Debates sobre os institutos da renúncia e da cessão de direitos hereditários

05/02/2016

Por Denise Schmitt Siqueira Garcia - 05/02/2016

Introdução

O presente estudo científico tem como enfoque principal a análise da renúncia da herança e da cessão de direitos hereditários trazendo tanto as características de cada um desses institutos bem como as questões controvertidas que os envolve.

Mesmo após mais de uma década de promulgação do Código Civil de 2002 ainda residem algumas dúvidas interpretativas sobre alguns pontos deste texto legal. No que tange ao direito sucessório essas indagações são ainda maiores devido à grande lacuna deixada pelo legislador.

O tema do presente artigo é de extrema importância visto que os entendimentos são muitos e desta forma há bastante insegurança jurídica ao tratar da matéria no caso concreto, para tanto, faz-se necessária uma análise científica a respeito dos entendimentos doutrinários em face das jurisprudências para que se possa compreender os argumentos que levaram a esta prática.

1. Aspectos destacados sobre a renúncia da herança

Conforme dito alhures, como a herança é uma coisa boa, renunciar ou ceder à herança vai de encontro ao que se considera ser o correto, e pensando em preservar esse ato feito pelo herdeiro, no sentido de que este realmente saiba o que está fazendo, o legislador impôs maiores dificuldades para a concretização tanto da renúncia como da cessão de direitos hereditários.

Desta feita, num primeiro momento há que se traçar algumas considerações acerca da diferença entre a renúncia e a cessão de direitos hereditários, eis que na prática ainda existem muitas distorções de entendimento sobre esse tema.

Conceitua-se renúncia como o ato pelo qual o herdeiro declara expressamente que não deseja receber a herança, sem designar beneficiário, sendo que o montante renunciado voltará para o monte para ser dividido entre os herdeiros daquela classe que existirem, ou se inexistir herdeiro da mesma classe, serão chamados os da classe seguinte.

Desse conceito convém extrair-se um requisito imprescindível da renúncia, que é ser feita de forma expressa, e sendo assim não pode ser tácita ou presumida, como foi permitido para a aceitação.

Além de ser feita de forma expressa o legislador ainda exigiu que fosse feita ou por instrumento público (escritura pública) ou o termo judicial (termo nos autos do inventário), então não pode ser feita em qualquer documento. (artigo 1806 do Código Civil).[1]

Quando o herdeiro renuncia ao seu quinhão hereditário não ocorre aceitação, ele simplesmente abre mão da sua parte na herança e esta porcentagem volta para o monte para ser dividida entre os herdeiros da mesma classe que existem e caso inexista mais nenhum, serão chamados a suceder os da classe seguinte.

Assim, na sucessão legítima, havendo herdeiros da mesma classe que o renunciante, a sua parte acresce-se à dos outros. Falecendo ‘A’ tendo três filhos: ‘B’, ‘C’ e ‘D’. Se ‘B’ renuncia, a herança, em vez de ser dividida em três partes iguais, correspondendo cada terço ao direito de um dos filhos, dividir-se-á em duas metades, cabendo respectivamente a ‘C’ e a ‘D’.

Se o renunciante for o único herdeiro de sua classe, serão chamados os herdeiros da classe seguinte. Havia um filho do de cujus e este renunciou. Serão chamados, então, os netos, não como representantes do filho renunciante, mas como descendentes dos mais próximos, herdando em nome próprio.

Quando se trata de sucessão testamentária é possível que o testador tenha previsto um substítuto em caso de renúncia, e, na hipótese, será este chamado. Tal situação ocorre quando o testador tenha estabelecido ser seu herdeiro Fulano, com a ressalva de que, se este morrer antes, ou não aceitar a herança, seja substituído por Beltrano.

Não pode o renunciante então indicar quem será beneficiado por sua quota parte. Se assim o quiser fazer não será a renúncia o ato correto, mas sim a cessão de direitos hereditários, sendo esta uma das diferenças cruciais entre esses dois institutos.

