Depoimento sem dano, Escuta especializada e medidas de proteção à criança e ao adolescente na fase policial

05/04/2018

Mais uma vez e, de forma pertinente, o legislador, por meio da lei 13.431 de 04 de Abril de 2017, a qual passará a vigorar a partir do dia 05 de abril do corrente, pois publicada com vacatio legis de 01 ano, estabeleceu um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

A novatio legis, dentre outras inovações, regulamenta o procedimento da Escuta especializada e do Depoimento especial, bem como, a exemplo da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), fez constar expressamente o direito a medidas protetivas de urgência para proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência.

Destaca-se, vestibularmente, ter sido a lei em tela pautada em vários diplomas internacionais, ratificados pelo nosso Estado, bem como nas diretrizes traçadas pela Constituição Federal, em especial as do Art. 227. Editada com objetivo fulcral de estabelecer um sistema de medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência, norteada pelo sistema de proteção integral e, visando assegurar a fruição dos direitos fundamentais com absoluta prioridade, visa garantir o gozo de direitos específicos quando crianças e adolescentes figurarem na condição de vítima ou testemunha, resguardo-as de toda forma de negligência, discriminação, violência ou abuso. 

Antes de verticalizarmos os temas, cabe salientar que o presente ensaio cinge-se à análise dos reflexos que o novel diploma trará à fase policial e, por consequente, serão trazidos à baila apenas parcela das modificações, as quais influenciarão diretamente nesta fase da persecução.

As primeiras inovações legais a serem analisadas serão as chamadas Escuta especializada e Depoimento especial. Cabe por oportuno salientar que, na prática, mesmo sem regulamentação específica, a Escuta especializada já é utilizada por psicólogos que atuam nas delegacias especializadas de proteção à criança, adolescente, mulher e idoso e são de extrema valia para o início e condução dos feitos policiais. Já, o Depoimento especial, também nominado como Depoimento sem dano, é utilizado desde 2010 por vários magistrados, tendo como base a Recomendação n. 33, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1].

 Analisando-se o diploma legal, observa-se haver agora conceituação específica para cada um dos institutos, com a seguinte redação:

Art. 7o  Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.  

Art. 8o  Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.[2] 

O objetivo especial de tais institutos é, sem dúvida, o de evitar uma vitimização secundária ou sobrevitimização das crianças e adolescentes que já sofrem com as nefastas consequências dos crimes contra elas perpetrados, em especial, os que atingem sua integridade física e dignidade sexual.  Assim, a própria lei, após conceituar os institutos, elenca nos artigos 9º, 10, algumas garantias que deverão ser observadas, como: a proibição de qualquer contato com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento, além da obrigatoriedade da realização do ato em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência.

Especificamente sobre o depoimento sem dano, qualificado como prova antecipada, e que deverá, como regra, ser efetuado apenas uma única vez, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal, deve seguir o seguinte procedimento elencado legalmente:

Art. 12.  O depoimento especial será colhido conforme o seguinte procedimento: 

I - os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais; 

II - é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos; 

III - no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo; 

IV - findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco; 

V - o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente; 

VI - o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo. 

§ 1oÀ vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender. 

§ 2oO juiz tomará todas as medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha. 

§ 3oO profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado. 

§ 4oNas hipóteses em que houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o juiz tomará as medidas de proteção cabíveis, inclusive a restrição do disposto nos incisos III e VI deste artigo. 

§ 5oAs condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento da criança ou do adolescente serão objeto de regulamentação, de forma a garantir o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha. 

§ 6oO depoimento especial tramitará em segredo de justiça.[3]

Analisando-se os procedimentos listados, observa-se que, em verdade, o contato direto com a vítima será feito pelo profissional habilitado, com expertise na área de atuação, isto é, psicólogos e assistentes sociais, e que a autoridade judicial terá contato com as informações por meio remoto, bem como terá acesso posterior às informações colhidas, que serão gravadas por meio de áudio e vídeo.

Apesar de não constar expressamente no artigo 12 a figura da autoridade policial, por meio de uma interpretação sistemática com o artigo 8º, verifica-se se estender a ela, quando presidir a tomada do depoimento em tais casos, a utilização dos procedimentos traçados legalmente. Em especial, deve ser respeitada, dentre outras, a intervenção do profissional com expertise técnica, que poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente, gravação do ato e em áudio e vídeo, além de todas as medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha, evitando-se, peremptoriamente, o contato com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.

Oportuno neste momento salientar, que em relação à tomada do Depoimento especial por parte da autoridade policial, já começam a surgir vozes no sentido de que não poderia ser a medida por ela executada, pois alçada a prova antecipada e, como é consabido, em fase policial, em regra, são colhidos elementos informativos e não provas. Entretanto, também é de conhecimento público que para uma ação imediata, como numa prisão em flagrante executada na madrugada, com o fim de se buscar elementos mínimos de autoria ou materialidade delitiva, a autoridade policial terá de proceder à oitiva dessa criança, que, por conseguinte, pautada na legislação em comento, deverá respeitar os trâmites procedimentais legalmente descritos, sob pena de tornar inócua a nova regulamentação, pois estarão ausentes os cuidados necessários, gerando, consequentemente, a malfadada vitimização secundária. 

