Depois das grades, há a família: precisamos falar sobre as avós

13/06/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Diante de um ordenamento socioeconômico que, para sobreviver, ancora-se num processo intenso e intermitente de opressão sobre as mulheres[1], se queremos construir estratégias para efetivar uma real e profunda transformação social, é um imperativo jogar luz sobre contextos que são “invisibilizados”[2], especialmente quando estamos a tratar dos elementos que se inscrevem nas trajetórias daquelas que, para além de serem marginalizadas por delinquir segundo as legislações oficiais brasileiras, são criminalizadas por romperam com um contrato sexual que lhes delega um papel bem diverso do que acabam desempenhando no correr de uma vida que as aprisiona de tantas formas: assim, comecemos nas carceragens, mas compreendamos que a origem, o caminho, e os desdobramentos, estão muito além dos muros das prisões.

De acordo com o Sistema Eletrônico de Execução Unificada (SEEU)[3], o quantitativo de mulheres que estão em cumprimento de pena e que são mães de filhos com idade até 12 anos é de 686, enquanto é de 265 o número de mulheres com filhos de até 6 anos de idade, e 21 a quantidade de mães de filhos com algum tipo de deficiência, além de ser 1.662 a somatória do número total de filhos com mães nessa condição[4].

Observando tais dados e considerando o fato de que o Brasil atualmente ocupa a 3ª colocação no ranking mundial de mulheres encarceradas[5] - sendo também um país no qual, já em 2018, de acordo com o Ministério da Justiça e Cidadania, 74% das mulheres privadas de liberdade eram mães -, há de ser feita uma pergunta bem elementar para pensarmos na complexidade dessa situação: quem cuida dos/das filhos/as cujas mães encontram-se ausentes material e afetivamente de seu convívio em virtude do cumprimento de uma pena no cárcere?

A resposta para tal questionamento majoritariamente tem gênero e parentalidade certos, mas, antes de chegar até aí, é necessário darmos um passo para trás e olharmos para um processo que é anterior ao do encarceramento e que está na base garantidora não só do funcionamento da sociedade capitalista, mas, por conseguinte, também do exercìcio da opressão sobre as mulheres: a tarefa de reprodução social da vida.

Em termos gerais, sabemos que, dentro do modo de produção capitalista, só é possível a acumulação do capital por causa de um engendramento que tem como elemento central a exploração da força de trabalho humana, pois sem ela não haveria produção, geração de valor, ou mais-valia. E para que a força de trabalho, esse precioso bem, se mantenha e se renove de forma contínua, são realizados esforços dentro da seara do que entendemos como trabalho reprodutivo, no contexto do qual, por exemplo, se exercem atividades de cuidado como as realizadas no ambiente doméstico através do cozinhar, do lavar roupas, do criar filhos, e até mesmo da reprodução sexual, dentre outros, fazendo dessa atuação estruturante para o sistema capitalista (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019).

Uma reflexão que se desdobra disso advém do fato de que, em que pese a distinção de papéis sociais entre homens e mulheres - e tudo que vem à reboque deles - ser produto de uma construção social, há toda uma engrenagem ideológica que afirma a sua origem como sendo supostamente de ordem natural, o que implica na associação do trabalho reprodutivo/de cuidado às mulheres, especialmente no espaço do lar/da família, e sem que haja qualquer custo ao capital, visto que, em virtude desse processo de naturalização, a reprodução social não é visibilizada como trabalho a ser remunerado[6].

Mas, o que tudo isso tem haver com a situação das mulheres que são mães e estão privadas de liberdade, assim como com quem vai dar conta do cuidado de seus/suas filhos/as? E o que esse contexto delas tem haver com o funcionamento geral da sociedade? Absolutamente tudo.

Nesse sentido, pensemos no seguinte: se um homem que tem filhos é preso para o cumprimento de uma pena, provavelmente não ocorrerá uma quebra significativa dentro do processo de reprodução social no tocante ao trabalho de cuidado, pois, via de regra, mesmo antes desse tipo de "infortúnio", já deveria haver para ele uma companheira que se ocupava de tal função dentro da dinâmica familiar. Entretanto, se uma mulher que tem filhos/as se vê em igual situação, diante do comumente fenômeno do abandono de mulheres do cárcere por parte de seus companheiros, já não podemos prever a mesma atuação dos mesmos em relação aos cuidados com os/as filhos/as, ficando tal tarefa sob os encargos de outra mulher ou do Estado, por meio de instituições de acolhimento.

E aí, retomando a pergunta inicial do texto, quem são essas outras mulheres que, na ausência das mães privadas de liberdade, efetuam o trabalho de cuidado demandado pelos/as filhos/as que são deixados do lado de fora das grades? Outras mães que, nesse caso, comumente são as avós desses/as meninos/as. Ou seja: garante-se assim que a reprodução social da vida permaneça num circuito feminizado de trabalho não remunerado.

