Deolinda do Guamá: Pobre, empregada doméstica e vadia. Um breve relato da perversidade detrás dos juizados especiais criminais

29/06/2015

Por Ana Cláudia Pinho - 29/06/2015

Nossa breve - porém, nada incomum história - aconteceu no ano de 2006[1]. DEOLINDA - empregada doméstica e massagista, nas horas vagas - ofereceu serviços de massagem corporal a um pacato cidadão, na residência dele. No mesmo dia, teriam desaparecido, do interior do imóvel, três relógios de pulso.

Muito embora todos já saibamos para onde o vento aponta, quero prosseguir. E o faço, não sem incômodo, por estar diante de um excelente exemplo da perversa funcionalidade desse sistema penal que, inegavelmente, em terras tupiniquins, presta-se somente para criminalizar a miséria. E aqui fica muito difícil não se quedar a todo tipo de alerta que a criminologia crítica nos lança.

DEOLINDA, como era de se esperar, foi, quase imediatamente, procurada pela Polícia, como suspeita do “furto”. Foi encontrada no bairro do Guamá (periferia de Belém), sem estar na posse de absolutamente nenhum relógio da sedizente vítima.

E agora? O que fazer? A situação estava posta: três relógios desaparecidos, uma vítima revoltada e uma empregada doméstica suspeita!

Não tinha como, simplesmente, deixar pra lá! Tinha?

Mas, se a empregada doméstica não estava com os relógios, não se poderia prender em flagrante por furto! Pelo menos esse limite minimamente razoável existia!

Qual a saída de mestre? VADIAGEM nela!!!

Pode não ser ladra, mas vadia com certeza!

E aí chego no ponto: a hipocrisia e maldade dos Juizados Especiais Criminais!! Explico-me.

Como, no caso de DEOLINDA, não se conseguiu provar a autoria de suposto crime de furto, a autoridade policial achou por bem lavrar um termo circunstanciado de ocorrência, imputando à empregada doméstica a contravenção de VADIAGEM.

Isso tudo é lamentável, para dizer o menos. Uma inequívoca utilização do Direito Penal de autor, em total afronta aos princípios constitucionais do Direito Penal.

A contravenção penal sugerida pela autoridade policial (VADIAGEM) não foi recepcionada pelo texto constitucional de 1988, por violação ao princípio da secularização (e também ofensividade). Simples assim!

Tão logo veio a lume a Lei nº 9.099/95, provocando, nas palavras de Grinover, Gomes Filho, Scarance Fernandes e Gomes, “uma verdadeira revolução no sistema processual-penal brasileiro”[2], muitas vozes se levantaram em prol das novas medidas despenalizadoras. Por todo país se elogiava a composição civil extintiva da punibilidade, a transação penal, a suspensão condicional do processo. Todos (ou quase) apostavam numa promissora desburocratização da justiça penal e acreditavam que as infrações de pequeno potencial ofensivo seriam, finalmente, tratadas sem o rigor tradicional que mereceram no passado.

Entretanto, passados vinte anos do início de vigência da lei, a constatação não é nada alentadora. A falta de estrutura dos Juizados Especiais em muitas comarcas, a dificuldade em operacionalizar a tão esperada celeridade (oralidade, informalidade, desburocratização), os entraves criados pela própria lei ao silenciar quanto a aspectos importantíssimos dos institutos por ela criados, acabaram por transformar um sonho em pesadelo.

E o pior de tudo: a falta de um debate amplo e democrático em torno da lei e das alterações nela insertas, a crença utópica na decantada eficiência jurisdicional, aliados à ilusão de que se estaria iniciando um caminho rumo à intervenção mínima do Direito Penal, acabou por escamotear o mais grave reflexo da tal “revolução” – a permissão velada de descumprimento à Constituição da República, já que, em vários aspectos, tanto a lei, quanto as práticas dos atores jurídicos, demonstra um (ainda) arraigado atuar inquisitivo, e a pouca consciência constitucional.

Nesse sentido, oportuníssima a crítica sempre abalizada de JACINTO COUTINHO: “a matéria referente aos Juizados Especiais Criminais é um dos maiores exemplos de como a efetivação infraconstitucional (desejada por todos que dela não desistem como dirigente e compromissória) pode ser um arremedo – ou uma farsa – se conduzida de maneira inadequada”[3].

Assim, caso não se queira ceder ao descrédito em relação à efetivação do ideal constitucional, é de vital importância que se trate do tema “Juizados Especiais Criminais” sempre a partir do texto fundamental, conduzindo a prática da forma mais cautelosa possível, procurando salvar os (complexos) institutos, sem matar as garantias constitucionais do processo.

Como sabido por todos, antes da entrada em vigor da lei nº 9.099/95 já se acompanhava certa tendência – tanto na doutrina, quanto na jurisprudência – em descriminalizar as chamadas infrações bagatelares. A aplicação – ainda que tímida - do princípio da insignificância era uma realidade já sentida e que poderia ter tido outro destino, mais condizente com os princípios democráticos do Direito Penal, não fosse a pedra no meio do caminho...

