DE UMA PRETENSA DEFESA DO CONSUMIDOR À ESTIGMATIZAÇÃO DA POBREZA: OBSERVAÇÕES INICIAIS DE UM EPISÓDIO TELEVISIVO

24/04/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Como nota introdutória, expresso que não considero muito acadêmico (e nem é recomendável) escrever em primeira pessoa, mas preciso fazer isso desta forma para externalizar o que me incomodou (incomoda). Preciso falar sem aparentes neutralidades, com um papo reto e crítico.

O calendário hoje está marcando dia 13 de maio de 2020 e as pessoas estão cada vez mais apreensivas com a COVID-19. Talvez, eu esteja escrevendo desta forma também pela mesma sensação. Há um desconforto social em razão do isolamento nada agradável, mas que se faz imperioso para um cuidado de si e das pessoas que amamos. Neste contexto temporal, escrevo este texto direto de um pequeno quarto, em quarentena, após uma indigestão gerada pelo estresse no café da manhã.

Estar em casa durante muitas horas por dia fez com que eu tivesse alterações significativas na minha rotina. Assim, em razão de aparentemente haver mais tempo, retomei algumas coisas não-habituais, como, por exemplo, fazer o desjejum matinal assistindo programas de televisão sensacionalistas. E é sobre isso que quero falar, pois hoje (13/04/2020), em especial, conheci a Patrulha do Consumidor, apresentado pelo deputado federal Celso Russomano (PRB-SP) no programa Hoje em Dia da Rede Record.

Segundo o sítio do apresentador[1], o quadro televisivo objetiva “fazer valer os direitos dos consumidores que foram lesados numa relação de consumo”, buscando solucionar casos reais e injustos. Contudo, apesar do objetivo parecer louvável, quero apontar aqui a ausência crítica do olhar do quadro sobre as situações fáticas, complexas e opressivas televisionadas. O que, inclusive, reforça narrativas estereotipadas da pobreza, levando aos processos de exclusão e criminalização das vivências de miserabilidade econômica.

O episódio[2] que chamou minha atenção, e que quero pensar nesta coluna da Empório, relata o caso de uma padaria clandestina na zona norte de São Paulo. O quadro de televisão abre com uma espetacularização imagética, em que o apresentador, vestido  elegantemente de terno e gravata, fala sustentado por luzes de sirenes da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo. No momento em que a câmera afasta o foco, torna-se possível visualizar os carros policiais atrás do indivíduo que coordena o programa sensacionalista. Junto ao apresentador está o subprefeito da região Vila Maria (São Paulo), o coordenador do Procon e membros da vigilância sanitária da cidade.

Vejam que é muito interessante observar como que uma agenda midiática consegue mover instituições públicas para sobreviver a sua audiência. Ademais, não é uma novidade acadêmica a constatação de que operações de autoridades públicas são utilizadas como entretenimento, transformando os problemas sociais em produtos de consumo[3]. Ora, é fundamental olhar com criticidade para o fenômeno da apropriação capitalista das instituições públicas e dos problemas sociais criados por esse próprio sistema político-econômico, uma vez que esses programas televisivos discursam o objeto de uma causa social prática, mas no fim reforçam estereótipos e preconceitos ao negligenciarem (por falta de senso crítico) as complexidades e os papéis de opressão social presentes em cada caso.

Neste episódio que me irritou profundamente, a fala do Celso Russomano se iniciou pela apresentação do case espetacularizado, em que narrou tratar-se de uma padaria clandestina localizada em uma casa ‘tomada por insetos’ e habitada por uma família boliviana. Após esta apresentação, a matéria jornalística seguiu com um enquadramento da imagem feita pelo retrovisor do carro, em que se pode visualizar os outros carros da guarda municipal indo em direção ao local com as sirenes ligadas. Aqui, analisando criticamente este ponto, penso que seja possível levantar uma hipótese de simetria iconográfica aos programas televisivos que cobrem os casos criminais, exatamente pela transformação de um caso de direito do consumidor em um espetáculo policial- que remete à memória da delinquência comumente televisionada e à estigmatização da pobreza.

