DE PASSAGEM

29/12/2019

      Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Acabo de derramar os olhos sobre a noite. Nem a Lua se atreveu a estender sua redonda toalha de máxima luz para secar-me as beiras. Estou transbordada em comportas de profundas águas, nesse reino de dimensões alheias aos meus sonhos tão costumeiros. Há de haver alguma razão um tanto quanto compreensível para esse vislumbre quase estrangeiro de 'um algo' acorrentado às profundezas dos sentidos. Ouço falar que viver seja um canteiro cheio de sementes em constante brotar de latentes esperanças, feito crianças recém-nascidas, naquela incrível (e constante) surpresa de mundo! No entanto, bem sei o quanto gastos já estão meus passos, reconheço o cansaço sobre os ombros, a prematura tristeza que se aconchega sem licença nesse lugar secreto por onde me habita a alma...

Acabo de inundar os olhos ao redor da noite, até alcançar a base silenciosa do horizonte. Não. Não sou de fino trato para reconhecer em mim um infinito a contento. Sou daquelas criaturas toscas, perdidas no labirinto interminável de um destino sem sinalização concreta. Estou à procura da melhor parte em que em mim se acenda a palavra propícia para os sentidos da vida. Estreita correnteza de vida própria que me enquadra criatura terrena - do barro, da pedra que veio do alto, do pó respingado do universo, da teia do milagre moído que sobrou dos ossos daqueles tantos vindos ao mundo antes de mim. Sou aos pedaços. Quebra-cabeças em estilhaços. Sou de pedra, também sou aço. Sou rio seco sem fundo, mar salgado, ardido, abismo profundo. Sou folha verde, folha seca, grão germinado, semente. Do pó das estrelas dizem que vim. Daqui a pouco vou além, para bem adiante do fim.

Acabo de perder-me diante dos olhos negros da noite. A redonda toalha de máxima luz da Lua seca-me as beiras. Em todas as possíveis consequências, sou aquela que não compreende. Mas não desiste. Porque a mão que procura a chave da porta é a mesma mão que se tranca intacta, que cobre os olhos para não ver o amargo da rota e recolhe silêncios para estancar a garganta. Porque sou em pedaços. Sou daquelas criaturas toscas que segue à risca o ponteiro da bússola. Depois disso, estarei de volta. Habitando no vento, na folha, da pedra ao barro, à borda da alma, aguardando carona até a próxima estação.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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