Da Sociedade do Cansaço à Jurisdição do Doping?

14/11/2015

Por Maurilio Casas Maia - 14/11/2015

Vive-se hoje na Sociedade do cansaço. É a lição do filósofo coreano Byung-Chul Han. Passado o momento da sociedade da escassez medieval, vive-se atualmente na sociedade da (hiper)abundância, ocasião propícia para as patologias neuronais. Assim, por exemplo, tem-se a Síndrome de hiperatividade (Tdah), o transtorno de personalidade limítrofe (TPL), a depressão e a síndrome de Burnout (SB), para citar somente alguns dos problemas decorrentes da “Sociedade do cansaço”, na exposição do retrocitado autor.

Han expõe a hiperatividade cotidiana pós-moderna, frenética e histérica por trabalho e produção e conclui: “A Sociedade do trabalho e do desempenho não são uma sociedade livre” (2015, p. 46). Na sociedade do desempenho e do cansaço existem novas coerções e, no campo do trabalho, “somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor” (HAN, 2015, p. 47). Que sina!

Nesse contexto, deve-se reconhecer que a Jurisdição (assim também as demais carreiras das funções essenciais à Justiça) está inserida na Sociedade do Cansaço, a qual anseia por “desempenho” – reclamando-se com isso, uma leitura contextualizada e realista da situação.

Desse modo, são milhares de processos sem correspondente número proporcional de juízes e servidores. São dezenas de focos de pressão sociopolítica, incluindo população e mídia, todos exigindo resultados satisfatórios –e, geralmente, trata-se de interesses em tensão com outros setores sociais a fim de complicar mais ainda a situação.

Pois bem. Retornando ao contexto social mais amplo, na “sociedade do desempenho e do cansaço” tudo aquilo que aumenta o desempenho e reduz os efeitos nefastos do cansaço aparenta ser bem recepcionado. Nessa senda, a “sociedade do cansaço”, lentamente, ruma à “Sociedade do Doping” (HAN, 2015, p. 69), descortinando o risco da subversão de valores na busca de desempenho artificial nos “jogos sociais”. E o que esperar do Sistema de Justiça embutido nessa realidade fática?

Nunca foi tão atual o alerta do professor Alexandre Morais da Rosa (2015, p. 130) – em suas palestras e obras –, sobre os perigos do chamado doping processual, enquanto mecanismo abusivo e aniquilador da igualdade entre os atores processuais (“jogadores”). Na sociedade do cansaço e do doping, talvez nem sempre se afigure claro o desvio de conduta de fair play processual, tornando o jogo processual bem mais perigoso e desequilibrado.

O que esperar de juízes cada vez mais pressionados pela exigência de desempenho quantitativamente elevado? Ou de promotores de Justiça pressionados midiaticamente pelo clamor condenatório? Ou, por outro lado, do reduzido número de defensores públicos para a respectiva (altíssima e crescente) demanda judicial e extrajudicial? De advogados públicos pressionados pelos respectivos governantes a conter, a todo custo, a efetivação de direitos sociais pela via judicial? De advogados privadoscolocados contra a parede por clientes em buscado resultado rápido e satisfatório? Eis perguntas com respostas difíceis (ou impossíveis?), mas com hipóteses de pesquisadeveras preocupantes.

Não é difícil pressupor que, na Sociedade do desempenho, do cansaço e do doping, os participantes do sistema de justiça podem ser cooptados facilmente para o desequilibrante (e ilícito) regime do doping processual – que nada tem a ver com o uso “cafeína” para se manter acordado no estudo de dado processo.

Com efeito, é na sociedade do cansaço e do desempenho que o estudo do doping processual ganha contornos de grande relevo, demandando investigação de suas formas e ainda de mecanismos inibidores de seus efeitos violadores da isonomia processual.

Todavia, na Sociedade do cansaço e do doping o desempenho e os órgãos vêm recebendo mais atenção do que as pessoas. Assustadoramente, a crítica de Norbert Elias à Sociedade que despreza a solidão de seus moribundos em processo de morte pode ser aplicada com a mesma intensidade à Jurisdição e Sistema de Justiça da Sociedade do doping:

Talvez não seja supérfluo dizer que o cuidado com as pessoas às vezes fica muito defasado em relação ao cuidado com seus órgãos” (ELIAS, 2001, p. 103).

Portanto, será necessária uma ampla (re)visão do sistema se, de fato, almejar-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, lastreada no respeito à dignidade humana – nos termos constitucionalmente positivados. É, assim, imprescindível refletir... Mas não só isso. É, sem dúvida, o caso de refletir e (re)agir. Mãos à obra...


Notas e Referências:

ELIAS, Norbert, A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015.

ROSA, Alexandre Morais da.A teoria dos jogos aplicada ao Processo Penal. Florianópolis: Empório do Direito/Rei dos Livros, 2015.


Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM). 

Email:  mauriliocasasmaia@gmail.com

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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