Um dos efeitos mais deletérios da Lei nº 9.099/95 foi, sem dúvida, ressuscitar infrações penais que já estavam sepultadas na consciência jurídica geral. Aquilo que, antes da lei, era afastado do sistema penal, com a lei voltou a fazer parte do dia a dia daqueles que operam nos Juizados.

Um dos exemplos mais emblemáticos dessas infrações que estavam adormecidas e foram despertadas pela Lei nº 9.099/95 é o da VADIAGEM, contravenção penal prevista no art. 59, sob a seguinte redação:

“Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita”.

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 03 (três) meses”.

Sabe-se inexistir diferença ontológica entre crime e contravenção e que tão somente razões de política criminal é que determinam a definição de determinada conduta como delito ou simples modalidade contravencional. Entretanto, sabe-se, também, que tais razões de política criminal devem estar baseadas na gravidade do dano causado e, mais ainda, na categoria do bem jurídico afetado. Assim, é primário que as contravenções penais são infrações de menor gravidade e que, por isso, recebem tratamento punitivo menos rigoroso.

Todavia, ainda assim, há determinadas condutas que, sequer, deveriam ser consideradas como ilícitos penais, seja porque não chegam a ofender bem jurídico algum, seja porque o bem jurídico tutelado não possui dignidade constitucional, seja porque o tipo penal é por demais aberto, desrespeitando o princípio da taxatividade, seja, ainda, porque criminalizam a moral, o pecado (ferindo, de morte, a secularização), o que favorece uma prática jurisdicional autoritária e irracional, já que não fincada em dados de conhecimento, por absoluta falha da descrição típica.

A chamada “vadiagem” integra, exatamente, essa modalidade contravencional que se deve condenar à invalidade, por inobservância clara dos princípios da secularização (separação entre crime e pecado) e ofensividade (necessidade de afetação de bem jurídico).

Basta uma simples leitura do tipo penal em comento para constatar sua invalidade. O legislador, claramente, tipificou uma conduta que – quando muito – pode contrastar com uma certa moral comum, mas que, sob nenhuma hipótese, lesa, ofende ou atinge qualquer bem jurídico relevante para a vida social.

Se alguém quer fazer a opção por não trabalhar, tal opção deve ser respeitada, em nome do pluralismo e do respeito às diferenças, esteios constitucionais. O ser humano, no exercício de sua liberdade, pode escolher o modelo de vida que lhe aprouver, ainda que isso desagrade qualquer eventual maioria. O que lhe é vedado, num Estado Democrático de Direito, é praticar condutas que ofendam, ou coloquem em sério perigo, bens jurídicos alheios.

Principalmente em um país onde a taxa de desemprego é preocupante, e o Estado muito pouco (ou quase nada) faz para alterar o quadro social alarmante, parece até escárnio exigir da população que consiga trabalho honesto e, mais, criminalizar a conduta de quem não o obtém...

Sobre o tema, já tive oportunidade de me manifestar:

Nesse mesmo sentido, é de inconstitucionalidade flagrante, por afronta aos princípios aqui estudados, a contravenção penal de vadiagem (Decreto-lei nº 3.688/41, art. 59) que proíbe o comportamento de quem se entrega à ociosidade, sendo válido para o trabalho e sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência. O interessante, aqui, é observar o cunho preconceituoso e excludente da intervenção penal: aquele que possuir renda pode entregar-se à ociosidade, sem com isso praticar ilícito penal algum, mas o que não a possui deve procurar trabalho, sob pena de incorrer no tipo penal em comento. Ou seja, o abastado economicamente pode ser ocioso, sem ser vadio, mas o pobre ocioso é, por lei, vadio, sem ter o direito de exercer, livremente, sua opção por não trabalhar.” (PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In Direito penal e estado democrático de direito: uma abordagem a partir do garantismo de Luigi Ferrajoli. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. P. 95/96). (grifos apostos).

DEOLINDA é doméstica e estava procurando trabalho, oferecendo serviço de massagem corporal nas casas. Por infelicidade sua, na ocasião em que se encontrava na residência da suposta vítima, sentiu-se a falta de três relógios. Eis que a suspeita recai sobre quem? Sobre a doméstica que ali estava, procurando trabalho.

Todavia, nada foi encontrado em poder de DEOLINDA. O que fazer, então, para justificar sua detenção pela equipe de policiais militares?  Lavra-se um TCO por VADIAGEM... Afinal, é fácil utilizar esse termo retoricamente para justificar que uma pessoa, doméstica, que anda pela casa dos outros a pedir trabalho, esteja praticando “ociosidade”...

Mas o que se deve entender por “ociosidade”? O que é, em última análise, praticar vadiagem? Oferecer serviços de massagem seria isso? Pedir dinheiro aos outros? Fazer “bicos”? Não trabalhar, simplesmente? Qual o limite, enfim, entre a opção (ou falta dela) por não trabalhar e a infração penal?