O artigo 1805, parágrafo 2º do Código Civil[2], equipara a renúncia à cessão gratuita, pura e simples da herança, aos outros coerdeiros. Sendo assim, o sucessor que abre mão de seu quinhão hereditário não tem a intenção de ser herdeiro.

Como é sabido, qualquer transferência de patrimônio gera a incidência de impostos. Se a transmissão for de bens de um morto para os vivos, será o causa mortis (ITCMD), que é um imposto estadual, e, portanto, legislado e cobrado pela exatoria de cada estado.

Assim, dependendo do estado em que estiverem localizados os bens será diferente a incidência desse imposto, podendo a alíquota variar de um estado para o outro.

Se a transferência do patrimônio for de vivo para vivo o imposto devido é o inter vivos, que poderá ser estadual ou municipal dependendo da situação.

Se for uma transferência onerosa o inter vivos é municipal (ITBI) e, sendo assim, é legislado por cada um dos municípios, variando a alíquota nesse caso dependendo do local onde está situado o bem. Se a transferência for gratuita o inter vivos é estadual (ITCMD), e, portanto, legislado pelo estado.

No caso da renúncia, como o herdeiro simplesmente abre mão de seu quinhão hereditário haverá a incidência somente do causa mortis (ITCMD).

Da mesma forma que a aceitação, a renúncia não pode ser feita parcialmente, nem condicionalmente, podendo também ser anulada caso ocorram vícios de consentimento.

Destaca-se que todos os herdeiros podem renunciar, menos os incapazes, que, no caso, necessitam não só do consentimento dos seus representantes ou assistentes, mas, ainda, de autorização judicial, que só deverá ser concedida quando houver justo fundamento para a renúncia.

2. Características da cessão de direitos hereditários

A cessão da herança, gratuita ou onerosa, consiste na transferência que o herdeiro, legítimo ou testamentário, faz a outrem de todo o quinhão hereditário ou de parte dele, que lhe compete após a abertura da sucessão, sendo que está prevista no artigo 1793 do Código Civil.

Art. 1793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o coerdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.

§ 1º Os direitos, conferidos ao herdeiro em consequência de substituição ou de direito de acrescer, presumem-se não abrangido pela cessão feita anteriormente.

§ 2º É ineficaz a cessão, pelo coerdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente.

§ 3º Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.

Aqui já se verifica uma diferença muito grande entre a cessão e a renúncia, eis que nesta não há aceitação do herdeiro e sequer a indicação de quem vai receber já na cessão de direitos hereditários, o herdeiro aceita a herança e depois indica quem vai recebê-la.

Se ocorrer, portanto, de o testador ter colocado na herança uma cláusula de inalienabilidade o herdeiro pode renunciar, mas não pode ceder. É que a cessão implica em aceitação e em transferência do quinhão hereditário, e desta liberdade não dispõe o herdeiro neste caso específico.

Diante disso, no caso da cessão haverá incidência de ITCMD da transferência dos bens do morto para o herdeiro e depois outra incidência de imposto da transferência do herdeiro/cedente para o cessionário.

Esse segundo imposto poderá ser recolhido pelo estado, ou seja, ITCMD, no caso da cessão ser gratuita, ou poderá ser recolhido pelo município, ou seja, ITBI, no caso de ser onerosa.

Importante frisar que como no Código Civil de 1916 não havia previsão expressa sobre a cessão de direitos hereditários esta era comumente chamada de renúncia translativa, ou seja, transmitida em favor de alguém. Para diferenciar a cessão da renúncia propriamente dita, que foi tratada no item acima, esta era chamada de renúncia abdicativa, ou seja, o renunciante “abre mão” de seu quinhão hereditário que vai ser enviado para o monte.

Destaca-se que essas nomenclaturas ainda são utilizadas no meio jurídico e acadêmico.

