Por Elisabeth Bittencourt - 28/10/2015
Lamento muito, lamento mesmo – talvez já sejam as lamentações gregas, mas era assim mesmo que meu texto se enunciava. Havia sido lançada para um Outro lugar que não mais aquele em que Antígona ocupava, um lugar de fascinação?
Como assim? – meus comparsas internos interrogavam. Você está pensando que se trata de Aristófanes e não de Sófocles? Como começar um texto sobre Antígona a partir do humor?
Não sei, não sei... Só sei que, quando comecei a me embrenhar na tarefa de escrever sobre Antígona, ela já não tinha mais o fascínio de antes...
Em 1999, eu, juntamente com Lacan, fiquei fascinada pelo olhar de Antígona e escrevi “O arrebatamento”, uma espécie de estado psíquico que me fez articular Antígona com o deslumbramento de Marguerite Duras.
Ora, ora...então...tudo vai dar certo em 2013, porque, afinal, Antígona é Antígona, aquela maravilha que é uma tragédia grega e ainda mais, escrita por Sófocles!
Pois é... só que, nada dIsso aconteceu! Uma rebeldia interna surgiu me ditando que eu queria mesmo era escrever sobre a Sophie Calle, uma artista multi dos tempos atuais. Nada mais radicalmente oposto: uma tragédia do sec. V a.C. com as artes contemporâneas!?
Ah sim! Eu achava que Isso era uma besteira que me acometia, em breve, tudo seria resolvido... Até aí, nem ler eu conseguia... O tempo passava e nada! Até que começaram a surgir pedaços de músicas – o meu texto disso se alimenta!
Estava eu na janela assuntando quando apareceu nada menos do que Dalva de Oliveira cantando: “Tudo acabado entre nós, já não há mais nada”. Eu já sei que quando estou para escrever surgem esses absurdos, assim como no dia em que acordei dizendo que eu não era a Clarice Lispector!?
E agora? Se tudo acabado entre nós, já não há mais nada, o que eu poderia fazer? O tempo passou e surgiu outro pedaço musical: “Me deixa em paz que eu já não aguento mais”. Na hora pensei: dessa vez não vai ter jeito, porque essas coisas que me acometem, eu levo a sério, acredito que elas vêm do inconsciente e têm valor de uma verdade que me revela.
Enfim... A coisa continuou até aparecer mais um naco de música: “E saia do meu caminho”. Nossa! Essa parecia definitiva! Disse para o Agostinho: este ano eu não vou escrever nenhum trabalho. Fiquei espantada! Forço então a barra e começo a ler Édipo em Colono e Antígona.
Começaram então as heresias: Antígona é uma mulher chata! Estava querendo mesmo era a Sophie Calle! Fiquei incomodada: não podia falar assim de Antígona. Percebi que o olhar que havia me arrebatado, havia se quebrado. Eu não tinha mais esse gozo da sublimação. Eu queria uma outra coisa! Mas qual? Eu não fazia a menor ideia, até que...apareceu um quarto pedaço musical em que a Antígona aparecia e quase que me sussurrava: “Se você não me queria, não devia me procurar”.
E quando a questão já parecia ter encontrado uma via de escoamento, descubro que a culpa de todas essas hesitações era do Jacinto! Foi ele que após a escolha do texto de Antígona me provocou dizendo: vamos ver se agora vocês vão escrever alguma coisa diferente. Vamos então ver o que há de vir...
O trágico
A tragédia grega expressa os espíritos dos deuses, que, segundo Lacan (1959-1960/1998, p.314), são reais; faz circular os significantes d’Isso que os tempos vêm querendo eliminar. Quebra com a razão iluminista, contamina o ar com a virulência de uma “potência originária” quase extinta, mas presente, real que se atualiza nos dias atuais...
Em que, de lá para cá, aqui e ali, o espírito do trágico se presentifica em nossos dias? Em certos tipos de experiência constitutivos do humano, quando somos atingidos em nossos subterrâneos íntimos mais profundos e uma reviravolta se anuncia...
