Delito de evasão de divisas. Caráter dos complementos normativos

03/04/2016

Por Rafael Bruno de Sá - 03/04/2016

A partir do ano de 2001, o Banco Central do Brasil passou e editar circulares com o objetivo de regulamentar a declaração de capitais brasileiros no exterior, inclusive o limite mínimo para a necessidade de declaração, o que deu a esta norma o caráter de complemento normativo integrador do artigo 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86.

Nos anos posteriores, o Banco Central editou novas circulares, as quais aumentavam o limite do montante mínimo de bens no exterior para declaração perante tal órgão, tratando-se, portanto de norma posterior mais benéfica, o que nos leva a questionar se estas têm caráter temporário ou excepcional.

Os doutrinadores que aparecem como expoentes da tese de que as normas complementares do art. 22, parágrafo único, in fine, da Lei nº 7.492/86 – a exemplo de Andrei Zenkner Schmidt e Luciano Feldens -, seriam excepcionais e, por isso, ultrativas, utilizam-se como lastro, basicamente, de dois argumentos: 1) as aludidas circulares têm caráter excepcional porque visam a tutelar situação extraordinária de fragilidade econômica brasileira; 2) as circulares do BACEN em apreço teriam suas variações diante de uma mudança na necessidade, cada dia menor, da tutela cambial, pela evolução econômica nacional.

Sucede que tais argumentos nos parecem incabíveis no caso em tela, pois, em verdade, o objeto material das normas, apesar de ser a proteção do sistema financeiro, não se trata esta de uma proteção por situação de fragilidade excepcional ou extraordinária, malgrado a tese supracitada sustente que as circulares do Banco Central cujo montante de necessária declaração era inferior assim o eram para regular política cambiária frágil à época e que, com a evolução econômica, a tendência seria o “esvaziamento do controle cambiário”.

Para que se pudesse considerar tais circulares como normas excepcionais, necessário seria que o objeto material da tutela destas fosse uma situação extraordinária – no caso, uma fragilidade econômica anormal – e que a mudança trazida pela norma posterior acompanhe uma modificação nesta excepcionalidade. Ocorre que o objeto material das circulares não era de proteger qualquer circunstância excepcional na política econômica brasileira e, sim, apenas e tão-somente a regular tutela deste objeto, esta que tem necessidade permanente e regular, o que foi comprovado com o próprio decorrer dos anos nos mostrou não ser este o real intuito de tais normas, tanto que não houve mudança alguma nos últimos anos, mesmo com a oscilação na economia nacional.

Isto porque, apesar de o montante mínimo ter subido entre 2001 e 2003, passando de R$10.000,00 (dez mil reais) para R$300.000,00 (trezentos mil reais), nos anos seguintes, mesmo tendo a economia apresentado, inicialmente, grande crescimento e, nos últimos anos, patente decréscimo, o valor mínimo para declaração foi modificado para U$100.000,00 (cem mil dólares) e assim permanece até os dias atuais.

Com efeito, não restam dúvidas que a variação de valor mínimo para declaração trazido pelas sucessivas circulares do BACEN até o ano de 2004 não se deu por conta de qualquer mudança no objeto tutelado, ou seja, não se deu por uma melhora em situação excepcional de fragilidade econômica e, sim, pelo simples motivo percepção da desnecessidade das declarações, como afirmou o próprio Banco Central[1]. Ou seja, o motivo ensejador das mudanças foi diametralmente oposto a uma suposta situação de amparo excepcional, até porque, se caráter excepcional tivesse a norma, os valores nestas referidos teriam sido modificados no último ano, em razão do grave déficit na economia.