A cessão possui as seguintes características:

Tem cunho contratual.

b) A transferência pode ser feita de forma gratuita, caracterizando uma doação ou na forma onerosa como uma compra e venda.

Nesse caso a mudança que vai ocorrer é acerca da incidência dos impostos como já foi exposto anteriormente.

c) O cessionário adquire por ato inter vivos, mas à aquisição dá-se a título universal, ou seja, o cessionário recebe a totalidade ou parte alíquota de uma herança, que é, como já dito, um conjunto de bens direitos e obrigações deixadas após a abertura da sucessão.

Segundo o Código Civil, a cessão não pode ser feita de um bem identificado singularmente até mesmo porque todos os herdeiros são condôminos dos bens que a compõe.

A possibilidade da cessão ser feita de um bem identificado singularmente é haver a concordância dos demais herdeiros, sendo que todos devem ser maiores e capazes para isso.

d) Há necessidade de sucessão aberta, pois antes da morte caracterizaria pacto sucessório (ou pacto da corvina), que é vedado no ordenamento jurídico brasileiro.

Assim, fica evidenciado que antes da abertura da sucessão nenhum herdeiro pode ceder seu quinhão hereditário, e caso seja feito um contrato assim este será considerado nulo de pleno direito.

e) O cedente deve ter capacidade para alienar.

Destacam-se palavras de MARIA BERENICE DIAS: “Como a cessão é negócio jurídico, é necessário agente capaz. Assim, o herdeiro menor de idade não pode ceder seu quinhão hereditário, ainda que representado ou assistido por seus pais. Para que tal ocorra, é necessária a devida autorização judicial, devendo ser comprovada a evidente utilidade ou conveniência do ato translativo”.[3]

f) Deve ser feita antes da partilha, pois após a partilha se dá a extinção da universalidade da herança e da comunhão entre todos os sucessores no patrimônio, então o herdeiro poderá fazer simples contrato de compra e venda, doação ou dação em pagamento.

g) É negócio jurídico aleatório, de modo que o cessionário toma sobre si a responsabilidade, e o cedente não será responsabilizado se na partilha os bens existirem em quantidade menor do que esperava, a menos que tenha disposição contrária.

Comenta Arnaldo Rizzardo[4],

Em especial, transparece o caráter aleatório, não muito comum em outros contratos, pois nem sempre, quando consumada a cessão, há o conhecimento da quantidade e da extensão do patrimônio e dos encargos. Isto principalmente se o contrato envolve a quota do herdeiro, integrada por bens e dívidas.

(...) Não acontece, a rigor, a entrega do bem quando do contrato, mas unicamente no momento da partilha. Isto pelo menos para efeitos da lei, no sentido de individualização dos bens, posto que a posse e o domínio na quota ideal acontecem com a transferência. Tem o cedente a posse e o domínio desde a abertura da sucessão, a partir do negócio se transferem tais tributos.

Assim, frustrado o negócio o cessionário não pode buscar a execução específica, solvendo-se a questão em perdas e danos.

h) Há direito de preferência e o cedente não pode ceder a sua quota hereditária à terceira pessoa, estranha à sucessão, quando um dos coerdeiros quiser adquiri-la tanto por tanto.

Essa regra se dá graças ao interesse do direito de sucessão de manter entre os próprios herdeiros a herança. Assim, “(...) se o coerdeiro for preterido em tal direito, poderá, depositado o preço, haver para si a quota cedida a estranho (art. 1.795 do CC[5]). Nos termos da última norma, essa ação de adjudicação está sujeita ao prazo decadencial de 180 dias, a contar da transmissão do bem”.[6]

i) O cedente não se responsabiliza pela evicção, salvo se enumerar os bens e estes não existirem, ou se for privado da sua qualidade de herdeiro.