Se o século XX se recheou de significantes do tragicofílico, Isso promoveu efeitos que abriram o alvorecer deste século, que ao mesmo tempo em que insiste em diluir os paradoxos constitutivos da humanidade, condição necessária para que a tragédia cresça e apareça, à revelia, vive os efeitos das reviravoltas que o campo da sexualidade promoveu no século passado.
A ordem dos paradoxos tem como condição constitutiva que a verdade seja não-toda: “Princípios e valores que se excluem mutuamente podem estar simultaneamente presentes e ser simultaneamente pertinentes” (Gumbrecht, 2001, p.11). Dessa condição, advém um desamparo que faz com que os seres falantes raramente saibam qual a melhor trilha a seguir, sustentando, no alvorecer deste século, digamos assim, um certo espírito da tragédia. Naquilo que me interessa recortar, Lyotard nos diz que “as relações familiares são os lugares privilegiados da tragédia” (Lyotard apud Gumbrecht, 2001, p.11). É desse campo, do laço familiar, da diferença sexual, que advém o paradoxo que me dá o patamar de onde quero escrever...
Antígona
Quando estava inebriada pelo olhar de Antígona, não vislumbrava uma Outra cena grega que o gênio de Sófocles sugere, e que nos joga para o centro – que não é um eixo qualquer - de um conflito religioso, familiar e ético que se desdobra num patamar político, genealógico e dinástico, iluminando questões que assolam os dias atuais envolvendo a consanguinidade e o sistema parental.
Antígona enquanto mulher é uma heroína que ocupa um lugar singular no ethos grego antigo. Ela enfrenta sozinha o tirano Creonte. Defende a liberdade – tão cara em nosso tempo – em nome de leis divinas não escritas que asseguram um direito que vem dos antepassados, tempos em que o oral dominava a cena, colocando em ato mitos arcaicos: os mortos tinham um lugar. Eles recordavam aos humanos que a morte existia e que precisavam ser cultuados, mesmo que à revelia do Estado.
A altivez de Antígona emana de uma superioridade moral que expressa sua certeza em ocupar um lugar especial na linhagem de Tebas. Ela sabe que representa a última raiz de sua estirpe: ”para os anciãos ela suscita a esperança de fazer renascer a linhagem” (Rosenfield, 2002, p.17).
Antígona encarna ideais humanitários: piedade, justiça, leis eternas não escritas. Ela sabe que tem um lugar de peso na sucessão do poder em Tebas. Creonte não é apenas um tirano que abusa do poder. Ele representa “os motivos sinceros de um esforço sincero para salvar Tebas de uma catástrofe iminente” (Rosenfield, 2002, p.14).
Vamos então ao que interessa, ao não me deixar siderar pela enigmática beleza da heroína - que tem sua fonte no ato de jamais ceder à vergonha e à derrota, pude vislumbrar Outras questões que vão no rumo daquilo que Rosenfield nomeia como miasmas: “signos de que os deuses não favorecem os rebentos de uniões que confundem a reta ordem das alianças” (Rosenfield, 2002, p.21).
Creonte não é apenas aquele que ocupa o lugar de vilão, contra uma mártir ingênua e justiceira. Ele teme que os miasmas sucessivos pesem como uma maldição sobre Antígona e seus descendentes. O casamento de Antígona com Hemon, seu único filho, seria maculado pela maldição que pesa sobre essa linhagem, além de que ambos, por serem primos, pela proximidade com os Labdácidas, seriam colocados numa situação novamente incestuosa.
O incesto polui a linhagem e a cidade, obrigando os chefes de Estado a atos insuportáveis como o de Creonte, que sacrifica seu filho Megareu para salvar Tebas da destruição.
Permitir que seu único filho Hemon se case com Antígona, filha de Édipo, é permitir a perpetuação de uma linhagem que, por não respeitar a ordem reta das alianças, continuaria a despertar nos deuses um clamor contra Tebas. Antígona seria a própria encarnação dos miasmas sucessivos de sua estirpe.
