DEPOIS DA EXPULSÃO DE ADÃO DO PARAÍSO...

02/11/2019

Desde que Adão foi expulso do paraíso o mundo nunca mais foi o mesmo. Disputas de toda ordem se apresentaram e se apresentam com toda a intensidade e virulência possíveis. Para alguns, a terra é redonda, desconsiderando que seu próprio nome indica sua condição plana (Planeta). As mulheres, desde a expulsão do paraíso (afinal, Eva influenciou Adão a comer a maça), são alvo de todo tipo de violência. Explode atualmente o feminicído. O diabo mudou de cores várias vezes. Foi negro durante o período da escravidão no Brasil colônia, depois ficou vermelho em razão da ascensão do comunismo soviético, e, atualmente, anda descolorido, pois supostamente neutro. Para alguns, assume a forma e o linguajar de um ministro do STF. Para outros, a forma e o comportamento de Capitão. E, para não poucos, a forma de sindicalista. As ideologias são perversas, pois induzem constantemente os seres humanos ao erro. Supostamente são majoritariamente de esquerda. Incêndios brotam da terra e devoram as florestas. O petróleo aparece do nada, navega ao balanço do mar e descansa na areia da praia. A calmaria econômica e social chilena entrou em colapso. Na Argentina o kirchnerismo voltou. Na Bolívia a eleição não se confirma. No Equador as ruas andam tumultuadas. Na Venezuela Maduro não cai, contrariando uma das leis da natureza: fruta madura tende a cair do pé. Na Inglaterra o penteado de Boris Jonhson não é suficiente para decidir o que fazer com o Brexit. Nos EUA o topete de Trump está sendo alvo de impeachment. No Vaticano Francisco debate a Amazônia. A mentira se apresenta cotidianamente e enche de vergonha a verdade, que anda sumida. No Brasil... Ah! No Brasil, todos os dias tem-se uma surpresa. O mundo está bagunçado. Alguma coisa deu errado com a obra da criação. Deus fugiu? Não! Ele está morto, afirma Nietzsche. Quem está morto é Nietzsche, acaba de afirmar Deus. Ninguém mais se entende. Balbúrdia!(?).

Vamos com calma. Definitivamente o desafio é compreender o que está acontecendo. Uma das variáveis analíticas possíveis é a fusão numa totalidade de mundo das esferas da política, da economia e da sociedade. Estamos vivenciando um momento civilizatório (global) em que as distinções destas três instâncias organizacionais das vidas de indivíduos e coletividades se fundiram. Suas fronteiras evaporaram. Não há mais distinções nítidas entre elas. A economia política suprassumiu o social, o espaço público, o tempo adequado ao debate público. Ou, dito de outra forma, para a massa de indivíduos produtores e consumidores não há mais dia de descanso. De segunda a segunda é preciso ser competitivo, empreendedor, inovador. O imperativo do tempo em curso apresenta-se na forma da produção e do consumo diuturno. Ele é a garantia da liberdade dos indivíduos. Impera a ilusória máxima de que todos devem ser livres, como se o padrão de liberdade ao qual se está acostumado não fosse produzido no contexto da moralidade econômica neoliberal. Ser livre seria a condição de quem faz escolhas de toda ordem: de alimentação, de lazer, de seguros, de mobilidade, de leituras de autoajuda, de saúde, de educação, de segurança. Não há salvação fora do imperativo da liberdade alcançada pelo exercício das escolhas pelo menor risco possível em todas as dimensões da vida. Inclusive nas escolhas de parceiros afetivos, ou sexuais.

Insulados em sua condição de indivíduos obedientes ao imperativo da liberdade advindo de escolhas, os indivíduos não fazem mais “experiências vitais”. A experiência com o mundo, com o espaço público, com os outros seres humanos demanda tempo. Na dinâmica ininterrupta das escolhas, tempo é mercadoria escassa, senão inexistente. Os indivíduos participam de fugazes experimentos de si mesmos e de sua relação com os outros. Produzem relações de frenético consumo de tudo e de todos. Neste âmbito, laços de confiança, de solidariedade, de pertencimento ao mundo comum se esvaem. A vida é pautada por uma dinâmica concorrencial sem trégua, sem descanso. Submeter-se a ela é a condição da sobrevivência. Este modo de subjetivação produz efeitos colaterais: neuroses, distúrbios psíquicos e outros que se revelam na intolerância e explodem nas mais diversas formas de violência. Condição paradoxal e incômoda, na medida em que, talvez, nunca se tenha sido “tão livre para fazer escolhas”. Não há carências materiais na sociedade da plena produção. Mas, há excessos. Excessos vêm carregados de efeitos colaterais que explodem em praça pública.

Assim, na medida em que a dimensão social da existência é esvaziada pela condição hegemônica do individuo produtor e consumidor, a percepção e, sobretudo, comprometimento com o espaço público, com o bem comum definha a passos largos. Ato contínuo a política é esvaziada de sua condição ontológica, de sua razão de ser que se apresenta na afirmação e garantia do espaço público como locus privilegiado da realização e do reconhecimento humano no debate que se estabelece com os demais humanos que participam do mundo na facticidade cotidiana de sua vida. Retirada da esfera pública, a política é reduzida à gestão dos negócios e dos interesses do Estado mediadores dos interesses de grupos econômicos e de complexos empresariais. Ou mais dramaticamente ainda, no senso comum a política é vista, na atualidade, como forma de se dar bem na vida, como uma espécie de atividade pecuniária generosa. Como atividade exclusiva do Estado no exercício de seu poder soberano. Também é como condição da desonestidade, da desconfiança, da corrupção. Compreendida e vivenciada sob estes estereótipos, é desejável para a opinião pública (expressão de indivíduos insulados e submetidos aos imperativos da lógica da plena produção e consumo) que a política se submeta à extensa e minuciosa normatização jurídica, bem como pela vigilância e punição da lógica econômica de mercado. Ou, no caso tupiniquim, que ela seja exercida pela última fronteira moral que viceja nos quartéis.