Relembra-se que os casos de privação da qualidade de herdeiro seriam a indignidade ou a deserdação.

j) O Cessionário não assume o lugar do herdeiro, mas simplesmente de um contraente que poderá ingressar no processo de inventário ou de arrolamento com a escritura pública para garantia de seus direitos.

l) Por fim, o contrato de cessão requer sua confecção através de escritura pública, conforme se constata no artigo 1793 do Código Civil.

m) A cessão de direitos hereditários de bem indivisível somente poderá ser feita se houver autorização judicial.

Com relação a esta última característica existem sérias divergências doutrinárias e jurisprudenciais que serão analisadas a seguir em item separado.

Destaca-se que a cessão de direitos hereditários poderá ocorrer tanto no inventário ou arrolamento judicial como no inventário extrajudicial, sendo que nesse último caso a cessão será feita na mesma escritura pública.

3. Documentos que podem ser utilizados para confecção da cessão de direitos hereditários

Como já ficou bem claro no artigo 1793 do Código Civil, que trata do contrato de cessão de direitos hereditários, para sua confecção não é permitida a utilização de um instrumento particular.

Segundo o que está escrito no caput desse artigo a cessão pode ser objeto de cessão por escritura pública.

A interpretação literal e clara desse artigo é que para a confecção do contrato de cessão há que se utilizar a escritura pública, porém esse entendimento não é tão pacífico como se tratará a seguir.

Primeiro há que se considerar que não havia no Código Civil de 1916 a previsão do contrato de cessão de direitos hereditários, então para confecção dessa forma contratual eram utilizados os regramentos previstos para o contrato de cessão comum e os regramentos acerca da renúncia.

Assim, como para confecção da renúncia poderia ser utilizado o termo judicial ou a escritura pública, a maioria dos advogados a realizavam na forma de termo judicial por ser mais fácil, eis que é um documento feito pelo escrivão dentro do próprio processo que já estava tramitando.

Com a promulgação do Código Civil de 2002, mesmo com a alteração legislativa que inclui a cessão de direitos hereditários e a exigência de confecção por escritura pública, na prática a maioria dos magistrados ainda aceitava a confecção desta por termo judicial.

A doutrina segue o que diz a lei, assim, Gonçalves[7] timidamente fala sobre o assunto, dispondo que “[...] a cessão de direitos hereditários, por versar sobre bem imóvel, exige, no tocante à forma, escritura pública [...]”. Igualmente leciona Venosa[8]: “como a herança é considerada bem imóvel (art. 80, II[9]), o negócio jurídico requer escritura pública”.

Do mesmo entendimento compartilha Cahali[10], o qual dispõe “quanto à forma, por ser a herança considerada imóvel (CC, art. 80, II), coerente exigir-se a escritura pública, como faz o art. 1.793, e, mesmo na falta de regra expressa, a outorga uxória e a outorga marital”.

Destaca-se também que exige, o artigo 108 do Código Civil, a obrigatoriedade da escritura pública nos negócios que envolvem direitos reais sobre bens imóveis: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário mínimo vigente”.

Alguns doutrinadores, interpretando o que diz o caput do artigo 1793 do Código Civil, quanto a essa exigência de ser por escritura pública ainda se manifestam que o verbo “pode”, contido no artigo, dá a opção da cessão ser feita ou não por escritura pública.

Porém essa não é a interpretação que deve ser aceita, eis que o verbo “pode”, contido nesse artigo, refere-se a poder ou não o herdeiro realizar a cessão, pois caso queira fazer deve fazer através da escritura pública.

Ocorre que com o uso contínuo de contratos de cessão se efetivando por termos judiciais essa prática ficou aceita e na atualidade há jurisprudência no sentido de ser possível a realização desse ato através desse documento.

Por outro lado, verifica-se que a cessão, por termo nos autos, além de abreviar o processo sucessório, evita maiores ônus às partes contratantes, que se vêem desobrigadas de comparecer no Tabelionato a fim de perfectibilizar por escritura pública aquilo que, com igual segurança, pode ser feito nos autos do inventário ou arrolamento, sob direta fiscalização do juiz e do escrivão que será o responsável pela lavratura do documento.