Do lado de Creonte, ele supõe que Tebas só possa ser salva por uma purificação que instauraria uma nova linhagem, não mais maculada pelo incesto: ele quer preservar seu único filho, Hemon. Do lado de Antígona, ela deseja purificar sua estirpe cumprindo seu dever fúnebre, nos deixando suspeitar sobre seu excessivo amor por seu irmão Polinices.
Eumênides
Esse Outro lugar, do qual agora escrevo, exige de mim que eu mude a cena e faça um recuo ao momento que precede Antígona, levando-me para um tempo anterior a Sófocles, desviando a minha rota. Sou convidada por Ésquilo a visitar um tempo em que a harmonia de “uma sucessão consensual no trono mântico de Delfos (...) na sucessão teogônica e na paisagem circundante do santuário, é brutalmente rompida” (Esquilo, 2011, p.15).
A antinomia entre as Erínies e Apolo, na tragédia Eumênides, desdobra-se num conflito entre jovens deuses políticos contra as velhas divindades do sangue. Isso vai ter consequências no plano social e político, implicando “diversas questões relativas à justiça e à distribuição de poder” (Esquilo, 2011, p.15). Os homens estão à procura de novos signos...
O que a tragédia Eumênides de Ésquilo encena é o “acontecimento mítico da instituição do tribunal no Aerópago” (Esquilo, 2011, p.41), inaugurado pela Deusa Palas Atena para julgar o caso de Orestes que havia assassinado sua mãe, por persuasão de Apolo e que agora se encontra nas mãos das Erínies: vingadoras dos matricidas.
Para resolver essa inextricável contenda de Apolo e Erínies é formado um “colégio dos melhores cidadãos reunidos” (Esquilo, 2011, p.41) pela Deusa Atena e que serão os juízes do caso. Eles têm como dever a escuta imparcial das duas partes da contenda, ponderando suas razões.
As Erínies apresentam uma questão genealógica que as distinguem, entre tantas outras faces, de Atena: elas não têm pai, somente podem falar em nome da mãe, ao contrário de Atena, que tem pai e é pelo pai: “As Erínies vêem o massacre da mãe onde Apolo vê as punições em nome do pai” (Esquilo, 2011, p.27).
As Erínies interrogam Orestes pelo assassinato de sua mãe: se a matou, como matou, por quem foi persuadido e se o entendimento do oráculo era que assim o fizesse. É “o momento de passagem da responsabilidade pela ação em si mesma à responsabilidade pela incitação à ação” (Esquilo, 2011, p.43) que abre para Orestes a possibilidade de se defender argumentando sobre os motivos que o levaram a tal infortúnio.
Argumenta ele que sua mãe Climnestra havia assassinado seu pai, ressaltando que esse crime presentificou para ele um duplo desagravo: além de matar o marido, ela havia matado seu pai. As relações de parentesco encenam a contenda.
As Erínies refutam: Orestes estava vivo e sua mãe morta! Pragmáticas, elas argumentam que suas atribuições se restringem à punição de delitos contra a consanguinidade: “A mulher não é consanguínea do marido, mas não se pode negar que o nascituro no ventre se nutre do sangue materno, e assim Orestes não pode repudiar o vínculo de consanguinidade que o prende à mãe e que o deixa à mercê das fúrias punitivas” (Ésquilo, 2011, p.43). Os vínculos de consanguinidade estão em questão...