Quando as autoridades públicas chegaram ao local, o apresentador do programa tomou a frente da “operação” novamente e questionou rudemente ao proprietário da padaria como era possível a posse de um estabelecimento daquela natureza sem a devida documentação. A resposta fornecida pelo proprietário foi de que ali fazia-se um trabalho artesanal. Ora, quero assinalar diante disso que o problema do funcionamento ilegal da fabricação de pães não é o foco desta escrita, mas sim toda a circunstância social que envolve este caso e os possíveis reflexos em processos de estigmatização da pobreza. A observação diante deste tratamento inicial dado ao infrator das normas de consumo foi de que ele não estava sendo narrado como um trabalhador, mas como uma pessoa ‘terrível’ que fazia pães para prejudicar a população. Uma narrativa que faz do indivíduo um inimigo e não um infrator. Este foi o ponto que me deixou inquieto e que veio a reforçar a suspeita que quero desenvolver junto às leitoras neste texto.

Enquanto o tom vocal de tratamento dado pelo homem de terno que apresentava o programa era alto e imponente, em um sentido acusatório, o tom vocal do proprietário do local era muito baixo, indicando o medo que possivelmente estava sentindo. O contraste neste momento da cena ocorreu entre câmeras, policiamento e homens de ternos versus um imigrante vestido com roupas comuns e aparentemente com temor do que poderia lhe acontecer.

A luz da câmera invadiu a casa sem pedir licença, seguindo os homens de terno que adentraram o espaço. A boa educação precisou entrar em suspensão para construir um “Outro” irracional e violador das normas de direito de consumo. Um “Outro” que não liga para a saúde coletiva e que chega ao Brasil para obter seus lucros, não adaptando-se aos ‘bons modos’ nacionais. Aqui, aponto que o forte nesta observação é que aos poucos o quadro ‘jornalístico’ de defesa do consumidor passou aos processos de essencialização do indivíduo, expondo uma distorção proposital no tratamento, criando para aquele proprietário da padaria uma percepção alienígena a ser transmitida à audiência.

O criminólogo Jock Young[4] explica que é próprio da modernidade recente a elaboração da diferença em uma narrativa ontológica, que cria ‘Outros’ desviantes como bodes expiatórios e minam as estabilidades sociais. Claro, o contexto de explicação deste teórico ocorre pelas vias do multiculturalismo, em que o pesquisador afirma ser a insegurança ontológica decorrente das diversidades de estilos de vida e culturas experimentadas dentro do locus urbano. Neste sentido, o que eu tenciono aqui aproveita a reflexão do Young sobre a construção sociológica de alguém culturalmente diferente como um bode expiatório, mas penso que isso ocorre pela estigmatização da pobreza, e, especialmente neste episódio, por suporte de traços racistas e xenófobos em relação ao ‘Outro boliviano’.

No desenvolvimento do quadro ‘jornalístico’, esse processo estigmatizatório vai ficando mais latente. Por exemplo, quando a câmera se aproxima do forno da padaria acontece algo que chama a atenção, pois o apresentador passar a vociferar contra o proprietário da padaria em razão de algo muito comum na fabricação de pães. Se a leitora já trabalhou em algum estabelecimento similar, saberá que a alta temperatura dos fornos não permitem que a mão seja tocada livremente nas plataformas que assam a massa. Logo, o resíduo de ‘gordura’ do material que está sendo assado fica na luva de quem manuseia e essa sujeira passa às portas, ao abrir e fechar, não sendo possível uma limpeza imediata durante o cozimento. Isso, que é comum, ganhou uma espetacularização na matéria ao ser anunciado como uma imundície absurda. Neste ponto, em razão de determinadas cautelas na minha crítica, quero destacar que a má-higiene não é justificável, mas que o tratamento televisivo com a exposição do proprietário, e o modo extremamente rude da abordagem na matéria, possui uma oportunidade de análise sociológica- sobretudo porque a crítica de contextualização daquela condição de vida do trabalhador foi ignorada durante todo o programa.

Aos sete minutos e quarenta da reportagem (que está disponível nas referências), o diretor do Procon pergunta diretamente ao infrator das normas de consumo se há mais bolivianos vivendo na casa. Eis a chave da inquietude aqui, pois o rótulo já está colocado de maneira muito feroz. São os bolivianos os “Outros” (bodes expiatórios de uma matéria jornalística e de um sistema social desigual). A análise do discurso, neste ponto, poderia ser larga, mas irei seguir abordando os demais pontos, pois não estou analisando esta matéria com método acadêmico, mas expondo as minhas observações iniciais de um quadro televisivo que me deixou ‘nervoso’.