Assim, verifica-se que as cautelas e as solenidades exigidas pelo instrumento público/escritura pública podem perfeitamente ser substituídas por outras, de não menor qualidade, eis que com a lavratura do termo nos autos, presentes estão o cuidado e a cautela necessários.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já havia se manifestado nesse sentido:

O escrito público, emanado do tabelião de notas ou do escrivão, tem a sua autenticidade assegurada pela mesma fé pública. São escrituras públicas, em sentido amplo, revestidas do mesmo valor. A questão da validade do ato jurídico por eles documentado se desloca, assim, para o âmbito da competência para fazê-lo. Não se cuida de forma; que públicos e dotados de fé pública são os escritos. Mas de saber se podia fazê-lo o serventuário que o fez. Se cabe na competência do escrivão a documentação de determinado ato, os efeitos deste ato serão aqueles que a lei atribua.[11]

Destacam-se alguns julgados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que aceita a feitura da cessão através de termo judicial, conforme se verifica das jurisprudências extraídas do site do referido tribunal.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE CONDICIONOU A PERFECTIBILIDADE DO TERMO DE CESSÃO À ASSINATURA DOS PRÓPRIOS CEDENTES OU DE PROCURADOR COM PODERES ESPECIAIS CONSTITUÍDOS MEDIANTE INSTRUMENTO PÚBLICO. IRRESIGNAÇÃO DO AGRAVANTE, AO ARGUMENTO DE QUE A CESSÃO DE HERANÇA NÃO DEMANDARIA FORMA PÚBLICA. ALEGAÇÃO DE QUE OS PODERES OUTORGADOS POR PROCURAÇÃO PARTICULAR SUBSCRITA PELOS CEDENTES SERIAM SUFICIENTES PARA CONCLUIR O ATO. INSUBSISTÊNCIA DOS FUNDAMENTOS RECURSAIS. AGRAVO DESPROVIDO.

A cessão de direitos hereditários, que por determinação legal (artigo 80, inciso II, do Código Civil de 2002, com idêntica redação ao artigo 44, inciso II, do Código Civil de 1916) exige que sua formalização seja efetuada por escritura pública, pode ser realizada nos próprios autos do inventário, por termo próprio, na forma de renúncia translativa da herança, haja vista que a forma é igualmente admitida para a renúncia propriamente dita, nos termos do artigo 1.806 do Código Civil atual, correspondente ao artigo 1.581 do Código revogado. Com efeito, não seria lógico admitir-se a renúncia - mais abrangente e com implicações mais severas para os herdeiros - por declaração nos autos, e não se consentir, pelo mesmo procedimento, a cessão dos direitos hereditários.

Entretanto, o termo judicial de cessão deve ser subscrito pessoalmente pelos cedentes ou por procurador munido de instrumento público de mandato. É que equiparados, no ponto, ambos os institutos, a cessão de direitos hereditários por declaração nos autos deverá obedecer as mesmas formalidades inerentes à renúncia por termo judicial, em que o instrumento deverá ser assinado pessoalmente pelos renunciantes ou por procurador com poderes especiais, necessariamente outorgados por procuração pública, como requisito essencial para a validade do ato.[12]

Sobre o tema, Cahali[13] leciona que “[...] sem dúvida agiu bem o legislador de 2002 em definir uma posição a respeito, como visto, da necessidade de escritura pública e de anuência dos coerdeiros. Válida a segurança de se ter norma expressa, embora a opção legislativa contrarie a tendência de vários julgados e de parte da doutrina”.

Independente dos entendimentos doutrinários, a jurisprudência criou sua própria tese para aceitar que a cessão de direitos hereditários seja efetuada mediante termo judicial, equiparando-a, assim, à renúncia translativa, que é aquela “efetuada em benefício de determinada pessoa, cuja natureza jurídica é de cessão de direitos”.[14]

DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. ARROLAMENTO DE BENS. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. EXIGÊNCIA DE INSTRUMENTO PÚBLICO. POSSIBILIDADE DA REALIZAÇÃO POR TERMO NOS AUTOS DESDE QUE PERFECTIBILIZADA PESSOALMENTE PELOS RENUNCIANTES OU POR PROCURADOR COM PODERES ESPECIAIS OUTORGADOS POR INSTRUMENTO PÚBLICO. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.