Mudo, Orestes apela ao Deus Apolo que se dirige a esse interlocutor plural que é o tribunal de Atena, declarando que é justo o ato de Orestes, pois este obedece à ordem de Zeus: “No trono divinatório nunca disse de homem, de mulher ou de cidade senão ordem de Zeus pai dos Olímpios” (Ésquilo, 2011, p.44). Se a palavra de Zeus tem um sentido absoluto, o corifeu interroga Apolo sobre aquilo que seria uma falha da hierarquia divina em não atribuir nenhuma honra à mãe: “Apolo refuta essa falha defendendo seu hóspede, argumentando que, nesse caso, pai e mãe não estão no mesmo patamar, dado as qualidades do varão e do que se perpetrou contra ele” (Esquilo, 2011, p.44).Trata-se de um nobre, rei honrado com o cetro de Zeus, morto pela mulher e não com as setas das Amazonas, lançadas à distância cujo destino incerto revela a moira de quem é atingido, a parte que cabe a cada um.
O pai de Orestes não sucumbiu à guerra, nem foi morto pelas setas distante das Amazonas e sim ao: “ignomioso dolo da própria mulher” (Esquilo, 2011, p.45). Os jurados homens se veem ameaçados no coração de seu ser...
Por fim, Orestes é absolvido, depois de Apolo refutar as colocações do Corifeu, usando argumentos perturbadores para as relações de consanguinidade: “(...) não é a denominada mãe quem gera o filho” (Esquilo, 2011, p.46). Argumenta ele que: “(...) a mãe não é genitora, mas nutriz de alheia semente: a mãe nutre, mas não gera; conserva o gérmen, se algum Deus não impede; o pai é o genitor” (Esquilo, 2011, p.47); trazendo a cena questões que nos assaltam em nosso dia a dia, depois das técnicas de inseminação artificial...
Apolo apresenta como prova o testemunho da filha de Zeus: “Não é a denominada mãe quem gera o filho, nutriz de recém semeado feto. Gera-o quem cobre. Ela hóspeda conserva o gérmen hóspede, se Deus não impede. Eu te darei uma prova desta palavra: o pai poderia gerar sem mãe, eis por testemunha a filha de Zeus Olímpio, não nutrida nas trevas do ventre, gérmen que nenhuma Deusa geraria” (Esquilo, 2011, p.121).
Aonde quero chegar?
De vez em quando há florações! Assim Alain-Didier Weill se refere ao que aconteceu na Viena de Freud do final do século XIX e na Grécia antiga do século V a.C.: o logos, a filosofia, a matemática, a lei escrita, a democracia, a tragédia estavam sendo inaugurados.
A condição de absoluta determinação da tragédia grega não pode sofrer qualquer transposição histórica. A particularidade daquele momento é total. Nos dias que se seguem farejamos seus rastros...
Zeus agora é sonhado como ciência: quem o sonha são os seres falantes. Ambos têm poder para promover mudanças radicais nas forjadas identidades sexuais, interferindo nos sistemas de filiação. Se na mitologia, da copulação de Zeus com o mar nasce Afrodite ou se a filha de Zeus foi gerada somente pelo pai; nas técnicas reprodutivas, a anatomia não mais indica, com a certeza de antes, quem é o genitor ou a genitora, apartando de maneira certeira a biologia dos sistemas simbólicos representacionais, levando-me a pensar sobre o lugar estruturante que os mitos têm nas tragédias gregas antigas, nas religiões, na Ciência e na Psicanálise e outras áreas afins.
A matéria bruta das tragédias é encenada pelos mitos, alguns deles atravessam as religiões e até a ciência. A procriação artificial, ramo da biotecnologia tem uma inspiração mítica e religiosa? Na religião católica, a Virgem Maria, além de permanecer virgem, não copula com nenhum humano, assim como nas religiões afros e na mitologia indígena as copulações se dão entre seres que habitam o campo do Divino - do mais além - e seres terrestres. Então?
Nos dias que correm...
Palavras de ordem exaltadas e radicais tomam conta das ruas no mundo. Os franceses gritam: morte aos gays! Um espanto invade a cena! O Estado, conforme a nação, tenta acompanhar os passos: propõe mudanças nas leis civis, ecos do desejo de uma boa parcela da comunidade que encontra forte reação na mesma comunidade.
