Delação premiada a rainha das provas?

23/02/2016

Por Hélio Rubens Brasil - 23/02/2016

O instituto da delação premiada, introduzido no ordenamento jurídico pátrio na década de 80, em inspiração ao Direito Anglo-Saxão, consiste em benesse legal que “premia” com a atenuação ou isenção de pena o acusado que colaborar com o processo criminal mediante a delação de coautores, auxiliar na elucidação do crime, recuperação de produtos e proveitos das infrações ou na localização de eventual vítima.

Em voga nos últimos tempos, em virtude da visibilidade da Operação Lava Jato, deflagrada pela Polícia Federal, com ampla difusão na mídia nacional, parece ter se tornado o método investigativo dos mais utilizados, como outrora ocorrera com as interceptações telefônicas.

A adoção desmedida do referido expediente como meio de investigação, contudo, deve ser analisado com extrema cautela.

Importante pontuar que em matéria probatória penal, a palavra do delator deve ser vista com reserva, pois sempre suspeita e capciosa, já que pode estar impregnada de intenções escusas, no intuito de desviar o foco da investigação, eximir responsabilidades de cúmplices, incriminar pessoas inocentes e, principalmente, obter um tratamento menos rigoroso para si. Esta última ilação, por si só, tornaria discutível a adoção do instituto, consoante lecionam os mais respeitados estudiosos da prova.

Não bastasse, a utilização reiterada da colaboração premiada, vem sendo utilizada de forma destorcida, tornando-a passível de anulações, nos casos em que se verifique ilegalidades.

Isto porque, a exemplo da confissão do réu, a delação pressupõe espontaneidade e voluntariedade, a despeito de, na prática, a imposição da lei de regência não ser observada.

Em muitos casos verifica-se a aplicação do instituto como mecanismo de pressão psicológica e até mesmo de coação física, cuja constância pode ser observada em decisões de decretação de prisão preventiva desprovidas de fundamentação, proferidas com o propósito único de obter a delação “premiada”.

A crítica reside no fato de o segregado da liberdade não depor de forma espontânea e livre, haja vista sua disposição de vontade ou de barganha estarem limitados pelo fato de estar encarcerado, o que torna a prova viciada desde a origem, pois em desconformidade com a legislação e com o próprio texto constitucional.

O frenesi atual com a delação premiada é comparável com a confissão que, em período transato, fora denominada como a rainha das provas, e era obtida mediante tortura, com amparo na legislação então em vigência e com respaldo dos jurisconsultos da época.

Atualmente, contudo, a tortura mostra-se indefensável sob qualquer pretexto, sobretudo a partir da evolução dos Direitos Humanos, sendo considerada, em nosso Direito Pátrio, um delito hediondo.

Cabe aqui rememorar o conceito de tortura para fins do direito penal, previsto na Lei 9.455/97, em seu art. 1º, cuja dicção soa:

“Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; (...)

É certo que uma das maiores formas de violência existentes é a privação da liberdade, tanto que é tratado em nosso ordenamento como medida de extrema exceção e ultima ratio, porquanto afetam diretamente não só o status libertatis mas também o status dignitatis da pessoa.

A Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura, integrante do Superior Tribunal de Justiça, assim qualificou nosso sistema prisional (apud NUNES, Adeildo, 2012, p. 311/312):

“O processo de deterioração do desumano sistema carcerário é evidente: prisões superlotadas, sem lugar para todos; muitos dormem no chão de cimento, em colchões de espumas imundos, ou se sobre cobertor. Onde o espaço no chão não é suficiente para permitir que todos se deitem, os presos se revezam; o meio ambiente é insalubre; os doentes são, muitas vezes misturados com os sadios; há ratos, baratas; os programas educativos, recreativos e profissionalizantes quase inexistem; a falta de consideração a dignidade dos presos é notória.”

Por essa razão, quando uma pessoa esta encarcerada, além de estar sofrendo as funestas consequências físicas da impossibilidade de locomoção e comunicação, está com o seu psicológico altamente abalado, o que torna questionável sob todos os aspectos a sua manifestação de vontade.

Não se olvida, ainda, a faceta do principio da legalidade que retrata o dever do Estado lato sensu de fazer apenas o que a lei determina. Sob este panorama, a decretação de prisões cautelares arbitrarias, a pretexto de apurar delitos, constrangendo acusados com o emprego de violência ou grave ameaça a liberdade, causando-lhes sofrimento físico e mental, com o nítido intuito de obter informações, declarações ou confissão, institucionaliza novamente a tortura como meio de prova.

O raciocínio simplório e antidemocrático de que o referido instrumento processual pretende esclarecer infrações penais em que o poder econômico tem grande influência, como a única alternativa para a conseqüente punição dos agentes envolvidos, nos levaria ao retrocesso da execrável máxima de que “os fins justificam os meios”.

Na precisa lição de Alexandre de Moraes (1998, p.110), temos que:

“A ilegalidade do ato praticado, além de eticamente inadmissível, não se transmuda em ato lícito, ainda que em detrimento da apuração da verdade, porque ofende um direito fundamental da pessoa humana, valor que, proporcionalmente, se sobrepõe ao interesse de sociedade no combate ao crime. É um pequeno preço que se paga por viver-se em um Estado Democrático de Direito.”

Conclui-se, então, que a utilização desvirtuada de tal instituto é, na prática, a exposição da ineficiência do Estado em alcançar os meios de prova através dos mecanismos legais e constitucionais, tendo que lançar mãos de meios questionáveis e muitas vezes espúrios na tentativa de elucidação de condutas delitivas, o que depõe contra todos os princípios de um Estado Democrático de Direito e torna nula a “prova”.


Notas e Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> . Acesso em 18 fev. 2016.

BRASIL. Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9455.htm>. Acesso em: 18 fev. 2016

BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em: 18 fev. 2016

GUIDI, José Alexandre Marson. Delação premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz, 2006.

LOPES JUNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-24/limite-penal-delacao-premiada-direito-penal-tambem-lavado-jato>. Acesso em: 18 dez 2016.

MINAGE, Thiago. Prisões e medidas cautelares à luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 4ª Ed. São Paulo, Atlas, 1998.

NUNES, Adeildo. Da Execução penal, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003.


Hélio Rubens BrasilHélio Rubens Brasil é Advogado criminalista, graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, pós-graduado em Direito Constitucional e Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina-CESUSC, Ex-Conselheiro Estadual da OAB/SC, Ex-Conselheiro Federal da OAB/SC, Presidente da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina-AACRIMESC, sócio do escritório Santana, Brasil & De Bona - Advocacia & Consultoria.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.
 

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