O que teriam a dizer sobre esse tema as pessoas que, abastadas financeiramente, levam a vida na ociosidade, aproveitando todos os confortos que o dinheiro pode oferecer, e optando, claramente, pela lei do menor (ou nenhum) esforço? Seriam esses, também vadios?

Outro elemento que não pode ser desprezado na análise desse tipo penal é o fator histórico e político. A lei de contravenções penais data de 1941 e, assim como o Código Penal, foi fabricada em meio ao momento autoritário pelo qual atravessava o país (Estado Novo varguista). Talvez isso explique, em parte, o porquê de tantos tipos penais de autor (criminalização do ser, do pensamento, da moral), cuja preocupação era punir o sujeito pelo que era, não pelo que fazia; bem como tipos penais abertos e indefinidos (o que deixava a critério do julgador a interpretação mais conveniente e, nem sempre, mais justa ou razoável).

E aí, volta-se ao tema: qual a base constitucional para se punir a vadiagem? Aqui dentro cabe um mundo de coisas... Tudo pode ser vadiagem, ou nada pode ser vadiagem. Tudo pode ser ociosidade, ou nada pode ser ociosidade. Depende de quem fala, do local da fala e, mais ainda, de quem se fala... Eis o grave perigo de conviver-se com os chamados tipos penais abertos...

Por óbvio que direito é discurso, sempre. É processo social de atribuição de sentidos (Carlos Cárcova[4]). Assim, não se pretende afirmar aqui que a norma deve ser estanque, de clareza solar, sem margem a quaisquer interpretações. Longe disso. Neutralidade não existe; é retórica. O que se está a argumentar é que, dentro do razoável, o legislador deve, sim, evitar os tipos penais abertos que, para além da interpretação - sempre fulcrada em vínculos de conhecimento e na dogmática de matriz constitucional - irão demandar vínculos de poder tão somente, sem qualquer dado racional que lhes possam sustentar.

É impossível se aproveitar o art. 59 da lei de contravenções penais. Aqui, não há como negociar!

É clara a violação a vários princípios constitucionais (secularização, ofensividade, taxatividade, dignidade humana, pluralismo, dentre outros). Resta nítido que a lei penal criminalizou a pessoa, e não o fato. Vadio é o pobre que não trabalha, jamais o rico. Essa idéia é absolutamente antidemocrática e não pode mais vigorar. As pessoas, repita-se, têm o direito de escolherem modelos de vida, direito a serem diferentes, direito à imoralidade (Ferrajoli). O que não podem – não tem o direito – é lesionar bens jurídicos alheios.

É preciso compreender, em definitivo, que as regras do Código Penal e das leis extravagantes em muito pouco (ou quase nada) se harmonizam com a Carta Política de 1988, até porque pertencem a momento histórico diverso. Assim, cabe aos atores jurídicos em geral – e ao juiz, em particular – fazer o crivo constitucional e deslegitimar comandos que se apresentem antidemocráticos e autoritários, como o art. 59 da LCP.

Como já disse acima, os Juizados Especiais, ao invés de se inserirem num projeto de minimização do sistema penal, acabaram por agudizar os conflitos, já que tudo (e por tudo) se jurisdicionaliza. Vence, mais uma vez, a hipocrisia!

As pessoas esperam da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário soluções pouco (ou quase nada) típicas do sistema penal; soluções que deveriam ser buscadas no interior de cada um, a partir de instrumentos que deveriam ser facilitados pelo Estado (terapias, tratamentos a dependentes químicos, aconselhamento familiar, emprego justo, etc.). Entretanto, para usar as expressões de Löic Wacquant, quando falta “Estado-Providência” sobra “Estado-Penitência”[5].

E DEOLINDA, como era de se esperar, caiu nesse engodo, ficou presa na malha. Nada havia contra ela. Mas, é impressionante como gente pobre sempre está na hora errada e no lugar errado, não? Ou, melhor refletindo…como se sabe fazer a hora, nesse nosso sistema penal, não é? Vandré? Cadê você?


Notas e Referências:

[1] Trata-se de caso concreto, em que atuei como Promotora de Justiça, promovendo arquivamento, quando exercia minhas atribuições perante os Juizados Especiais Criminais de Belém-PA.

[2] Cf. Juizados especiais criminais: comentários à lei 9.099/95. 5ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2005. Página 41. Grifos nossos.

[3] Artigo intitulado “Manifesto contra os juizados especiais criminais (uma leitura de certa “efetivação” constitucional). In Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Alexandre Wunderlich e Salo de Carvalho (org.). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. Página 03.

[4] In Direito, Política e Magistratura. São Paulo: LTr, 1996.

[5] Wacquant, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 2001. P. 77.


Ana Cláudia Bastos de Pinho2Ana Cláudia Bastos de Pinho é Doutora em Direito (UFPA). Professora de Direito Penal da UFPA e Promotora de Justiça (MPPA). 

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