Um desejo, impossível em algumas décadas atrás, agora ecoa: os homossexuais desejam constituir uma família, usufruindo das técnicas de reprodução assistida, como a inseminação artificial, assim como adotar crianças. E mais: querem ter seus direitos assegurados pelo Estado. Se os casais heterossexuais podem, por que eles não podem? Não são tão cidadãos quanto os outros? Não é disso que se trata na democracia?
Mas... se a cidadania anseia por colocar todos sob a égide da mesma lei – todos são iguais perante a lei -, no campo do laço familiar as coisas se dão para além desse patamar.
Se as condições que envolvem a procriação são afetadas pela contracepção generalizada, pela procriação artificial e suas formas de parentesco e de filiação, Isso significa que tais transformações atingem as próprias estruturas dos sistemas simbólicos que regem a identificação dos sujeitos. Afeta as nomeações!
Todos passam a querer saber qual a sua suposta identidade sexual e sua filiação, - quem é meu pai, quem é minha mãe - trazendo à tona a concepção de como consideramos “naturais” nossos sistemas simbólicos, estruturados pela ideia da heterossexualidade; assegurada pela certeza da anatomia e pelos dogmas da religião, da qual alguns se consideram tão afastados e outros muito próximos. Isso causa horror, para lembrar dos gregos. O casamento de Antígona e Hemon evoca esse horror! Creonte, a partir desse lugar de pai e chefe da nação, se vê na precisão de purificar linhagens poluídas pelo incesto. Katherine Rosenfield (2011) nomeia a possibilidade da continuidade da dinastia dos Labdácidas, como miasmas - algo moral ou fisicamente sujo, que constitui uma ofensa para os deuses, que infligiam sacrifícios terríveis aos chefes da Nação. Conforme ela, uma parte da população amava a linhagem de Édipo, enquanto a outra, incluindo a de Creonte, temia que os futuros rebentos da união de Hemon e Antígona pudessem confundir o que chamava da “reta ordem das alianças”.
Não podemos esquecer que as tragédias gregas antigas são regidas pela condição do absoluto e que não é possível pensar a Grécia antiga fora do eixo da religião e dos rituais de purificação. Se o incesto é capaz de poluir linhagens dinásticas, confundindo a reta ordem das alianças, os deuses se vingarão por estarem sendo desobedecidos, exigindo sacrifícios cruéis e abatendo sobre Tebas uma série de desgraças.
Esse é o temor – com as devidas diferenças e proporções – dos religiosos de hoje? Neste momento, estamos diante de questões que envolvem a linhagem e suas filiações, colocando em xeque os referenciais simbólicos fundamentais da humanidade: e quem há de dizer que eles são piores ou melhores? Mas, não é disso que se trata! Escutamos dia a dia em nossos consultórios as delícias e as mazelas que a estrutura heterossexual promove em suas famílias!
O melhor e o pior ou o pior, não são os principais fatores que influem em nossa análise; a despeito deles, acredito eu, não há possibilidade de uma volta aos tempos em que a heterossexualidade dominava a cena. Cada vez mais, nos lares, em grande quantidade, os homossexuais se revelam e os familiares ajeitam-se, para não se apartarem de seus filhos. Ou mudam suas concepções sobre a sexualidade ou criam um sistema de crenças que permita a eles continuarem amando seus filhos, apesar das religiões.
Naquilo que a estatística pode indicar algum índice, a Folha de São Paulo fez uma pesquisa sobre a família brasileira e divulgou números que considerei estranhos, porque demais favoráveis a questão homossexual. Segundo ela, 75% da população brasileira aceitaria que seus filhos se relacionassem com pessoas do mesmo sexo.
As vozes contrárias ao casamento civil no Brasil entre homossexuais ganharam alguns decibéis nos últimos meses, entretanto, não há como retroceder, nem invocar as fantasias de ordens benfazejas de outros tempos; as contradições dessa polarização continuarão a polemizar as crenças que secularmente se estabeleceram. Como diz Michel Tort: “(...) a modificação dos sistemas de transmissão dos nomes altera os critérios biológicos da filiação, modifica a relação das mulheres com o sistema patronímico de transmissão do nome” (Tort, 2001, p.10). Isso promove reviravoltas...
