“DAS SOMBRAS À LUZ: O RECONHECIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS”

26/04/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos foi fruto de um longo processo histórico e, para analisar, o caminho percorrido para que se pudesse sair das sombras e encontrar a luz, a autora, Josiane Rose Petry Veronese, pesquisadora sobre o Direito da Criança e do Adolescente, publicou pela Editora Lumen Juris, no ano de 2021, a obra Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos como resultado dos estudos decorrentes do estágio pós-doutoral em Direito, pela Universidade de Brasília. O estudo é dividido em 4 partes.

Na primeira parte, denominada “O Caminho Histórico-Normativo do Direito da Criança e do Adolescente”, Veronese traça, a partir de uma análise que combina Direito, arte e questões referentes à sociedade da época, o caminho percorrido para que a Doutrina da Proteção Integral pudesse ser consolidada internacionalmente. A autora aborda a questão polêmica de que “os pais eram genericamente frios, distantes e formais” em razão dos altos índices de mortalidade infantil, bem como o papel da escola na mudança do cenário da infância a partir do século XVII, em que os professores exerciam o papel de adestradores.

Este panorama muda quando é alterado o papel da família, que absorve a função de educar, com um tratamento mais humano para as crianças. A dinâmica social do século XVIII é destacada, com nítida divisão entre os pobres e os burgueses. As crianças da burguesia eram preparadas para receberem uma educação formal, enquanto as pobres iniciavam as jornadas de trabalho nas fábricas inglesas. Após abordar o panorama histórico, com foco na sociedade europeia, a autora inicia a análise sobre as primeiras iniciativas assistenciais a favor da criança e do adolescente no Brasil, destacando, no Brasil Império, a proibição de separar o filho do pai escravo e a Lei do Ventre Livre, que acabava por constituir uma nova forma de escravidão. No século XVIII surgiam as instituições de proteção à “infância desvalida”: roda dos expostos e recolhimentos para as meninas pobres.

Tais instituições atuavam com base em preceitos assistenciais e religiosos, conferindo uma função social à criança marginalizada socialmente, já que muitas eram preparadas para servir às casas de pessoas com melhores condições financeiras. Em relação aos aspectos criminais, a Doutrina Penal do Menor tratava como não criminosos os menores de 09 anos de idade, sendo que para os demais havia autorização para que fossem retirados de suas famílias, consideradas desviadas, e colocados nas prisões dos adultos, já que não havia um local específico para estes infratores. Aqueles entre 09 e 14 anos de idade passariam por uma pesquisa de discernimento antes de serem recolhidos.

O critério do discernimento foi eliminado em 1921, passando a ser considerado como inimputável o menor de 14 anos. Em relação ao trabalho, as normas eram incapazes de surtir efeitos práticos, apesar da estipulação de uma idade mínima de 12 anos de idade. Demonstra a autora o surgimento da categoria ‘menor’ a partir do advento da República e das concepções higienistas da época, com destaque para a criação do Juízo privativo de menores e o papel desempenhado por José Cândido de Albuquerque Mello Mattos para esta construção. Também são feitas análises sobre o Código de Menores de 1927, marcando o nascimento do Direito do Menor.

O panorama histórico, com destaque para concepção de institucionalização como única forma de salvar o menor, permite compreender as tentativas do governo de criar instituições como o Serviço de Assistência a Menores ou a Fundação Nacional do Bem-estar do Menor, que, na prática, apenas agravaram as desigualdades. Em 1979, a Doutrina da Situação Irregular é consolidada pelo Código de Menores de 1979, caracterizado pela criação da categoria ‘menor em situação irregular’, definida pela lei. A legislação, conforme análise feita pela autora da obra, a partir de estudos de Garcia Méndez, era ao mesmo tempo penal e tutelar. O processo de redemocratização do Brasil e de elaboração de uma nova Constituição permitiram a criação das bases necessárias para rompimento com a Doutrina da Situação Irregular e a inauguração de um novo marco para o tratamento jurídico conferido às crianças e aos adolescentes.

Na segunda parte da obra, “A Doutrina da Proteção Integral e seu Alcance Normativo”, Josiane Petry Veronese analisa o que consiste a Doutrina da Proteção Integral, e afirma que “na seara do direito da Criança e do Adolescente, a expressão ‘doutrina’ diz respeito, na realidade, a toda uma evolução na normativa internacional e nacional na construção dos direitos afetos às crianças e aos adolescentes”. Para tanto, busca como base da Doutrina da Proteção Integral no cenário internacional a partir das primeiras discussões para a elaboração de documentos que materializassem a distinção da criança como um ser merecedor de uma proteção especial e que culminaram com a elaboração da Declaração de Genebra de 1924. Após a Segunda Guerra Mundial e o inerente processo de universalização dos direitos humanos, com a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que trouxe previsões específicas sobre a criança, se mostrou necessária a elaboração da Declaração dos Direitos da Criança em 1959 pela ONU. Com o intuito de dar força cogente aos direitos das crianças, em 1979, em comemoração dos 20 anos da mencionada Declaração, foram iniciados os trabalhos para a elaboração da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989. A autora confere destaque aos demais tratados e instrumentos internacionais que corroboraram com o processo de desenvolvimento histórico da Doutrina da Proteção Integral.