A matéria seguiu com a filmagem dos quartos e demais cômodos da casa, passando por um local onde duas pessoas costuravam tecidos. Todos os compartimentos do imóvel demonstraram uma precariedade material em razão de infiltrações e má- acabamento nas paredes. Contudo, o mais indignante foi que o apresentador do programa ‘culpou’ durante todo o tempo o trabalhador-proprietário pelas condições miseráveis em que ele vive. Inclusive, um dos momentos que me fez querer escrever este texto foi quando a câmera entrou no quarto e desenhou a cama com comidas em cima, sendo justificado pelo apontado infrator que aquela era a sua comida (8:21 do vídeo). Provavelmente não havia outro local para comer. Ora, quem gosta de viver em um local com infiltrações, baratas, sem local para comer e vivendo com o mínimo para subsistir em uma sociedade desigual? O sujeito foi culpado pela sua própria miséria!

O desenvolvimento da reportagem da patrulha do consumidor seguiu neste sentido e deixarei para a leitora olhar o vídeo e tirar as conclusões dos demais detalhes presentes neste triste episódio. O que observo com isso é que a falta de crítica nesses tipos de programa (e especialmente no analisado) propulsiona processos de estigmatização do trabalhador pobre como alguém que desrespeita as normas de direito para prejudicar a saúde coletiva. Nesta reportagem não foram questionadas as circunstâncias sociais que levaram aquele homem a deixar o seu país para trabalhar em outro, tampouco suas dificuldades e os reflexos que serão enfrentados com a constrição das máquinas de fabricação de pães. Com o que ele irá se manter e qual a responsabilidade das autoridades públicas neste sentido?

O tratamento essencializador do ‘Outro’ apontou a pobreza como um sinônimo da sujeira proposital (afinal, infiltrações fornecem um aspecto sujo ao ambiente). O trabalho realizado no meio da miséria econômica (e pode-se apontar graus de misérias, também) foi exposto de maneira vexatória- como se as pessoas já não possuíssem vidas suficientemente sofridas neste sistema político-econômico desigual e injusto chamado capitalismo (!). A questão de fundo é mais profunda e as reflexões precisam ser elaboradas em um plano muito mais sério, crítico e com método científico de análise. O que pretendi externalizar, neste texto, foi apenas uma observação inicial e espero ter conseguido dialogar com a leitora esta inquietação.

Compreender o fundo de raciocínio destes processos estigmatizatórios é imprescindível para a elaboração de uma sociedade socialmente mais justa e anticapitalista. O objetivo de um programa de televisão que diz defender o consumidor não pode renunciar à crítica séria e responsável que há em toda a complexidade que compõe uma sociedade do consumo. Afinal, a saúde do consumidor não pode estar em contraste com os demais fatores sociológicos e não deve ser admissível a falta de sensibilidade no olhar para o plano real da vida das pessoas que sofrem a exclusão social gerada pela posição econômica que lhes é imposta. Jogar imagens espetacularizadas para garantir audiência, fazendo dicotomias e apontando essencializações a partir de condições de miserabilidade deve ser inadmissível. Penso que devemos ser cada vez mais duros na atividade crítica e eficazes nas observações. Por óbvio, será preciso escrever muito mais neste sentido e, talvez, a quarentena possibilite um artigo a respeito. Só este episódio que dialoguei com a leitora rende uma análise rica que não deve deixar de ser feita.

Era isso. Boas reflexões a nós!

 

Notas e Referências

[1]                 RUSSOMANO,            Celso.            Patrulha           do           Consumidor.           Disponível           em: http://www.celsorussomanno.com.br/patrulha-do-consumidor/. Acesso em: 13 de abril de 2020.

[2] CIDADE ALERTA RECORD. Coronavírus: padaria clandestina é alvo da Patrulha do Consumidor. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rhB3P8fskH8. Acesso em: 13 de abril de 2020.

[3] VER: FAUTH, Isabel Cristiane Frigheto. A exploração midiática da atividade policial na sociedade de consumo e a necessária proteção dos direitos da personalidade no Brasil: um estudo empírico. 2019. 156 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade La Salle (Programa de Pós-Graduação em Direito). Canoas, 2019.

[4] YOUNG, Jock. A Sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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