DANIELLA PEREZ, A MÁQUINA DE ESCREVER E O PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ

04/10/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

O homicídio que vitimou a atriz Daniella Perez comoveu a todos. Era uma outra época. As novelas tinham grande audiência e o seus capítulos eram acompanhados por pessoas de diferentes classes sociais. Quase todos sabiam o que estava ocorrendo nas novelas e se sentiam aptos a opinar pelos destinos dos principais personagens.

Naquela época, fazia sucesso a novela De Corpo e Alma, a qual tinha como casal romântico a atriz Daniella Perez e o ator Guilherme de Pádua. Ocorre que, na vida real, por motivos que não serão abordados nesta coluna, o ator Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Thomaz assassinaram com 18 punhaladas a atriz Daniella Perez, causando um comoção nacional.

Falávamos sobre esse caso em sala de aula quando percebemos uma certa perplexidade dos nossos alunos. Eles faziam comentários como se nunca tivessem ouvido essa história, o que nos deixou curiosos. Uma vez indagados, a grande maioria confessou desconhecer a atriz Daniella Perez, a novela De Corpo e Alma e a tragédia ocorrida, chamando a nossa atenção.

Mas o erro talvez tenha sido nosso. É que a morte da atriz ocorreu em 1992, ou seja, há quase 30 anos. Portanto, é natural que a grande maioria dos nossos alunos não tenha ouvido falar do caso. Aliás, a grande maioria dos nossos alunos sequer era nascida naquela época. Além disso, a geração atual tem tantas informações – úteis e inúteis – à sua disposição que é quase impossível que registrem e guardem comentários sobre todos os assuntos aos quais já foram apresentados. Em tempos de internet, podemos saber de quase tudo, mas sabemos de quase nada.

A nossa perplexidade sobre o desconhecimento dos alunos a respeito de um caso que parou o país com tanta repercussão fez acender uma luz de alerta. É preciso ter cautela na sala de aula e explicar (de preferência, com algum bom humor) conceitos básicos, sob pena de os alunos se desinteressarem completamente. Poucos prestam a atenção diante de um discurso cujos elementos básicos são desconhecidos.

Por isso, passamos a ter ainda maior cuidado em nossas aulas quando explicamos o princípio da identidade física do juiz.

O art. 399, § 2º, do CPP, dispõe o seguinte: o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Qual é a lógica disso? A resposta é simples: o legislador supõe que o juiz que ouve a vítima, as testemunhas e o réu esteja mais habilitado para proferir a sentença porque pôde perceber a forma como eles depuseram, a maneira como se portaram em audiência e a credibilidade que passaram em suas declarações.

Isso é certo, mas também é errado.

Tal dispositivo foi inserido no Código de Processo Penal pela Lei 11719/08. Antes disso, o antigo Código de Processo Civil, de 1973, já previa o princípio da identidade física do juiz no seu art. 132, cuja redação era a seguinte: o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. O atual Código de Processo Civil não reproduziu a mencionada norma.

Portanto, a legislação brasileira passou a ter essa previsão – inicialmente no CPC e, depois, no CPP – em uma outra época. Os depoimentos eram registrados, em um momento mais distante, com máquinas de escrever. Naquela época, o secretário do juiz registrava no termo do depoimento as declarações da vítima, das testemunhas e do réu, segundo a redação que lhe autorizava o juiz. Posteriormente, as máquinas de escrever foram substituídas pelos computadores, mas a sistemática continuou a mesma.

Evidentemente, ao registrar no papel as declarações dos depoentes, o juiz nem sempre conseguia transformar em palavras a emoção do depoimento, a maneira de se expressar do depoente e a credibilidade de suas declarações. Por mais que se esforçasse para utilizar as palavras do depoente tais como ditas (sem enfeitá-las), os registros no papel levavam muito das características do juiz, sobretudo quando o magistrado era muito formal e transformava declarações de pessoas humildes em narrativas recheadas de palavras difíceis que, na verdade, descaracterizavam os seus depoimentos.

Nos dias de hoje, ao menos nos grandes centros, os depoimentos já não são mais tomados de uma forma tão arcaica. O nosso dia a dia forense é desenvolvido no Rio de Janeiro e, na maioria absoluta das suas varas criminais, é adotado o sistema através do qual os depoimentos são colhidos através de áudio e vídeo. Em outras palavras, as pessoas que depõem em juízo são filmadas.

Portanto, o juiz que preside a audiência ou qualquer outro juiz que venha a proferir a sentença posteriormente tem condições de verificar exatamente a forma como os depoentes se portaram em juízo. O juiz sentenciante não fica refém das palavras frias registradas em um papel pelo juiz que colheu os depoimentos. Ficando gravada a audiência, é possível perceber perfeitamente o seu clima, o que de fato ocorreu no dia da sua realização.

Mesmo que se sustente que a gravação não corresponde a 100% ao que ocorreu na audiência, é preciso reconhecer que a perda da qualidade – se existe – é insignificante.

Entendemos que o princípio da identidade física do juiz previsto no art. 399, § 2º, do CPP, não comporta a exceções que eram previstas no art. 132, caput, do antigo CPC. Admitir que o juiz se desvincule do processo aplicando por analogia um dispositivo revogado, na nossa ótica, constitui um retumbante equívoco.

O caso concreto é que deverá – excepcionalmente – permitir a desvinculação do juiz. Se o juiz foi promovido a desembargador, se a juíza estiver de licença maternidade por muitos meses, se o juiz estiver afastado por problemas médicos por muitos meses, não faz sentido o processo ficar parado tanto tempo esperando a sua volta. Nesses casos excepcionais, a vinculação deve ser excepcionada, cabendo a outro juiz proferir a sentença.

Mas apenas nesses casos. Em regra, o juiz que presidiu a audiência deve proferir a sentença, conforme determina expressamente o art. 399, § 2º, do CPP. Nesse sentido: TJRJ, Segunda Câmara Criminal, Conflito de Jurisdição nº 0036349-41.2016.8.19.0000, relator Des. José Muiños Piñeiro Filho; TJRJ, Quarta Câmara Criminal, Conflito de Jurisdição nº 0015772-42.2016.8.19.0000, Relator Des. José Roberto Lagranha Távora; TJRJ, Quinta Câmara Criminal, Conflito de Jurisdição nº 0058616-80.2012.8.19.0021, Relator Des. Cairo Ítalo França David.

De toda forma, quando excepcionalmente não se aplicar o princípio da identidade física do juiz, uma vez revelada uma situação que não justifica o envio dos autos ao juiz que presidiu a instrução ou uma vez revelada uma situação que não justifica a espera do seu retorno – que poderá demorar meses ou mesmo nunca ocorrer –, é preciso compreender que o prejuízo propriamente dito à qualidade da sentença é mínimo, quando os depoimentos são colhidos pelos sistema audiovisual.

Na nossa opinião, não há diferença significativa entre presenciar o depoimento na sala de audiências no momento em que ele é colhido e examinar o seu registro pelo sistema audiovisual tempos depois.

É possível que as novas gerações – que desconhecem a tragédia ocorrida, infelizmente, com a atriz Daniella Perez há quase trinta anos e que nunca usaram uma máquina de escrever – tenham dificuldade de entender a lógica do princípio da identidade física do juiz. Afinal, se todos os depoimentos estão disponíveis pelo sistema audiovisual, qualquer juiz está apto a proferir a sentença. De toda forma, até que haja a sua revogação, o art. 399, § 2º, do CPP, há de ser respeitado. Em outras palavras: em regra, o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença.

 

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