A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 tem natureza coercitiva, estabelecendo um conjunto de deveres e obrigações para os signatários, possuindo mecanismos de controle. A Convenção tem como objeto a alteração de padrões existentes referente ao tratamento conferido à criança, acentuando que a infância seja prioridade absoluta e imediata, sobrepondo-se aos interesses econômicos, reafirma o princípio do maior interesse da criança e estabelece a família como espaço natural para o desenvolvimento, além de considerar a criança como sujeito de direitos e como pessoa em desenvolvimento, independente da sua condição econômica ou social.

O Brasil, por meio da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), trouxe como base a Doutrina da Proteção Integral, sendo destacado pela pesquisadora, a força dos movimentos populares e da participação de crianças na Assembleia Nacional Constituinte. Além das previsões específicas do art. 227 da CRFB/1988, o texto constitucional trouxe diversos dispositivos referentes ao direito da criança e do adolescente, incluindo direitos sociais e políticos. A autora também apresenta suas considerações sobre os princípios constitucionais do direito da criança e do adolescente: princípio da prioridade absoluta; princípio da proteção integral; princípio do superior interesse e princípio da cooperação. Após, é feita uma análise sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, enquanto norma regulamentadora das mencionadas disposições constitucionais e internacionais, adotando como base a Doutrina da Proteção Integral, em que “segundo tal doutrina jurídica, toda criança e adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada e integral.”

A terceira parte foi intitulada “A Incidência da Doutrina da Proteção Integral no Direito Brasileiro” e como o nome sugere, a autora faz uma análise sobre como a Doutrina da Proteção Integral afetou a elaboração de leis e institutos jurídicos para o direito brasileiro. O destaque do capítulo é a crítica elaborada em relação ao Direito Civil, que ainda precisa passar por um processo de constitucionalização para melhor refletir a ordem jurídica inaugurada pela CRFB/1988. A imposição do dever de obediência, a naturalização da violência dos pais contra os filhos (com o culto ao castigo), a ideia de poder familiar e a própria noção de capacidade ainda que tenham apresentado tímidas alterações quando comparados com o regime civilista do Código de 1916 ainda necessitam de uma profunda reestruturação para atenderem aos preceitos da Proteção Integral. Após, a autora efetua uma análise das legislações promulgadas após a CRFB/1988 e que espelham a Doutrina da Proteção Integral nos mais variados aspectos da infância e da adolescência, tais como a Lei nº 13.010/2014, referente a coibição do uso de violência como mecanismo de correção de crianças; o marco legal da primeira infância; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; a Lei da Escuta Especializada e do Depoimento Especial; o Marco Legal da Proteção de Dados e a Lei de Migração.

Por fim, na quarta parte, “A Incidência da Doutrina da Proteção Integral na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – junho de 2014 a junho de 2020”, a autora justifica o recorte das análises dos julgados do Superior Tribunal de Justiça, em relação ao marco temporal, pelo fato da Lei ‘Menino Bernardo’ ter sido promulgada em 2014, efetuando ainda uma breve análise das principais alterações normativas desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Foram apresentados os descritores identificados nos julgados do Superior Tribunal de Justiça no período mencionado: Doutrina da Proteção Integral; Princípio da Proteção Integral e Paradigma da Proteção Integral. A utilização dos descritores pelo STJ é gradativamente ampliada, destacando a presença dos termos em processos relacionados ao ato infracional e a convivência familiar. Foi possível concluir que a jurisprudência do STJ tem apresentado “cada vez mais, um olhar diferenciado sobre os grandes temas, situações, fragilidades que envolvem as realidades de nossas crianças e adolescentes.”

Dessa forma, a obra “Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeito de direitos” se mostra uma leitura essencial para todos aqueles que se dedicam a compreensão dos direitos das crianças e dos adolescentes. A partir da perspectiva apresentada pela autora é possível compreender todo processo de construção da Doutrina da Proteção Integral, tanto no panorama internacional quando no direito brasileiro. É possível ainda concluir as falhas na prática jurídica e normativa que precisam serem sanadas para que se efetive o protagonismo da criança e do adolescente.

 

Notas e Referências

VERONESE, Josiane Rose Petry. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

 

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