Observação idêntica pode-se extrair das lições de Bitencourt e Breda (2010, p. 283/284):

Com uma rápida conferida nas circulares do Banco Central, a partir de 2001, observa-se uma considerável variação quanto aos limites fixados como piso, a partir do qual se exige a declaração dos depósitos mantidos no exterior. O limite, a partir, do qual a declaração ao Banco Central passou a ser obrigatória, de R$ 10.000,00 (dez mil reais) (2001) foi elevado, em 2003, para R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), porque, segundo o próprio BACEN, esse aumento do limite decorreu do fato de a “participação de pequenos investimentos no exterior não serem significativos considerando-se os totais apurados.

Destarte, nos parece claro, assim, que o amparo exercido pelas circulares do BACEN não é, e nunca foi, excepcional, visto que tutelar a política cambial é situação normal, que sempre existirá e, no caso em tela, a normalidade é aparente, visto que desde 2001 até os dias atuais não houve qualquer alteração nos valores que tenha acompanhado fragilidade econômica.

Mister se faz salientar, ainda, que Taipa de Carvalho (2008, p. 267), favorável à irretroatividade penal nas normas temporárias e excepcionais, ressalta que as mudanças constantes na legislação criminal econômica não significam qualquer situação de excepcionalidade:

uma palavra a propósito das leis penais econômicas (fiscais, financeiras, cambiais). O facto de estas leis serem afectadas por uma grande instabilidade não significa que deixem de estar sujeitas, quando a sua sucessão, ao princípio geral da aplicação da lei penal favorável. [...]

Digamos que essa transitoriedade, essa mutabilidade das leis penais econômicas constitui uma situação, uma realidade normal, tendo, portanto, o conflito temporal destas leis de ser resolvido pelo critério jurídico-político e político-criminal da aplicação da lei penal favorável

Desta forma, nos parece mais plausível a idéia de que as normas complementares editadas pelo Banco Central não tinham, nem têm, qualquer viés de excepcionalidade, tutelando, em verdade, situações normais e permanentes da política econômica brasileira. Neste ponto é imperioso ressaltar que, pelo mesmo motivo, os complementos normativos em apreço também não têm caráter temporário, visto seu objeto material não é provisório.

Para melhor ilustrar a legislação excepcional e temporária, importante citar exemplo para demonstrar, de forma clara, quais são as situações anormais e provisórias que este tipo de norma visa a tutelar e, posteriormente, retirando qualquer dúvida quanto a abissal diferença entre tais situações e as sucessões de circulares editas pelo Banco Central, tanto quanto a sua natureza excepcional como em relação ao caráter de sua modificação, meramente de atualização fática.

O principal exemplo a se referir é aquele que se refere ao tabelamento de preços que, por se tratar de variação aumentativa de valores, é utilizado, de forma equivocada, como se semelhante fosse do caso em apreço. Como se sabe, a Lei dos Crimes Contra a Economia Popular, em seu artigo 2º, inciso VI, tipificava a ação de “transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ou de serviços essenciais, bem como expor à venda ou oferecer ao público ou vender tais gêneros, mercadorias ou serviços, por preço superior ao tabelado”. Trata-se, por óbvio, de norma penal em branco, estando tais preços estipulados em tabelamento complementar.

Versando sobre a natureza excepcional de tal norma, Estefam (2010, p. 135) explica que esta “vigorou por quase quarenta anos, permaneceu, durante muito tempo, inaplicável, salvo em algumas épocas, como na década de 1980, durante o período de ‘congelamento’ de preços decorrentes do “Plano Cruzado””. Como se sabe, o aludido “Plano” foi o pacote de medidas que o Governo Federal lançou mão em 1986, logo após o fim da ditadura militar, com o objetivo de regularizar a situação econômica nacional. Assim, não restam dúvidas que seu objeto material tutelado era situação econômica excepcional, caracterizada por uma das maiores mudanças políticas já experimentadas pela nação. O tabelamento de preço, pois, não tinha o intuito de amparar situação econômica regular, como ocorre com as circulares do Banco Central. Destarte, estreme de dúvidas, o caso objeto do presente estudo não guarda qualquer relação com a hipótese do tabelamento de preço, bem como com qualquer outra editada em situação extraordinária.

