Defensoria Pública, cidadania e acesso à ordem jurídica justa

17/08/2019

O acesso à justiça constitui requisito fundamental de um sistema jurídico que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos. Sem o direito de acesso à justiça os demais direitos seriam essencialmente ilusórios.[1]

Assim, observe-se que, tecnicamente, o direito de acesso à justiça, muito mais do que um direito propriamente substancial, serve ao ordenamento jurídico na qualidade de garantia fundamental, ou seja, atua como verdadeiro instrumento constitucional para a garantia dos demais direitos fundamentais constitucionalmente previstos.[2] Tal afirmativa, contudo, em nada reduz sua importância. Pelo contrário, impõe um conjunto de esforços e medidas do Estado e da sociedade civil na sua promoção.

No entanto, ao tratar do direito fundamental do acesso à justiça no ordenamento jurídico pátrio, comumente, menciona-se apenas o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, da CRFB). É verdade que, quando falamos em acesso à justiça, há uma imediata associação com a atividade estatal de solução de litígios tradicionalmente desempenhada pelo Poder Judiciário. A expressão “acesso à justiça”, contudo, vem passando por intenso processo de ressignificação. O conceito, por isso mesmo, deve ser tido como muito mais amplo, abarcando outros tantos métodos (e instituições) igualmente adequados para solução dos litígios e promoção de direitos.

Buscando superar qualquer visão reducionista, há muito já sustenta Kazuo Watanabe[3] que a problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. O célebre jurista vai além. Em recente entrevista ao Conjur, afirmou que “Quando falo nisso, trato da atualização do conceito de acesso à justiça (...) para não significar somente acesso ao Poder Judiciário. Os cidadãos têm direito de ser ouvidos e atendidos, não somente em situação de controvérsias, mas em problemas jurídicos que impeçam o pleno exercício da cidadania, como nas dificuldades para a obtenção de seus documentos ou de seus familiares ou os relativos a seus bens.”

Nesse sentido, adotando taxativamente o modelo público de assistência jurídica, a Constituição Federal impôs à Defensoria Pública (e somente a ela) a função de defesa, integral e gratuita, da população hipossuficiente. Sob um prisma igualitário, portanto, assume-se uma dívida histórica com a camada mais pobre da população, franqueando-lhes o direito de acessar ao justo, que agora se sabe não se confundir com o mero acesso ao Poder Judiciário.[4]

Em outras palavras: o acesso à justiça deve ser entendido não só como acesso aos Tribunais, mas também como acesso ao exercício pacífico e pleno dos direitos e, em especial, dos direitos fundamentais, bem como as diversas alternativas para a resolução pacífica dos conflitos sociais.[5]

Para sua efetivação, portanto, optou o constituinte por um modelo público de realização do direito de acesso à justiça, a ser garantido por instituição pública, de caráter permanente e dotada de autonomia administrativa, financeira e funcional, composta de integrantes admitidos por concurso público de provas e títulos. Quis assim a Constituição que se tratasse de serviço público de prestação de assistência jurídica integral a envolver atuação judicial e extrajudicial: educação em direitos, orientação jurídica, defesa individual e coletiva em todos os campos do Direito.

Isso porque a efetividade do direito de acesso igualitário à justiça possui como pressuposto não apenas a proibição de qualquer mecanismo ou barreira que impeça o exercício do direito de ação, mas também apresenta uma dimensão positiva, que se traduz exatamente na obrigação imposta ao Estado de assegurar que todos tenham condições efetivas de postular e de defender seus direitos perante o sistema de justiça, independentemente de sua condição de fortuna.

Após o processo de redemocratização na América Latina e no Brasil, em especial com a Constituição de 1988, inúmeros instrumentos foram criados para conferir concretude aos direitos fundamentais, especialmente em relação aos cidadãos historicamente excluídos e marginalizados. Surge a consequente necessidade de criação e desenvolvimento de mecanismos capazes de deflagrar a atuação de todo um sistema de justiça, garantindo o amplo e irrestrito acesso à ordem jurídica.

Ou seja, há uma flagrante vinculação temática entre acesso à justiça e Defensoria Pública, instituição criada e vocacionada constitucionalmente para sua concretização. Em sua perspectiva mais ampla, o acesso à justiça visa incluir o cidadão que está à margem do sistema e, sob o prisma da autocomposição, objetiva estimular, difundir e educar o assistido a melhor resolver conflitos por meio de ações comunicativas, ciente de que a garantia constitucional abrange não apenas a prevenção e a reparação de direitos, mas a realização de soluções negociadas e o fomento da mobilização da sociedade para que possa participar ativamente tanto dos procedimentos de resolução de disputas como de seus resultados.[6]

É evidente, portanto, que a Defensoria Pública tem um trabalho destacado na defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, especificamente no que tange à assistência jurídica integral e gratuita, que possibilita o acesso, sobretudo dos vulneráveis (mas não apenas), à justiça.