Nesta senda, advogando pela possibilidade de a autoridade policial presidir – presidir, pois em verdade será efetuada diretamente pelo profissional com expertise na área da psicologia ou assistência social, evitando causar dano - a execução do Depoimento sem dano, aduzem Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Paulo Eduardo Léporea:

Regra geral, o depoimento especial deve ser realizado uma única vez (artigo 11), através de produção antecipada de prova judicial (artigo 156, I do CPP), garantida a ampla defesa do investigado. Ou seja, preferencialmente deve ser realizado como prova antecipada, a ser produzida perante o juiz com observância do contraditório real antes mesmo do início do processo, ou se deflagrado o processo antes da audiência de instrução e julgamento. Se impossível sua realização, deve-se proceder ao depoimento especial em sede policial, e repeti-lo posteriormente em juízo.[4]

A questão certamente é, e se manterá controversa, pois apesar do Depoimento especial se caracterizar como prova antecipada, a lei permite, de maneira expressa e acertada no art. 8º, que a autoridade policial presida o ato, que por sinal é de caráter investigatório, e ínsito à sua função. Desta feita, por óbvio, diante da patente complexidade do tema, possui o presente ensaio apenas o condão de servir como base às discussões que doravante virão, pois várias outras opiniões surgirão, cada qual com suas fundamentações e posicionamentos, até que paulatinamente sejam pacificados.

Seguindo na análise do diploma legal, passemos a outra importante ferramenta trazida pela lei e ligada intimamente à autoridade policial: a concessão de medidas protetivas de urgência. Inserida no título que trata dos direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente, trata da possibilidade de serem pleiteadas, por meio de representante legal, medidas protetivas em favor de crianças e adolescentes, ex vi:

Art. 6o  A criança e o adolescente vítima ou testemunha de violência têm direito a pleitear, por meio de seu representante legal, medidas protetivas contra o autor da violência.[5] 

Neste ponto específico, sepulta-se uma enorme e patente desproporção conduzida pela lei 11.340/06, pois agora as crianças e adolescentes, independentemente do sexo, gozam de proteção expressa quando vítimas ou até mesmo testemunhas de infrações. Ainda assim, algumas considerações se fazem imprescindíveis. A primeira está relaciona ao fato de a nova lei listar em seu Art. 4º um rol de atos de violência não estritamente criminosos. Certamente pautados no aumento dos atos nominados como Stalking[6] e, objetivando não se cingir à proteção das vítimas de infrações penais, mas, também, àquelas que sofreram outras espécies de atos violentos, como no caso da alienação parental e bullying, a nova lei, com a expansão do rol, por conseguinte, aumenta a possibilidade de utilização e aplicação de medida protetiva de urgência, buscando torná-la mais efetiva e abrangendo qualquer espécie de violência perpetrada em desfavor de criança e adolescentes.

A segunda e relevante consideração trata da especial e sagaz previsão inserta no parágrafo único do art. 6º. Nela, o legislador consignou de forma expressa a utilização subsidiária da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), o que, certamente, facilitará a utilização e execução procedimental da medida, pois os trâmites tanto policiais quanto judiciais previstas nesta lei já são deverás conhecidas e aplicadas, o que sem dúvida não trará obstáculos à sua utilização nos casos doravante protegidos pelo novo diploma legal.

Destarte, por derradeiro, depois de efetuadas estas breves considerações, e já estando quase exaurida a vacatio Legis de um ano da lei, observa-se ter imperado uma anêmica ou quase inexistente preocupação com o tema. A questão remanescente e mais ululante, ao menos em fase policial, liga-se à implementação das condições necessárias à execução de tais institutos. Dentre tais necessidades, pautando-se na recomendação nº 33 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estão a implantação de sistema de depoimento vídeogravado para as crianças e os adolescentes, a capacitação dos condutores do Depoimento especial e da Escuta especializada, além da necessidade da existência ou criação de equipes de profissionais das delegacias especializadas de proteção à criança adolescente, mulher e idoso, com atendimento circadiano e ininterrupto para estes casos. Mais que uma preocupação, cabe um alerta, pois somente com a implementação e demonstração de condições suficientes para a concretização e realização do nosso mister é que fortaleceremos nossas prerrogativas investigativas e concretizaremos a possiblidade, expressa legalmente, de tais medidas serem efetuadas pela autoridade policial.

 

[1] CNJ- Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 3 de 23.11.2010. disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=1194%20

[2] BRASIL. Lei 13.431/17 de 04 de abril de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm.

[3] BRASIL. Lei 13.431/17 de 04 de abril de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm.

[4] https://www.conjur.com.br/2017-abr-06/lei-garante-protecao-menor-vitima-ou-testemunha-violencia

[5] BRASIL. Lei 13.431/17 de 04 de abril de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm.

[6] O stalking é uma modalidade de assédio moral mais grave, notadamente porque
se reveste de ilicitude penal. Geralmente ocasiona invasão de privacidade da
vítima; reiteração de atos; danos emocionais; danos a sua reputação; mudança de
modo de vida e restrição ao direito de ir e vir. (Fonte: PENTEADO FILHO, Nestor
Sampaio Manual esquemático de criminologia – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p.326

 

Imagem Ilustrativa do Post: Visita ao TJDFT // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/9K2W4X

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura