviesados quando falam da (in)segurança pública, porque estão ajudando a construir aquilo que os sociólogos do desvio denominaram de o ‘falso inimigo’. Os verdadeiros perigos não estão onde o dedo midiático aponta. Os meios de comunicação alimentam uma ideia da (in)segurança que se torna muito fácil de explorar em termos políticos a partir de posições conservadoras”.[10]

Quando se pensa em combater o crime, qualquer que seja ele, necessário todo cuidado para não cair nas armadilhas e tentações autoritárias. Como bem sentenciou Christiano Falk Fragoso[11], “o processo penal na medida em que regula os embates entre autoridade pública e o particular em torno do exercício do poder punitivo, é um campo fértil para manifestações autoritárias”.

No Estado de direito é inadmissível, intolerável e inaceitável flexibilizar direitos e garantias individuais em nome do combate deste ou daquele delito. A investigação, a acusação e o julgamento devem ser orientados pelos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, do juiz imparcial, da proibição de prova ilícita, da proporcionalidade etc.

Para aqueles que ainda se satisfazem com a ilusão de que o direito penal é uma panaceia para todos os males da sociedade, inclusive a corrupção, de que o processo penal deve retroceder ao período medieval e que, ainda, acreditam em tantos outros mitos, vale a lição de Rubens R. R. Casara[12] de que “de todos os mitos que integram no universo processual penal, há um sempre presente em regimes autoritários que se apresentam como Estados de Direito: o de que o processo penal é instrumento de segurança pública/pacificação social. Esse mito surge em meio a um discurso de viés repressivo, no qual se identifica perspectiva utilitarista, reforçadora do caráter instrumental/formal do processo penal...

Não se pode olvidar, diante das diversas propostas de combate a corrupção, que a ditadura militar que se instalou no Brasil após derrubar o Governo João Goulart, em março de 1964, também tinha como pretexto, além de combater o comunismo, combater a corrupção.

De acordo com Heloisa Starling[13],os militares trabalharam tanto com a natureza ditatorial do regime quanto com a posição de vantagem fornecida pela legislação punitiva, o que deu em nada”. Ao final a autora conclui que “o regime militar brasileiro fracassou no combate à corrupção por uma razão simples: só há um remédio contra a corrupção, mais democracia”.

Por tudo, ao invés de aumentar as penas, cercear direitos, abolir garantias e outras medidas draconianas, é necessário, mais do que nunca, fortalecer os direitos, enaltecer as garantias, reforçar os valores éticos e, sobretudo, defender o Estado Democrático de Direito.


Notas e Referências:

[1] CARVALHO, José Murilo. Passado, presente e futuro da corrupção brasileira. Corrupção: Ensaios e criticas/Leonardo Avritzer ... (et. al.). (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

[2] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense,  1986.

[3] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Ob. cit.

[4] FERNANDES, Maria Cristina. A fila dupla não sai nos jornais. Corrupção e sistema político no Brasil. orgs. Leonardo Avritzer e Fernando Filgueiras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiroa, 2011.

[5] O Centro de Referência do Interesse Público da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) encomendou ao instituto Vox Populi, com apoio das fundações Konrad-Adenauer e Ford, pesquisa nacional de opinião pública em maio de 2008 (2.421 entrevistas) e em junho de 2009 (2.400 entrevistas).

[6] PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel e BENITO SÁNCHEZ, Carmen Demelsa. La política internacional contra la corrupción. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo. Ano 19, vol. 89, mar/abr de 2011.

[7] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[9] TORON, Alberto Zacharias. Crimes hediondos: o mito da repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.

[10] BARATA, Francec. Midiatização do direito penal. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, ano 19, números 21/22, 2014.

[11] FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[12] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.

[13] STARLING, Heloisa Maria Murgel.  Ditadura militar. Corrupção: Ensaios e criticas/Leonardo Avritzer ... (et. al.). (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.


Sem título-1 .

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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