A cessão de direitos hereditários, para ter validade e eficácia, há que ser formalizada, ou por escritura pública, ou por termo nos próprios autos de inventário ou arrolamento, impondo-se, na última hipótese, seja o termo assinado pessoalmente pelo herdeiro cedente ou por procurador munido de poderes especiais para realizar a cessão, poderes esses conferidos por instrumento público de mandato. É a exegese que resulta da interpretação sistêmica dos arts. 1.793 e 1.806 do atual Código Civil.[15] (Grifou-se)

A jurisprudência chegou, inclusive, a acrescentar à lei um dispositivo não existente como forma de fundamentar o aceite da cessão através de termo judicial.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO. CERCEAMENTO DE DEFESA ANTE O JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE INEXISTENTE. PARTILHA AMIGÁVEL HOMOLOGADA POR SENTENÇA. CLÁUSULA DE RENÚNCIA TRANSLATIVA OU CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. EXIGÊNCIA DE FORMA PRESCRITA EM LEI. INSTRUMENTO PÚBLICO OU TERMO NOS AUTOS. INOBSERVÂNCIA DE TAIS FORMALIDADES. ATO JURÍDICO NULO. NULIDADE MANTIDA. SENTENÇA INALTERADA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

O Código Civil determina que a renúncia da herança deve constar, expressamente, de escritura pública, ou termo judicial para ser válida, de modo que a partilha amigável, contendo cessão de direitos (renúncia translativa) sem observância de tais formalidades é considerada nula. [16]

E ainda:

PROCESSO CIVIL E CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM PERDAS E DANOS. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. HERDEIROS RENUNCIANTES E CEDENTES DE DIREITOS HEREDITÁRIOS EM FAVOR DA MÃE. LEGITIMIDADE DA VIÚVA PARA ALIENAR O BEM. VENDEDORA ANALFABETA. CONDIÇÃO QUE, POR SI SÓ, NÃO AFASTA SEU PODER DE ENTENDIMENTO. PRESENÇA DOS REQUISITOS DE VALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

A cessão de direitos hereditários será válida e eficaz se efetivada mediante escritura pública ou por termo nos próprios autos.[17](Grifou-se).

Diverso do que foi sustentado até o momento acerca da possibilidade da cessão de direitos hereditários ser feita por termo nos autos, apresenta-se o entendimento de Maria Berenice Dias: “Não dá mesmo para a cessão ser levada a efeito por termo nos autos, pois trata de negócio jurídico absolutamente estranho à sucessão. Ao depois, de forma expressa a lei diz que a escritura pública é de essência do ato (CC, 1973). A exigência do instrumento público também se justifica porque a lei considera a herança um bem imóvel (CC, 80 II)”.

Verifica-se que ainda existe grande celeuma sobre o tema, porém eu entendo que muito embora exista previsão legal de que a cessão de direitos hereditários precise ser feita por escritura pública a confecção por termo judicial não geraria nenhum prejuízo aos contratantes, eis que esse documento seria feito com os mesmos cuidados, ou seja, perante um servidor com fé pública, que é o escrivão que fiscalizaria a confecção deste ATP.

4. Necessidade ou não da outorga conjugal para confecção da cessão de direitos hereditários e para a renúncia

Existe a indagação acerca da necessidade ou não da outorga conjugal no caso da renúncia ou da cessão de direitos hereditários, e sobre isso se extrai algumas manifestações.

