“De volta para o futuro” ou “Retorno ao passado”: a função reparatória da Responsabilidade Civil e a Reforma do Código Civil.

07/02/2024

Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil

Na aclamada trilogia cinematográfica de ficção científica intitulada “De volta para o futuro” (ou, no original, Back to the future), assiste-se às viagens no tempo de Doc Emmett Brown e seu assistente adolescente, Marty Mcfly. No primeiro filme da série, ambos conseguem, com sucesso, voltar ao ano de 1955, mas lá ficam retidos por falhas no veículo de transporte, o DMC Delorean, um automóvel modificado pelo cientista com um capacitor de fluxo capaz de romper os limites do espaço e do tempo. A partir daí, tem-se então o mote principal do filme: a obtenção de uma forma qualquer para que o professor e seu discípulo pudessem voltar à sua própria época, em 1985.

É curioso como um filme que se ocupa da viagem ao passado tenha um título que remeta ao futuro. Mas isso pode ser explicado por duas interpretações, uma delas mais singela do que a outra. A primeira interpretação pode explicar o título a partir do problema principal dos personagens: presos no ano de 1955, desejam voltar a 1985, data posterior àquela em que se encontravam e, portanto, em relação àquela, um evento “futuro”. Essa primeira resposta, embora singela, não deixa de instigar certas objeções. Ora, para os personagens principais, o momento em que conseguiram viajar no tempo (e para o qual desejavam voltar) já ocorreu e, portanto, pelo menos de modo subjetivo (parece nem mesmo ser possível a compreensão objetiva dos acontecimentos em um mundo no qual a viagem temporal existe), é o passado.

A solução para o paradoxo é encontrada na segunda interpretação do título. A dupla de personagens principais, ao retornar para a sua própria época, não voltaria ao passado, mas ao futuro, pois, na nova linha temporal, ainda que em 1985, ambos já terão conseguido romper as barreiras impostas pelo espaço-tempo. Em outras palavras, a partir do momento em que viajaram para 1955, duas linhas temporais surgiram: (i) aquela em que ainda não haviam realizado a viagem temporal (e possivelmente nunca a teriam feito); e (ii) uma outra, em que já conseguiram. A primeira, na perspectiva dos viajantes, é pretérita. A segunda, é o futuro, em 1985. Não é fisicamente possível (nem eles desejam que seja) voltar à primeira. Mas é teoricamente possível chegar à segunda (ainda que não seja um retorno, propriamente dito, pois nunca estiveram no futuro, já que não se “está” em momento que ainda não “é”, mas “será”). O título da película não é, então, isento de críticas em nenhuma das interpretações. Seria melhor se se chamasse “Ida para o Futuro” (Voyage to the Future), embora comercialmente o título alternativo não teria sido tão atraente.

Bem, e o que essa divagação toda tem a ver com a Responsabilidade Civil e, mais especificamente, com a proposta de reforma do Código Civil, encomendada a uma comissão de juristas pelo Senado Federal?[i]

A resposta a essa pergunta encontra-se na leitura da nova redação sugerida para o caput do art. 950 do Código Civil:

Art. 950. A reparação é integral, com a finalidade de restituir o lesado ao estado anterior ao fato danoso. A indenização será fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

Ora, assim como Doc Emmett Brown e Marty McFly não querem (nem podem) voltar ao passado, também a vítima de um fato danoso não busca esse retorno. O que se quer é bem diferente. Deseja-se ir para o futuro; poder seguir adiante com a menor quantidade possível de consequências danosas.

O retorno ao passado (statu quo ante) é tido por muitos como o referencial para a pretensão reparatória. Trata-se de um grave equívoco que, se implementado, impedirá que parcela considerável da indenização seja concedida à vítima.

Pense-se primeiramente nos lucros cessantes, isto é, as vantagens futuras (em relação ao fato danoso)[ii] que razoavelmente a vítima deixou de obter, mas teria obtido se não houvesse ocorrido o fato danoso. Antes desse fato, essas vantagens ainda não estavam em seu patrimônio, não eram compreendidas no “statu quo ante”, mas ninguém irá objetar contra a sua inclusão na indenização.  Aliás, elas são expressamente mencionadas pela nova redação do art. 944 do Código Civil, sugerida pelo Relatório Parcial da Comissão:

Art. 944. A indenização compreende os efeitos da lesão a interesses concretamente merecedores de tutela, abrangendo danos emergentes, lucros cessantes e perda de uma chance. Inclui especialmente as consequências da violação da esfera moral e existencial da pessoa, sua integridade pessoal e saúde psicofísica.