Caso extremamente diverso é o das circulares do Banco Central, que visam a tutelar situação regular e permanente – Política Econômica nacional – e cuja sucessão se deu diante da constatação da desnecessidade da declaração de depósito com valores até determinado limite. Taxar tais normas de temporárias seria entrar num âmbito de discricionariedade muito amplo, que acabariam por quebrar a segurança jurídica do tipo penal, como leciona Muñoz Conde (2001).

Importante, neste ponto, transcrever os ensinamentos de Delmanto Junior (2007, P. 480), deixando clara a divergência entre ambos os exemplos acima confrontados, bem como seu entendimento de que a retroatividade das normas complementares editadas pelo Banco Central é imperiosa:

A nosso ver, com a inevitável e irreversível abertura cambial de nosso País, esses dispositivos devem, sim, retroagir, sempre que beneficiarem o acusado. [...] reafirmamos a nossa convicção de que o fato de uma norma penal ser em branco (integrada pelo seu complemento) não implica que ela seja necessariamente uma norma excepcional ou temporária, como pudemos tratar neste artigo, lembrando os ensinamentos de Taipa de Carvalho e José Henrique Pierangelli.

E esse é o caso do art. 22, parágrafo único, última parte, da Lei 7.492/86, complementado pelas respectivas Circulares, que, frise-se, não podem ser tidas como “excepcionais” ou temporárias (ao contrário do que se verifica com as citadas “tabelas de preço” impostas por excepcionais, temporários e artificiais “Planos” ou “Pacotes Econômicos” que tantos danos trouxeram ao nosso País).

Neste sentido mesmo sentido, opina Cruz (2010, p. 113/114), fazendo paralelo com as lições de Claus Roxin:

como exemplifica Claus Roxin, as limitações de velocidade dotadas de sanção penal não são normas penais temporárias. A alteração de valores para a exoneração do dever de declarar capitais internacionais pode ensejar, portanto, abolitio criminis (por exemplo, comparação das circulares Bacen 3.181/2006 e 3.071/2001)

Diante do exposto, as normas circulares do Banco Central integradoras do tipo de evasão de divisas na modalidade de manutenção de depósito no exterior sem a devida declaração visam a tutelar situação comum, sem qualquer caráter temporário ou excepcional, qual seja, a política econômica brasileira, que durante este período não atravessou qualquer momento tormentoso ou de crise.


Notas e Referências:

[1] Conforme Relatório de Capitais Brasileiros no Exterior (2001-2005), disponível em www.bcb.gov.br

BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional & Contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

CARVALHO, Américo Taipa de. Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.

CONDE, Francisco Muñoz. Edmund Mezger y el Derecho penal de su tempo: los orígenes ideológicos de a polémica entre causalismo y finalismo. 2. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2001

CRUZ, Flávio Antônio. Gestão temerária, evasão de divisas e aporias. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 86, set./out. 2010.

FELDENS, Luciano; SCHIMIDT, Andrei Zenkner. O crime de evasão de divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

FELDENS, Luciano; SCHIMIDT, Andrei Zenkner. O delito de evasão de divisas 20 anos depois. In: Crimes contra o sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

FORNAZARI JUNIOR, Milton. A legitimidade do crime de evasão de divisas como norma penal em branco e sua legislação integradora. Revista Criminal. São Paulo: Fiuza. Ano 02, vol. 04, jul/set, 2008

SILVA, Paulo Cezar da. Crimes contra o sistema financeiro nacional: aspectos penais e processuais da lei nº 7.492/86. São Paulo: Quartier Latin, 2006

TÓRTIMA, José Carlos; TÓRTIMA, Fernanda Lara. Evasão de divisas. Uma crítica ao conceito territorial de saída de divisas contido no parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009


Rafael Bruno de Sá. Rafael Bruno de Sá é Advogado Criminalista. Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS. Pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Pós-Graduado em Ciências Criminais pelo Juspodivm – Faculdade Baiana de Direito.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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