Na renúncia, como dito alhures, o renunciante não aceita seu quinhão hereditário, portanto, não haveria a necessidade de outorga conjugal, porém destaca-se que esse não é um entendimento pacífico, pois como a posse e o domínio da herança já são transmitidos com o abertura da sucessão pelo Princípio da Saisine, conforme previsto nos artigos 1784 e 1791, parágrafo único do Código Civil, haveria sim a necessidade de outorga no caso de renúncia também.

Já no caso da cessão de direitos hereditários, como o herdeiro aceita seu quinhão hereditário para depois transmitir gratuitamente ou onerosamente para um terceiro haveria então a necessidade da outorga, eis que o quinhão vai integrar o patrimônio do herdeiro cedente.

Manifesta-se Maria Berenice Dias: “Ao contrário da renúncia, onde a doutrina se divide sobre a necessidade da vênia conjugal, em se tratando de cessão é indispensável a concordância do cônjuge ou do convivente. É que na cessão há o recebimento da herança e sua posterior transferência. Ou seja, a herança ingressou no patrimônio do herdeiro. E, como a herança é considerada bem imóvel, nenhum dos cônjuges podem sem autorização do outro (CC, 1647, I), alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis”.[18]

Neste caso há duas exceções: no regime de separação de bens (artigo 1687 do Código Civil) e no da participação final dos aquestos, se assim for convencionado no pacto antenupcial (1656 do Código Civil).

Outro destaque a ser feito nesse caso é de que não haverá a necessidade da outorga conjugal no caso da separação de fato, pois já está consolidado na jurisprudência e na doutrina que há o fim da vida em comum no caso de rompimento da sociedade conjugal. “Assim, recebendo um dos cônjuges direitos sucessórios, estes não se comunicam ao outro, nada justificando que se exija sua concordância para o herdeiro ceder seus bens”.[19]

No caso da união estável e da união homoafetiva, caso os companheiros (as) não tenham adotado o regime de separação total de bens ou o de participação final dos aquestos com a devida isenção da outorga no contrato escrito firmado, haverá a necessidade da outorga no caso de cessão de direitos hereditários também.

Havendo negativa do cônjuge ou do companheiro (a) em anuir à cessão, possível é o pedido judicial de suprimento do consentimento.

Caso a cessão seja realizada sem a anuência do cônjuge ou do companheiro (a) a cessão é anulável e o prazo para propositura da ação será de dois anos, a contar do término da sociedade conjugal. (artigo 1649 do Código Civil).

Conclui-se que o entendimento majoritário é de que há a necessidade de outorga conjugal no caso da cessão de direitos hereditários, enquanto que no caso da renúncia existem mais divergências acerca da necessidade da outorga ou não.

Considerações finais

De acordo com o estudo efetuado na presente pesquisa, verifica-se que existem várias diferenças entre a renúncia e a cessão de direitos hereditários.

Na renúncia o herdeiro “abre mão” de seu quinhão hereditário para o monte e haverá a incidência somente do imposto causa mortis (ITCMD); já na cessão o herdeiro/cedente aceita seu quinhão e o transmite de forma gratuita ou onerosa em favor de outrem/cessionário. Nesse caso haverá incidência do imposto causa mortis (ITCMD) do falecido para o herdeiro e posteriormente outro imposto (ITBI ou ITCMD) do cedente para o cessionário. O tipo do imposto a ser cobrado vai depender se a cessão foi gratuita ou onerosa.

O contrato de cessão de direitos hereditários possui várias características específicas. Precisa ser feito por pessoa capaz, de forma gratuita ou onerosa, sendo que se for onerosa o cedente deve ofertar o quinhão cedido para seus coerdeiros, que se quiserem pagar tanto por tanto, terão direito de preferência.

A cessão poderá ser feita no lapso temporal compreendido entre a abertura da sucessão até a partilha. Antes da abertura da sucessão não pode, eis que caracteriza pacto sucessório, e após a partilha o herdeiro pode realizar um contrato de compra e venda, doação ou dação em pagamento.