A necessidade que pauta o atual agir do Defensor Público, como se percebe, não é exclusivamente econômica. É a carência de cidadania que deve orientar o agir e legitimar o ato de “defensorar”. Há, ainda, uma inversão da lógica: não é a justiça da causa que permite a atuação do Defensor Público, mas sim a atuação dele que poderá tornar uma atuação estatal justa.[7]

A Defensoria Pública, então, é verdadeira metagarantia, ou seja, uma garantia das garantias, tendo a incumbência constitucional de atuar na promoção dos direitos fundamentais, na busca pelo justo e por mais cidadania.

Todo o sistema de justiça, e em especial a Instituição, deve se configurar como um instrumento para a defesa efetiva dos direitos substanciais das pessoas em condição de vulnerabilidade. Afinal, as pessoas em condição de vulnerabilidade encontram ainda mais obstáculos para o seu exercício. Por isso, dever-se-á levar a cabo uma atuação ainda mais intensa para vencer, eliminar ou mitigar as ditas limitações.

No Brasil, é verdade, adota-se o sistema de jurisdição una, em que do Poder Judiciário emana a última palavra (ao menos naquela rodada deliberativa) em matéria de direito. No entanto, a LC 80/94, o CPC/2015 e inúmeras outras normas (com fundamento último na Constituição e na normativa internacional) fomentam a resolução dos conflitos sociais prioritariamente por métodos diversos, como a negociação, a mediação e a conciliação, cabendo à Defensoria Pública também esse papel de dirimir os conflitos e pacificar a sociedade, afastando a litigância judicial de toda e qualquer demanda.

Isso porque, da mesma forma que acesso à justiça não se confunde com acesso ao Poder Judiciário, assistência jurídica (integral e gratuita) é conceito muito mais amplo que assistência (meramente) “judiciária”. Por isso, o art. 4º, inciso II, da LC 80/94, afirma ser função institucional “promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos”, o que está em sintonia com as normas fundamentais do CPC/15.

O Estado recorrer primariamente ao Poder Judiciário também é uma forma de incapacidade na gestão dos serviços públicos, os quais devem estar voltados, sempre que possível, ao exame do conflito originário e à devolução do poder de decisão às pessoas em conflito, como propõem os processos de autocomposição.

Mais do que mera via alternativa para o desafogo do Poder Judiciário, a solução extrajudicial de conflitos revela-se como instrumento que vivifica os processos de educação em direitos e difusão de cidadania. Afinal, as dinâmicas de autocomposição do litígio são eficazes em promover não só a inserção, como também o engajamento participativo e responsável do sujeito na busca pela solução do litígio em que se veja envolvido, ainda que involuntariamente.

A análise, aliás, não deve se restringir apenas ao acesso em si, mas também à efetividade da justiça, abarcando, não só o ingresso do cidadão ao sistema de justiça, mas também a qualidade material e temporal de saída desse aparato. A garantia exige, portanto, a concepção de instrumentos e instituições hábeis a lidar, de maneira completa e ágil, com esses interesses.

Ademais, medidas como educação em direitos e simplificação da linguagem jurídica, para que cada vez mais cidadãos possam se valer subversivamente da linguagem do poder na luta por emancipação, vêm sendo amplamente discutidas atualmente.

Concluímos que a Defensoria Pública e, logo, o Defensor Público, para muito além de ser o advogado do pobre, reflete e congrega, em boa medida, todos os esforços e tendências de ampliação do acesso à justiça destacados pela academia na literatura construída sobre o tema. Assim, deve a Defensoria Pública romper com o modelo judicializante e baseado no litígio que sempre norteou o meio político, social e jurídico de solução de conflitos para estabelecer novas balizas de atuação, pautadas na desjudicialização e na prevenção do litígio, com a conscientização cidadã e educação em direitos, o que é, sem dúvida, mais eficaz em termos de pacificação social, escopo primeiro de um sistema de justiça que se pretende democrático.

 

Notas e Referências

[1] ESTEVES, Diogo; ROGER, Franklyn. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1.

[2] GIUDICELLI, Gustavo. Defensoria como metagarantia: transformando promessas constitucionais em efetividade, p. 6.

[3] Entrevista disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jun-09/entrevista-kazuo-watanabe-advogado>. Acesso em: 8 de agosto de 2019.

[4] AZEVEDO, Júlio Camargo. Prática Cível para Defensoria Pública. Belo Horizonte: Editora CEI, 2018, p. 28.

[5] DOS SANTOS, Denise Tanaka. Efetividade e interpretação das “100 Regras de Brasília”, p. 3.

[6] DA COSTA, Domingo Barroso; DE GODOY, Arion Escorsin. Educação em Direitos e Defensoria Pública. Curitiba: Juaruá, 2014, p. 20.

[7] CERVO, Carolina; NEWTON, Eduardo. Aos guerreiros e guerreiras que Defensoram por todo país. Disponível em: <http://www.justificando.com/2015/05/25/aos-guerreiros-e-guerreiras-que-defensoram-por-todo-pais>. Acesso em: 8 de agosto de 2019.

 

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