Uma nova ferida narcísica
Em nosso tempo, as alianças ganharam outros nomes e Deus ganhou um outro nome: a ciência e seus produtos, entre eles as técnicas de reprodução assistida. Para tal, tanto para a ciência quanto para a Psicanálise, foi preciso romper com os dogmas da religião – um só corpo – para que esses campos se constituíssem. Foi preciso dissociar o desejo sexual da reprodução, para que Outros signos, tão ansiados pelo laço social, pudessem se construir.
A Psicanálise coloca que não só há essa dissociação, como também que a anatomia não é prova certeira para a escolha do objeto sexual. E mais, os humanos são constituídos por uma bissexualidade psíquica: dominada por alguma tendência? A homossexualidade seria uma forma Outra de a sexualidade funcionar.
Michel Tort (2001), em seu livro O desejo frio, diz que as mudanças ocorridas nos laços de identificação, após os desdobramentos que as técnicas de reprodução promoveram, abalaram os referenciais que estruturam os sistemas simbólicos que davam nome aos lugares na complexa rede familiar: pai, mãe, irmão, primo etc... Ele se pergunta se, à maneira evocada por Freud, Isso não promoveria mais uma ferida narcísica na humanidade?
O Édipo, o complexo estrutural demonstrado por Freud, também já não mais suporta as mudanças ocorridas nas estruturas familiares: não é mais papai, mamãe, titia! É crescente o número de famílias cuja composição ganhou uma nova nomeação: “miscigeração” (Folha de SP, p.58). Trata-se daquelas famílias que convivem com filhos do casamento anterior e do atual, rasgando o véu da maldição que a madrasta e o padrasto carregam desde o início dos tempos. Para essas famílias, o Édipo ainda seria uma espécie de matriz das identificações?
O que escuto é que tanto o padrasto como a madrasta acabam fazendo parte daquilo que Freud chamou de romances familiares, colocando lenha na fogueira dos amores e das rivalidades, servindo de fonte de identificações e também ocupando um lugar que indica para os possíveis enteados que há amor por parte deles, mas também lei. É claro que nem sempre a cena é tão favorável assim...
O pai e a mãe, apesar de desfrutarem de um lugar de soberania amorosa, dividem com outras pessoas a função parental: eu não quero que ela me chame de mãe, mas... Se olharmos em nossa volta, vamos encontrar inúmeros exemplos, nas famílias, de pessoas que são ou não são parentes próximos e que ocuparam um lugar de significação especial para os filhos. Não seriam funções de uma coparentalidade que não estamos acostumados a distinguir? Outras fontes de identificação?
Isso sempre existiu, mas com o advento dos novos tempos e a popularização das teorias psicológicas, o masculino e o feminino se destacaram do significante homem e mulher, sendo considerados como estruturantes no imaginário das famílias contemporâneas. É frequente escutarmos nos consultórios, na mídia, que virou um centro de aconselhamento popular, o quanto aquela mulher foi importante para a formação do filho de seu novo marido, por ocupar o lugar da figura feminina. Ou vice-versa! É claro que Isso vai depender da disponibilidade deste que forma uma nova família, de ocupar esse lugar.
A questão da maternidade e da paternidade nas famílias contemporâneas clama por maiores esclarecimentos. As mães se desdobram em múltiplos papéis, os pais, pelo que escuto em minha volta, estão bem mais próximos dos filhos, que passam a maioria do tempo convivendo fora de casa; ou em creches desde muito pequenos – no caso das mães que trabalham fora de casa - ou em atividades que vão da capoeira às aulas de línguas, etc... e tal. Trata-se de uma reviravolta nos costumes, efeito das lutas micropolíticas que ocorreram no século XX, que seguiram o rastro da descoberta do inconsciente, de novas teorias políticas e dos avanços da ciência e suas tecnologias.