A cessão deve ser feita do quinhão e somente pode haver identificação do bem singular se houver a anuência de todos os herdeiros, considerando-se que desde a abertura da sucessão o direito da herança pertence em condomínio a todos os herdeiros.

A cessão de bem indivisível somente pode ser feita se houver autorização judicial.

Muito embora haja estipulação expressa no Código Civil de que a cessão precisa ser feita por escritura pública, a doutrina e a jurisprudência majoritária entendem a possibilidade dela ser feita também por termo judicial.

No caso da renúncia ainda existem divergências acerca da necessidade ou não da outorga conjugal, exceto no caso de pessoas casadas no regime de separação total de bens ou quando estipularem a ausência da necessidade dessa outorga no regime de participação final dos aquestos.

Já no caso da cessão de direitos hereditários o posicionamento doutrinário é mais pacífico na necessidade da outorga conjugal, exceto nos mesmos casos da renúncia.

O mesmo regramento que se tem no caso do casamento também se adota para a união estável ou para união homoafetiva.


Notas e Referências:

[1] Artigo 1806. A renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial.

[2] Artigo 1805. A aceitação da herança, quando expressa, faz-se por declaração escrita, quando tácita, há de resultar tão-somente de atos próprios da qualidade de herdeiro.

(...)

§ 2º. Não importa igualmente aceitação a cessão gratuita, pura e simples, da herança, aos demais coerdeiros.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Editora revista dos tribunais, 2008. p. 201.

[4] RIZZARDO, Arnaldo. Direito das sucessões. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 100/101.

[5] Artigo 1795. O coerdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá, depositado o preço, haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a transmissão.

Parágrafo único. Sendo vários os coerdeiros a exercer a preferência, entre eles se distribuirá o quinhão cedido, na proporção das respectivas quotas hereditárias.

[6] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil – volume único. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Método, 2013. p. 1278

[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro 7 – direito das sucessões. 8 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014. p. 56.

[8] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil – direito das sucessões. 11 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011.p. 30.

[9] Artigo 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:

I – os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;

II – o direito à sucessão aberta

[10] CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil – volume 6: direito das sucessões. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.p. 77.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 110.756 RS, 2ª Turma, de 19.09.86. Revista trimestral de jurisprudência, 120/430.

[12] BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 2008.074932-6, de Joinville. Relator: Des. Subst. Carlos Adilson Silva; julgado em 29/04/2010.

[13] CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil – volume 6: direito das sucessões. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.p. 81.

[14] LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil – volume 5: direito de família e sucessões. 6 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p.391

[15] BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 2012.069305-3, de Araranguá. Relator: Des. Trindade dos Santos; julgado em 21/03/2013.

[16] BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2012.079279-1, de Itapema. Relator: Juiz Saul Steil; julgado em 19/02/2013.

[17] BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2012.015588-3, da Capital. Relator: Des. Luiz Carlos Freyesleben; julgado em 12/04/2012.

[18] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Editora revista dos tribunais, 2008. p. 206.

[19] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Editora revista dos tribunais, 2008. p. 206.

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Denise Schmitt Siqueira Garcia (2)Denise Schmitt Siqueira Garcia é Doutora pela Universidade de Alicante na Espanha. Mestre em Derecho Ambiental y Sostenibilidad pela Universidade de Alicante na Espanha. Mestre em Ciência Jurídica. Especialista em Direito Processual Civil, Graduada em Direito. Atualmente é professora do Programa de Pós graduação stricto sensu em Ciência Jurídica, de pós graduação lato sensu e da graduação. Coordenadora de pós graduação lato sensu em Direito Processual Civil da Universidade do Vale do Itajaí. Membro do grupo de pesquisa Estado, Direito Ambiental, Transnacionalidade. Pesquisadora do projeto de pesquisa aprovado no CNPq intitulado: Possibilidades e limites da Avaliação Ambiental Estratégica no Brasil e Impacto na Gestão Ambiental Portuária. Advogada.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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