Depoimento Especial de Crianças: Um Lugar Entre Proteção e Responsabilização?

06/02/2015

Por José César Coimbra - 06/02/2015

A apresentação do Projeto de Lei (PL) nº 4.126 (2004), que originalmente acrescentaria artigo no Código de Processo Penal (CPP) para determinar regras na realização de laudo pericial e psicossocial nos crimes contra a liberdade sexual de criança ou adolescente, foi um dos marcos do mal-estar e da incompreensão que ainda perduram. A partir dos substitutivos que caracterizaram o projeto como associado ao “depoimento sem dano” (Brito, 2012), estabeleceram-se duas forças contrárias: uma, de forma geral, reconhecida nos profissionais do direito, mostra-se favorável à implementação imediata desse procedimento, conforme manifestação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (Recomendação 33, 2010). Outra, que, grosso modo, poderia ser representada no Conselho Federal de Psicologia (CFP), sobretudo a partir de sua Resolução nº 10 (2010), opõe-se a esse procedimento (Senado Federal, 2008). Os argumentos dessas duas posições já foram sistematizados por Brito e Parente (2012), tendo sido a sucessão dos projetos de lei, até o substitutivo ao PL nº 156/09, analisada por Brito (2012). A despeito da conclusão da audiência pública de que a proposta ainda deveria ser debatida, é certo que a prática espalha-se pelo Brasil (Brito, 2012).

O primeiro aspecto que abordaremos neste trabalho, que tem por base levantamento documental e bibliográfico, diz respeito aos equívocos que existem quando se toma a experiência de depoimento especial de crianças e adolescentes como unívoca. Em realidade, trata-se de práticas diversas, inclusive quanto ao que ocorre no Brasil (Brito, 2012). Nossa proposta é a de estudar alguns aspectos do modelo canadense de depoimento especial, particularmente daquele realizado na província de Ontário, pelo Centre for Children & Families in the Justice System. Subsidiariamente, serão feitos comentários com base em outras referências internacionais do mesmo gênero.

Em segundo lugar, analisaremos de que forma pressupostos implícitos na prática da tomada de depoimento de crianças e adolescentes implicam a relação entre testemunho e memória.  Essa relação revela aporias inerentes a essas concepções, tais como destacadas por Agamben (2008) e Seligmann-Silva (2009).

Os procedimentos: uma introdução

Deve ser frisado que as querelas em torno desse tipo de procedimento não são exclusivas do Brasil, como se nota no balanço de dez anos dessa prática na África do Sul (Jonker & Swanzen, 2007). Discussões em torno desse tema existem e possuem vários focos, tais como: dificuldades inerentes ao diálogo interdisciplinar envolvendo o sistema judicial; falta de consenso em torno de questões como influência da sugestão no testemunho e falsas memórias; especulações sobre eficácia do sistema penal versus garantia de direitos e práticas de justiça restaurativa; lugar e grau de autonomia do intermediário no procedimento (Jonker & Swanzen, 2007; Motzkau, 2005).

Em síntese, esse procedimento, tal como realizado ou proposto no Brasil (Brito, 2012), consiste no uso de intermediários (psicólogos, por exemplo), que, em tese, teriam familiaridade em sua formação (ou teriam recebido treinamento específico para intervir) na lida com crianças e adolescentes. Em geral, durante as audiências (ou previamente a elas), esses profissionais recebem as indagações relacionadas ao processo judicial e as repassam à criança. Sala de audiência e sala de tomada do depoimento especial são distintas, havendo interligação entre elas (por meio de circuito fechado de TV ou sala de espelhos) de forma a haver transmissão de som e imagem em tempo real entre uma e outra. Ao final, tudo é registrado em mídia que passa a compor o processo judicial.

Diferentemente do que se poderia imaginar, a prática de depoimento especial não necessariamente implica diminuição significativa do número de vezes que a criança narra sua versão do ocorrido, como constata Iucksch (2012) com relação à experiência francesa. Ou seja, não decorre do procedimento que automaticamente a criança deponha menos vezes. Isso dependerá de arranjos que envolvem coordenação entre organizações distintas e de ajustes internos a essas mesmas organizações, tais como o poder judiciário, a polícia, a saúde e a assistência social.

Esses aspectos constituem-se em linhas importantes de análise para avaliar as práticas correntes. Trata-se, em síntese, de pergunta sobre como o depoimento especial (ou a produção antecipada de prova) efetivamente será acolhido pelos diversos segmentos que são convocados para o atendimento de cada caso concreto, culminando na efetividade ou não do procedimento. Efetividade que deve ser entendida tanto no aspecto da proteção (da criança ou do adolescente) como no da responsabilização (daquele que terá sido identificado como autor da violência contra a criança ou o adolescente).

Procedimentos especiais de tomada de depoimento de crianças em processos judiciais não são algo novo. Trata-se de experiência amplamente disseminada no mundo, embora não se possa deduzir daí que haja similitude integral entre os diversos exemplos (Alvarez, 2012; Santos & Gonçalves, 2008) ou mesmo que as críticas a esse tipo de prática sejam inexistentes (Alvarez, 2012; Jonker & Swanzen, 2007; Nascimento, 2012). Do mesmo modo, verifica-se que a avaliação do que seja sucesso ou insucesso desse procedimento muda de modo substancial conforme o país (Alvarez, 2012; New Zealand's Criminal Justice System, 2012).

Nesse sentido, sabe-se que em muitos lugares a etapa relativa à gravação de depoimento é apenas parte de uma série que concorre para que, de fato, proteção e responsabilização possam ser efetivas (Alvarez, 2012; Ministry of Justice, 2011; New Zealand's Criminal Justice System, 2012; Santos & Gonçalves, 2008). Isto é, uma etapa apenas, não sendo sempre o momento mais importante do procedimento, como se depreende da prática canadense, da inglesa e das diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o tema (Cunningham, 2011; Cunningham, 2011a; Cunningham & Hurley, 2007; 2007a; Cunningham & Stevens, 2011; Justice Education Society, 2012; Ministry of Justice, 2011; United Nations Economic and Social Council, 2005; United Nations Office on Drugs and Crime, 2009).

A utilização do depoimento especial tem, em síntese, quatro argumentos: i) a ineficácia do sistema criminal; ii) o suposto trauma ou dano causado à criança pela repetição incessante de sua narrativa sobre o episódio de violência ou pela inabilidade de se proceder à sua inquirição, isto é, tentativa de se evitar a vitimização secundária; iii) a garantia da melhor correspondência possível entre a  lembrança da vítima e o fato ocorrido, de forma a minorar lapsos e retificações inerentes ao funcionamento da memória; iv) aprimoramento dos mecanismos de proteção e responsabilização.

Ao quadro acima deve ser adicionado que, somente na fase judicial, em média, a criança seria ouvida cerca de sete vezes no Brasil (D’Agostino, 2012). Isso pode ser traduzido em processos judiciais que se estendem por anos, envolvendo segmentos diferentes da justiça, como infância e juventude e criminal; primeira e segunda instâncias.

Sem título-17José César Coimbra é Doutor em Memória Social – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro / UniRio e Psicólogo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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Artigo originalmente publicado na Revista Psicologia, Ciência e Profissão, vol. 34, n.2, abril/junho 2014: http://bit.ly/1EVREwt

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Imagem Ilustrativa do Post: Seriedade - Serious Foto de Daniel M. Viero, disponível em: https://www.flickr.com/photos/danielviero/6084398744/ Com alterações Licença de uso disponível em: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

 

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