Por Luiz Ferri de Barros - 19/01/2016
Que tenham os franceses, os espanhóis e outros europeus navegado pelas costas brasileiras antes das caravelas portuguesas, é coisa de que não tratam estas crônicas, por ser ocioso demandar nesta polêmica.
Afirmar que outras naus lusitanas singraram nossos mares antes de Cabral remete a polêmica distinta, a respeito da qual creio que tomarei partido, mesmo que a isto não tenha sido autorizado pelo bispo – ou pelos chefes do tráfico, que hoje parecem ter mais poder nesta república do que o bispo e o presidente juntos.
Julgar Pedro Álvares Cabral o primeiro dos portugueses no achamento desta terra, que é como eles se referiam ao descobrimento naquele tempo, implica concordar que sua esquadra aportou aqui por acaso. Isto é coisa que se ensinava no colégio quando eu era menino. Mas se Cabral veio para onde quis vir, veio em derrota certa e demarcada, o que talvez deponha contra a idéia de que tenha sido o primeiro português a cá chegar.
Mas seja qual seja o fato, ou bem verdadeira ou falsa a versão, não me importa, qualquer história desta não me cai bem papagaiar com vistas a estabelecer verdades na idade provecta em que me encontro, não mais nel mezzo del cammin di nostra vita, como dizia Dante, senão que muito além.
Os doutos historiadores e os curiosos jornalistas deixarei-os em suas infindáveis disputas, fiando-se em alfarrábios empoeirados, se ainda a matéria for digna de polêmica. Todos defenderão não mais que suposições, com maior ou menor brilho, lastreados em respeitável erudição. Foram os reinóis portugueses os primeiros a meter-se cá por nestes mares? Foi Cabral o primeiro portuga? Por acaso ou de caso pensado?
Se questionados por um simples escriba irreverente como eu, muitos blasfemarão, julgando que o que concluíram de suas cacholas é conhecimento científico irrefutável. Sem se recordar, ou sem que nunca tenham sabido, que a característica essencial da Ciência é exatamente a de que suas teorias se prestem à permanente possibilidade de refutação; caso contrário trata-se de conhecimento dogmático.
Perdoe-me Cabral, o Pedro, e quantos outros cabrais houver, pelas divagações, mas não me afastam elas do que cabe consignar: não me comovem os doutos e desdenho dos especialistas, a quem ninguém melhor definiu do que Ortega y Gasset, classificando-os como sábios-ignorantes.
Não mais me apetecem as polêmicas, que sempre exigem ânimos acicatados e provas a tiracolo. Se as menciono é exatamente para delas me desvencilhar, com isto ganhando a liberdade; e das verdades e contra-verdades estabelecidas por outros recolher não mais que simples motes para a escrita.
Além do que, eu, por mim, nada mais tenho a ensinar a quem quer que seja; nem mesmo a desensinar, o que é tarefa mais nobre. Se a acachapante ignorância de alguns hoje me cansa mais do que surpreende, não é raro que a sapiência de outros me enoje pela soberba que faz frequente companhia à sua erudição.
Cabral compreenderia os meus motivos: ele, fidalgo amigo do rei e de seu círculo de confiança; ele que sentou estaca na Ilha de Vera Cruz, aqui rezando missa e desfiando rosário para garantir a El Rey a posse das terras ao leste de Tordesilhas; ele que comandou a maior armada portuguesa jamais organizada até a data; ele que foi o primeiro a unir quatro continentes em uma só navegação: Europa, América, África e Ásia... – ele que em seguida caiu em ostracismo.
Após seu regresso a Portugal, recolheu-se Cabral em Santarém, para onde se auto-exilou ou foi exilado pela Coroa – não me explicaram direito este detalhe os historiadores; talvez porque não tenham a resposta. Viveu ainda por duas décadas, após o descobrimento, sem que nenhuma outra missão lhe tenha sido confiada. Ao morrer, em 1520, em sua lápide fez-se entalhar distinta menção à esposa e nenhuma referência à viagem que o imortalizaria.