E, sobre tais figuras, é necessário nos atentarmos para algumas questões importantes considerando o perfil daquelas que ocupam a maior parte do metro quadrado do sistema prisional brasileiro - mulheres negras e periféricas -, para que assim consigamos compreender um pouco melhor a complexidade de tais trajetórias de vida.

O primeiro ponto a ser levantado se refere às condições objetivas que engendram o cotidiano tanto das mães que estão nas prisões quanto das avós que são responsabilizadas pelo exercício da criação dos/as netos/as: diante da intensificação dos processos de exploração e expropriação efetivados em nome da acumulação capitalista sobre a classe trabalhadora, é sobre os corpos das mulheres negras e subalternizadas que mais pesa a responsabilidade de manutenção de suas famílias. Desempenhando um papel basilar na reprodução social e sendo ainda provedoras financeiramente dentro de seus lares, essas mulheres dependem da efetivação de políticas sociais que lhes proporcionem condições mínimas de existência, o que as tem colocado em constante posição de vulnerabilidade, haja vista que são exatamente as políticas sociais as que têm sangrado para o  enriquecimento capitalista. Isso significa dizer que a avó, que já passou parte da vida “dando desdobro” para cuidar de seus/suas filhos/as, agora se vê em nova jornada de trabalhos e sacrifícios para suprir as necessidades impostas pelo contexto da privação de liberdade que, para além de estabelecer uma penalização para as mulheres que cometeram crimes[7], a estende também para as famílias das mesmas, na forma de fragilização de vínculos e da transferência de responsabilidades.

Já um segundo ponto se refere ao fato de que há uma lógica perversa dentro dessa dinâmica da responsabilização das avós: elas - por vezes com idade já avançada e com a saúde comprometida por processos de adoecimento decorrentes direta e indiretamente do envelhecimento do seus corpos e de outros fatores, como a somatória de não acessos a direitos básicos - desempenham um papel central de cuidado com netos/as, mas são deixadas à própria sorte no que tange a necessidade de elas mesmas serem cuidadas.

Dessa forma, a junção entre a naturalização da vinculação entre o trabalho de cuidado e as mulheres, a precarização das condições materiais de vida, e a invisibilização das avós como sujeitas demandantes de cuidado, tem potencial para disparar o desenvolvimento de um esgotamento físico e mental nessas mulheres, que mesmo quando não encontram redes de apoio (familiar, comunitária e/ou Estado), seguem resolutas na efetivação de seus deveres, até padecerem. Assim, precisamos falar sobre elas, precisamos construir e fortalecer políticas públicas que efetivamente as atendam em suas demandas, e precisamos sensibilizar atores e atrizes do Sistema de Justiça para que, ao sentenciar uma mulher que é mãe à uma privação de liberdade, considere-se toda a trama de relações e sujeitos/as que sofreram impactos diretos dessa decisão, especialmente filhos/as e avós cuidadoras: precisamos assumir que, a garantia de que todas as pessoas serão cuidadas e viverão com dignidade, necessariamente passa por um processo das lutas coletivas anticapitalistas. Sigamos juntes!

 

Notas e referências 

[1] Quando falamos “mulheres”, isso não significa dizer que estamos homogeneizando e universalizando a categoria, pois compreendemos que na diversidade que constitui tal grupo populacional, há desigualdades operantes a partir de marcadores como raça, classe social, presença de deficiência(s), sexualidade, dentre outros, fazendo com que o processo de opressão se engendre de maneira específica dentro da experiência vivida por cada mulher.

[2] Observe-se que, a bem da verdade, há uma visibilidade quando as mazelas sociais são espetacularizadas pela mídia, quando, por exemplo, são apresentadas à sociedade na figura do bandido mau que precisa ser preso para salvar os cidadãos de bem.

[3] Tal sistema hoje se materializa como uma ferramenta fundamental para a centralização e gestão de processos de execução penal no contexto brasileiro, tendo sido adotada pelo Conselho Nacional de Justiça como política nacional a partir do ano 2016, tomando como base as Resoluções 223/2016 e 280/2019 do CNJ.

[4] A data da última atualização do Painel de Monitoramento do SEEU no momento da verificação dos dados apresentados foi dia 04 de junho de 2023.

[5] A informação foi apontada pelo estudo World Female Imprisonment List (2022), realizado pelo Institute for Crime & Justice Policy Research (ICPR), da Birkbeck College, Universidade de Londres.

[6] Em relação ao trabalho doméstico remunerado, não se trata de coincidência o fato de o mesmo ter sido regulamentado apenas recentemente (ano 2015), contar com salários baixíssimos, e ser exercido por uma esmagadora maioria de mulheres, negras e periféricas. Tal dinâmica é reflexo do lugar secundário e de desvalor que, por interesse do capital, o trabalho de reprodução social aparenta ter, juntamente com o processo de subalternização que suas operadoras por excelência sofrem.

[7] Destaque-se que há, no processo de criminalização e de penalização, a efetivação de uma seletividade penal que determina quem são as pessoas que, ao agir de forma delituosa, irão ou não ser responsabilizadas através do encarceramento.

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Thithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: Um Manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

 

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