Tais mudanças alcançam seu patamar radical com a biotecnologia, que oferece à sociedade novas técnicas reprodutivas em que gametas e embriões se deslocam dos seus corpos de origem, criando a figura do doador, e são inseminados em corpos que não mais coincidem com aqueles que seriam os dos pais biológicos, demandando a criação de outros saberes, entre os quais o saber do inconsciente.
Segundo a psicanalista, antropóloga e linguista francesa Geneviève Delaisi de Parserval, membro de associações de ética biomédica e que recebeu em análise vários casais heterossexuais ou homossexuais que quiseram procriar por meio de uma reprodução assistida: “Não mais encontramos o que em outro tempo constituía o núcleo duro do romance familiar freudiano, isto é, a maternidade óbvia e oposta à incerteza da paternidade. Na nova realidade, apenas a paternidade pode ser provada, enquanto que a maternidade é separável em muitas pessoas ou funções, então cada vez mais incerta” ( Parseval, 2011, p.19).
Mas...como assim? Derrida em seu livro De que o amanhã será feito, fala sobre a incerteza de que a mãe é a mulher que dá à luz. Geneviève vai adiante e nos pergunta sobre essa terceira pessoa, o pai, que nos tempos do Édipo freudiano, separava a mãe de seu filho, interrompendo esse gozo resplandecente. Daí a insistência da pergunta que quer saber se é possível obrigar um pai a ser pai. Nos dias atuais, um pai: “Pode ser encarnado por um pai do mesmo sexo, pela lei (o juiz, por exemplo), por um padrinho, por um assistente social. O pai não é necessariamente o genitor. Mas é necessariamente um homem?” (Parseval, p.20, 2011).
Não temos muitas pistas para responder tal questão, mas podemos nos valer mais uma vez de Geneviève Delaisi de Parserval. Segundo ela, em sua clínica aprendeu que, para uma criança se desenvolver, ela vai precisar de dois pais, não necessariamente o homem e a mulher que a conceberam ou a criaram. Ela faz notar a observação segundo a qual as crianças que foram criadas em orfanatos ou em famílias sem homens – e sabemos que esse número é enorme – não se tornaram, em sua maioria, psicóticas ou homossexuais. Em todos esses casos, a pessoa que soube pôr em marcha a triangulação edipiana, exerceu a função paterna, tirando a criança do narcisismo e do sentimento de onipotência infantil, permitindo que ela alcançasse seu Édipo e se construísse.
Diante de tantos espantos e perguntas que não cessam de me ocorrer, é hora de chegar ao epílogo deste texto, que traz no seu final mais uma interrogação que me surpreendeu. O que causa horror aos religiosos nos dias que correm – a separação do sexual da anatomia com a possibilidade da procriação por outros artifícios – teve algumas de suas inspirações vindas dos mitos de origem de suas próprias religiões? O que foi sonhado como dogma divino nas religiões despertou o desejo dos seres falantes de, pela via da ciência, realizar fantasias no plano da copulação dos corpos, apartados da biologia, interferindo nos sistemas de procriação?
Ai, ai... Tal pergunta me faz lembrar de uma citação do antropólogo Claude Lévi-Strauss: “O objeto do mito é fornecer um modelo lógico para resolver uma contradição”. (Strauss, 1975, p.264).
Notas e Referências:
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Tradução de Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz eEginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
PARSEFAL, Geneviève Delaisi. Família a todo custo. Tradução livre do capitulo A evolução das crianças provenientes de casais homosssexuais por Petros Stasinos e Jose Luciolo Gorayeb em 23 de agosto de 2011.
Revista família brasileira. Retrato falado. Pesquisa nacional do Datafolha. Caderno especial. Folha de S. Paulo, 7 de outubro de 2007.
ROSENFIELD, Kathrin H. Sófocles e Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução de Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
TORT, Michel. O desejo frio. Procriação artificial e crise dos referencias simbólicos. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
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Elisabeth Bittencourt é Psicanalista e Escritora. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
. .O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.