Consta que o local de sua sepultura permaneceu desconhecido por séculos, até que foi descoberto por Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, nosso mais importante historiador do século 19; mas a exata localização da ossada de Cabral é assunto para outra polêmica, o túmulo teria sido profanado, constatou-se quando se transladariam os restos mortais para glorificá-lo; mais ossos que os seus, da mulher e do filho ali se encontrariam; daí a dúvida: os ossos seriam de fato os dele?
A desgraça em vida, se cabe aqui a palavra, adveio a Cabral pelo fato de haver-se recusado a uma nova viagem ao Brasil e às Índias. Por que se negou? Melhor explique quem souber. Ou teria sido o inverso: já não lhe deram outros encargos porque em desgraça já se encontrava? Talvez esta também seja questão sem resposta, pois é difícil conhecer ao certo a desgraça de qualquer homem.
Posso conjecturar que não tenha sido fácil para um fidalgo, que não era militar nem era navegador e nunca se lançara ao mar, içar âncoras no Tejo no comando de uma esquadra de treze naus e mil e quinhentos homens, seguir até as Índias, passando antes pelo Brasil, na jornada perdendo oito caravelas e, de retorno, com poucas mercadorias e insuficientes lucros – ter de fazer os ouvidos de penico na oitiva das aporrinhações dos investidores e dos cortesãos.
Não sendo Cabral militar ou navegador, por que El Rey D. Manoel o nomeou comandante-mor da esquadra? O fidalgo era amigo de infância do monarca, fora criado na Corte desde os onze anos; sua noiva era de família nobre e influente na Corte; por sua posição era íntimo dos círculos de poder do reino, instruído na administração e conhecedor dos altos segredos lusitanos na disputa com espanhóis e outros europeus pelas conquistas do além-mar.
Os dois destinos de Cabral: no caso das costas brasileiras estava em jogo fazer valer o Tratado de Tordesilhas, no que foi bem sucedido; no caso das Índias, fixar entreposto comercial em Calecute, em missão diplomática e política, dando sequencia ao que iniciara Vasco da Gama, no que não se deu bem, a ponto de ter bombardeado a feitoria, incendiando-a.
Contando com mil e duzentos militares embarcados, a postos para abrir caminho a bala e com exímios navegadores pilotando as naus, tendo às mãos os melhores e mais avançados conhecimentos náuticos, a esquadra de Cabral chegou não por acaso ao Brasil antes de seguir para as Índias.
E seu feito não foi pouca coisa, El Rey sabia disto melhor que todos; e teria, ao que dizem alguns, lhe feito convite para comandar nova esquadra que, como já se sabe, ele não aceitou.
Ora pois!, dizer “não, obrigado” a um monarca de que se é amigo e de cuja confiança se goza seria razão para o ostracismo vitalício a que o destino o lançou a partir de então?
Daquele quase nada que conheço de Cabral, tirei minhas conclusões, que a seguir enuncio com singela despreocupação quanto a fatos e versões, o que só é permitido aos escritores, jamais a historiadores ou jornalistas.
A singular menção à esposa em sua lápide talvez explique mistérios sobre os quais os historiadores ainda disputam teorias e reivindicam verbas de pesquisa para fuçar alfarrábios. Talvez o amor lhe fosse mais importante do que a glória: casou-se a seguir com a mulher na companhia de quem viveu sua vida de isolamento em Santarém.
Poder enxergar a história de Cabral desta forma também resolveria a controvérsia sobre sua chegada intencional ou acidental às costas brasileiras, conciliando a disputa dos pesquisadores.
Nestes termos, dou a mão à palmatória aos professores de colégio, com eles concordando que, realmente, a viagem de menos de dois meses até Vera Cruz pode ser considerada apenas um acidente na vida de um homem que não gostou do que fazia, ainda que suas caravelas soubessem para onde navegavam em 1500.
Mas é na observação da vida de outros homens – e, valha-me deus, de minha própria – que julgo encontrar o sentido essencial do ostracismo vivido por Cabral. Trata-se de uma dimensão da vida que se reserva àqueles que já cumpriram suas missões maiores.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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