Mas não é esse o único obstáculo ao retorno ao “statu quo ante”. A compensatio lucri cum damno também não seria possível nessa “viagem ao passado”. Com efeito, o que se quer na compensatio lucri cum dano é incluir, no cálculo da indenização, para fins de sua redução, as vantagens que a vítima obteve em decorrência direta dos prejuízos que tenha sofrido com o fato danoso. Apenas a título de exemplo didático e simples, pode-se cogitar do produto da venda das partes de um veículo automóvel completamente destruído, que terá de ser deduzido da indenização a ser paga pelo responsável.

A compensatio lucri cum damno não é espécie de compensação de dívidas, seja porque as vantagens não são um dever prestacional do agente responsável face à vítima (e, portanto, dívida no sentido estrito), seja porque as vantagens se compensam antes mesmo de ser liquidada a indenização (ou durante esse procedimento). Também não é hipótese de vedação ao enriquecimento sem causa, pois elas não foram auferidas pelo agente responsável (que teria, supostamente, de ser o enriquecido), mas sim pela própria vítima. A bem dizer, a compensatio lucri cum damno é parte do procedimento de quantificação dos danos efetivos suportados pela vítima, decorre da própria análise do nexo de causalidade, ao delimitar a indenização. Faz todo sentido, então, preocupar-se com ela quando se está diante de uma conceituação da reparação. Aliás, a Comissão Revisora parece partilhar desse entendimento, ao propor a seguinte redação para o art. 946:

Art 946: Os benefícios advindos para a vítima como resultado do evento lesivo não devem ser levados em consideração na determinação da indenização, a menos que tais benefícios tenham a mesma natureza do dano causado à vítima, decorram do evento lesivo e seja justo e razoável levá-los em consideração conforme o tipo de dano sofrido, e, quando conferidos por um terceiro, a finalidade subjacente à concessão desses benefícios.

O papel da reparação não é o de reconduzir a vítima a um momento anterior à causação do dano, porque, se assim fosse, haveria uma injustiça para com ela, a única pessoa que estaria no passado (ao menos, em termos patrimoniais) enquanto o restante do mundo vive o presente. Em verdade, a reparação busca negar o fato danoso, considerado contrário ao ordenamento jurídico. Ao negá-lo, pretende posicionar a vítima no presente, no momento atual, como se o fato danoso não tivesse ocorrido no passado e as suas consequências ainda não estivessem impondo prejuízos à vítima hoje. Nessa negativa do curso atual dos acontecimentos que se sucederam ao fato danoso, a reparação busca criar uma “linha temporal” paralela. Trata-se de uma “interpretação autêntica”, cuja competência é conferida pelo ordenamento, para se refazer o presente, nos moldes mais próximos que se poderá refazê-lo, partindo-se da seguinte pergunta: “como a vítima estaria hoje, se nem o fato danoso, nem suas consequências tivessem ocorrido?”

É digno de nota que, nas justificativas da Comissão Revisora, o art. 566.º, do Código Civil português, é indicado como inspiração. Entretanto, o dispositivo legal supostamente inspirador não cometeu o equívoco de remeter a um “statu quo ante”:

Art. 566.º. 2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

Por essas razões, entende-se que a nova redação do art. 950 do Código Civil, em sendo aprovada, venha com a seguinte emenda:

Art. 950. A reparação é integral, com a finalidade de conduzir a vítima ao estado em que se encontraria atualmente se o fato danoso não tivesse ocorrido. A indenização será fixada em dinheiro, sempre que a reparação natural não seja integral ou parcialmente possível, ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

 

Notas e referências

[i] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/09/04/instalada-comissao-de-juristas-para-atualizar-o-codigo-civil

[ii] Essa ressalva é necessária, pois lucros cessantes não são “danos futuros”, visto que essa classificação leva em consideração o momento da prolatação da sentença.

 

 

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