Este esvaziamento da política, do envolvimento dos indivíduos-cidadãos com as questões públicas, é parte da economia política em curso que desloca a contradição constitutiva de todo e qualquer agrupamento, ou sociedade humana, que se estabelece na relação entre capital e trabalho. É a partir do trabalho socialmente produzido que se constitui a riqueza, o montante de bens à disposição dos seres humanos, seja na forma da propriedade, de bens de consumo, de bens de uso comum, bem como nas estruturas que conformam a esfera das relações individuais e sociais constitutiva das relações de poder. Assim, a economia política em curso desloca a contradição entre capital e trabalho para o Estado. Para um Estado concorrencialmente eficiente. Ao proceder desta forma esvazia a política, o debate público sobre o espaço político e os bens públicos sob sua guarda. Nesta direção, trata-se, por um lado, de acusar o Estado de ineficiente na administração dos bens públicos. Trata-se também de acusar o Estado de cerceador das liberdades de escolhas individuais que somente podem se realizar plenamente na lógica individualista competitiva do livre mercado. Por outro lado, para os operadores do mercado, trata-se de aumentar a capacidade jurídica e regulatória do Estado como garantia de suas liberdades. Para a forma em curso da economia política é fundamental ao Estado alcançar o equilíbrio “paradoxalmente” necessário entre um Estado social mínimo e, um Estado jurídico, coercitivo de garantias concorrências máximo.

Diante de tal condição, trata-se de apresentar de forma dogmática e autoritária a necessidade de reformar o Estado aos moldes de administração e do direito privado. Sob o argumento da eficácia da ação do Estado estamos diante do desmonte das categorias políticas que constituíram o Estado moderno como locus por excelência de constituição e salvaguarda do espaço público, do direito público. Ainda nesta direção, não faz sentido algum para a economia política em curso que a democracia seja participativa, representativa ou jurídica. A democracia como valor social é apenas retórico. Talvez isso explique a emergência de governos desprovidos de apreço pelas instituições, pela cultura, pela educação, pelo espaço público e pelos bens públicos e, que operam num regime discursivo de pós-verdade em que a mentira é cotidianamente veiculada nas redes sociais. O modus operandi de tais governos implica na constante eleição de um inimigo fantasmagórico e ameaçador em relação aos esforços patrióticos de transformar o Estado numa máquina público-privada eficiente. Operam na lógica binária da luta do bem contra o mal. O mal se manifesta nas ideologias, nos partidos políticos, nas universidades, nas salas de aula, nas pesquisas científicas, nos discursos ambientalistas, em todos aqueles indivíduos que ainda ousam se apresentar como cidadãos e, assim, pretendem participar do debate em torno das questões públicas.

Desse modo, a lógica desta economia política invade o imaginário dos indivíduos produtores e consumidores, inclusive de fake News, que se mostram alheios ao debate em torno das questões públicas, senão contrários ao debate, aceitando tacitamente a imposição das esferas administrativas e jurídicas privadas sobre a administração e o direito público. Mas é neste indivíduo insulado em sua sempiterna tarefa de produção e consumo que se manifesta os efeitos deletérios deste deslocamento da contradição de fundo que move e orienta as sociedades e seus indivíduos. Destituído do espaço público e, por extensão, da dimensão pública de sua existência, tornam-se intolerantes em relação às ideias e propostas diferentes que possam se apresentar. Apresentam-se em roupagens fundamentalistas ao acreditar que a única verdade possível manifesta-se na liberdade de escolha patrocinada pelo mercado. Ainda nesta condição dogmática ancorada em verdades reveladas o seguidor do credo vociferado pelo capitão e pelos managers de mercado não questiona o teor das reformas. Àqueles que o fazem, acusa-os de moralistas, de esquerdistas, de antipatriotas. Este indivíduo já não pensa, apenas reage. Destituído dos referenciais públicos e sociais, lançado nas profundezas da nova economia política, vive cotidianamente entre duas situações opostas. Eufórico e entusiasta em relação as reformas que irão conferir maior eficácia ao Estado e, ao mesmo tempo frustrado com os fracassos cotidianos de sua existência.

O paradoxal de toda esta situação reside no fato de que o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX vivenciaram (salvaguardadas as diferenças de contexto epocal) situações assemelhadas. Naquele caso, as contradições sociais e morais da economia política em curso conduziram às experiências totalitárias e a dois grandes conflitos mundiais em que a xenofobia, o racismo de estado e a intolerância foram responsáveis por milhões de vidas ceifadas. Na atualidade as contradições que estamos vivenciando nos colocam diante de um estado de exceção permanente, bem como de nuances de uma guerra civil mundial. O desafio que se apresenta em nossos dias é reposicionar a política no centro da Ágora pública. Seguramente não será o capitão que fará isso. Lhe falta o básico. Capacidade política. Também não será nenhum general no auge de sua reserva moral. Desconsideremos também a ação de algum iluminado em sua redoma professoral. A ação política é tarefa cotidiana e responsabilidade de todo e qualquer indivíduo que estima a cidadania e se compromete com o mundo para as gerações vindouras. “O sono da razão produz monstros” (Francisco de Goya – 1746-1828)

 

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