Declaração falsa de pobreza e crime: um discurso zumbi

08/03/2015

Por Karina Lopes - 08/03/2015

Problemática posta:

Aquele que declara falsamente, nos termos art. 2º, da Lei nº. 1.060/1950, não possuir condição econômica que lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família" para gozar do benefício da assistência judiciária gratuita pode ser responsabilizado criminalmente?

Um caso possível:

O cidadão, ao constituir um defensor, assina uma declaração de hipossuficiência. Alguns meses depois recebe uma intimação para apresentar defesa (resposta à acusação) em um processo criminal por falsificação de documento particular (art. 298 do CP). O motivo? O Promotor decide investigar (por conta própria) o fato noticiado em seu gabinete. O fato? O cidadão teria deixado/permitido que terceiro inserisse/falsificasse sua assinatura no referido documento.

Fundamentos jurídicos e crítica

Atualmente, a falsificação de documento particular no Brasil é crime previsto no artigo 298 do Código Penal, o qual prevê ser um ilícito-típico “falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro”.

 O dispositivo legal transcrito faz menção somente ao ato de falsificar ou alterar documento particular o que pressupõe, em regra, uma conduta comissiva, ou seja, para a ocorrência deste crime, é imprescindível que documento autêntico/verdadeiro – anteriormente existente – seja reproduzido diretamente pelo agente de forma infiel, caracterizando-se apenas excepcionalmente como crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, hipótese em que o agente tem o dever jurídico de evitar o resultado (13, § 2º, CP).

Ademais, para que haja enquadramento penal no artigo 298 do CP, a falsificação deve: (a) ser capaz de ludibriar terceiros, ou seja, deve possuir potencialidade lesiva concreta, inexistindo crime quando é perceptível por qualquer pessoa; (b) ser capaz de causar dano, sendo atípica se inócua; (c) haver dolo por parte do agente.

Com base nestes fundamentos os tribunais decidem que a declaração falsa de pobreza, para conseguir a isenção do pagamento de custas processuais, não caracteriza os verbos nucleares do crime de falsificação de documento [1].

Tratando-se de falsificação da assinatura em declaração de pobreza o Superior Tribunal de Justiça já decidiu se tratar de fato atípico por não evidenciar violência à fé pública (bem jurídico tutelado) [2] e por não possuir força probante. Assim, mesmo que o sujeito, na ânsia de obter o benefício da assistência judiciária gratuita, declare ser pobre, a conduta não é criminalizada, pois a Lei nº. 1.060/1951 admite prova em sentido contrário, havendo, inclusive, a possibilidade de o julgador requerer a juntada complementar de documentos comprobatórios.

Portanto, não há que se falar em responsabilização criminal do agente que permite que sua assinatura seja falseada em declaração de hipossuficiência. Neste caso, o que poderia ser contestado, eventualmente – não para fins penais – diante da intervenção mínima – é tão somente a assinatura, com a penalidade prevista na Lei nº.  1.060/1950, qual seja, multa de até dez vezes o valor das custas. Este é o entendimento majoritário dos tribunais.

Não obstante, em tempos de tendencial redução de garantias, o cenário hipotético (constante no início desta coluna), é corriqueiro, seja por prepotência ou por pura criação mental dos acusadores que não tem consciência do seu papel em um estado democrático; os quais acreditam serem dotados de poderes absolutos. Funcionam estes acusadores como uma espécie de “inquisidor-mor”, denunciam a seu bel-prazer, sem critérios, afinal podem pedir aditamento da denúncia ou, quem sabe, a absolvição em alegações finais se o fato não se comprovar durante o processo. Não sabem ou fingem não saber que um único processo criminal, por si só, pode causar dor, angustia, sacrifícios e que os prejuízos psicológicos são implícitos.

Por outro lado, há quem interprete a norma jurídica em favor dos direitos humanos, do ser humano e da dignidade do ser humano [3], consciente de que nas ações públicas "o Ministério Público não é órgão de acusação, mas órgão legitimado para acusação (...)” e que “enquanto órgão do Estado e integrante do Poder Público tem como relevante missão constitucional a defesa não dos interesses acusatórios, mas da ordem jurídica (...)" [4], ou seja, promotores de justiça comprometidos de forma ética com os sujeitos do processo e que respeitam e materializam o devido processo legal reconhecendo que em um estado democrático cabe ao Ministério Público “a defesa da integridade do direito” (Dworkin).  

O poder de denunciar não deveria existir para atormentar as pessoas, para criar dificuldades, constrangimentos, ou mesmo para cercear a liberdade. A denúncia deve, sempre, ser um instrumento para defesa da sociedade quando a conduta for evidentemente típica e existir indícios suficientes de autoria e materialidade concreta. Por vezes, soa abusivo e com ar de perseguição a sujeição de inocentes à ação penal, especialmente, quando se tratar de fato manifestamente atípico.

Por óbvio, compete ao juiz, antes de receber a denúncia, verificar se a conduta descrita na exordial se adequa ao tipo, se está prevista na legislação em vigor e se encontra suporte nos elementos contidos no inquérito. A (ir)responsabilidade pela deflagração da ação penal é compartilhada.

Esse discurso a muito já deveria estar sepultado, contudo, enquanto houver má-fé, se fizer uso de posicionamentos superados e teorias zumbis (que também insistem em não serem enterradas) [3] precisamos retomar o tema e escrever.


Notas e Referências:

[1] STJ - 5ª Turma - REsp 1100837-SC - Rel. Min. Jorge Arnaldo Esteves Lima - DJe 13.10.2009 e TJSC, Habeas Corpus n. 2013.025080-1, de Garopaba, rel. Des. Sérgio Rizelo, j. 14-05-2013

[2] Não há lesão à fé pública quando as manifestações exteriorizadas por meio de declaração de pobreza correspondem a vontade real do agente. Neste sentido: Não caracteriza o crime a conduta de escrevente extrajudicial que, no intuito de agilizar o procedimento relativo a casamento civil, falsifica, no pedido de habilitação, a assinatura dos nubentes, pois tal documento representava a vontade já formalmente manifestada pelos interessados, os quais, de fato, posteriormente, vieram a se casar (TJPB, RT 839/648 - in DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 749).

[3] Giacomolli, Nereu José. O devido processo penal – Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014.

[4] OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal. – 6 ed., rev, atual. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

[5] Giacomolli, Nereu José. O devido processo penal – Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014.


Karina C. B. Lopes é Mestre em Educação pela Universidade da Região de Joinville; Especialista em Direito Penal e Direito Processo Penal; Professora de Processo Penal e Prática Processual Penal; Advogada e sócia no escritório MRL Advogados.   

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