Da seletividade penal ante aos atos infracionais na cidade do Rio de Janeiro: ECA, um estatuto para todos?

29/03/2016

Por Gabriel Martins Cruz de Aguiar Pereira e Tayane Caruso do Valle - 29/03/2016

1. Introdução

Remetendo-nos à ideia de que pela finalidade de algo é possível determinar os limites do mesmo e, desse modo, definir, ao menos parcialmente, o que seja esse algo, decidimo-nos iniciar a introdução do presente artigo tratando de seu objetivo, do fim ao qual queremos levá-lo. Assim, em um exame geral, nosso objetivo é tratar de um aspecto do tratamento dado pela força policial às crianças e aos adolescentes na cidade do Rio de janeiro diante de supostas infrações penais. Mais especificamente, queremos atestar, por meio da pesquisa, a ocorrência de uma seletividade penal, nos termos dados por Eugenio Raúl Zaffaroni, em tal tratamento – seletividade essa que, dia-a-dia, demonstra ter cor, renda e localidade claras. Este trabalho consiste, em suma, numa investigação empírico-teórica que tem como cerne confrontar o senso comum com uma metodologia técnica e objetiva, tendo como fim alcançar uma maior proximidade com a realidade livre de vícios e ilusões.

Entendemos que a sociedade só pode ser transformada a partir do momento em que formos capazes de compreendê-la em sua essência e, com isso, entender as causas dos problemas sociais para, então, propor medidas que possam atacá-las de maneira efetiva. Em outras palavras, lançando de uma conhecida metáfora, é necessário fazer o diagnóstico dos males para então propor o melhor prognóstico. Nesta feita, limitar-nos-emos a identificar tais problemas, por meio da supracitada pesquisa.

Consideramos tal temática de singular importância, visto que esta é uma matéria tratada na Constituição Federal a qual, todavia, não encontra uma aplicação prática efetiva. Acreditamos que a relevância da pesquisa é ainda reforçada pelo fato dos indivíduos que estão tendo seus direitos violados serem crianças e adolescentes, ou seja, um grupo social que deveria possuir uma proteção jurídica reforçada exatamente pela vulnerabilidade característica do momento biológico que passam, no qual estão desenvolvendo sua personalidade. Contudo, nem todas as crianças e os adolescentes estão no quadro indicado acima, sendo possível perceber que apenas a parcela “pobre” e “preta” faz jus às estatísticas.

2. A CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO DIREITO BRASILEIRO

No direito estatal brasileiro, as principais normas que regulam o tratamento da criança e do adolescente, na hipótese dos mesmos praticarem algum ato infracional, estão contidas na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/1990) e na Lei n° 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Dentre estas, a principal obviamente é a Constituição, enquanto Lei Maior informadora de todo ordenamento jurídico pátrio, sendo os outros dois diplomas legislativos infraconstitucionais responsáveis por dar especificidade normativa ao tema.

Dessa forma, iremos inicialmente abordar à Constituição Federal, em seu artigo 1°, III, artigo 5°, caput, o artigo 6° e o artigo 227, que normatizam, respectivamente, a dignidade da pessoa humana, os direitos à liberdade, à igualdade e à vida, os direitos sociais e a proteção integral da criança e do adolescente. Esses são imperativos que afetam todos os humanos que estejam em território brasileiro e, por conseguinte, devem ser considerados ao versar sobre as crianças e os adolescentes. Após isto, veremos especificamente o tratamento dado pela legislação ordinária indicada acima, no que tange às sanções previstas aos atos infracionais praticados pelos infanto-juvenis.

2.1. Tratamento CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE: BREVE VISÃO GERAL 

A Constituição Federal brasileira de 1988 é chamada, costumeiramente, de Constituição Cidadã, dada a importância que atribui aos direitos fundamentais, tanto individuais quanto sociais. Em que pese isso e as transformações sociais verificadas desde a sua promulgação, não se pode ainda constatar a sua plena efetividade. De qualquer modo, no plano da hermenêutica do direito estatal, a Lei Maior se encontra no topo do ordenamento, falando-se em supremacia constitucional, o que significa dizer que todas as demais normas de hierarquia inferior não podem colidir e conflitar com a Magna Carta e, mais, devem ser interpretadas conforme seus princípios e suas regras.

O cenário político que a Constituição Federal traz em seu catálogo legislativo tem como parâmetro máximo a dignidade da pessoa humana e a proteção de direitos fundamentais, elencados em dispositivos esparsos na lei que garantem a efetivação de tais valores, tendo como parâmetro, também, Tratados Internacionais os quais o país seja signatário.

Nesse sentido, faz-se necessário ressaltar o artigo 1º, III da Constituição federal que descreve a dignidade da pessoa humana como sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, relativos à República Federativa do Brasil. Em outras palavras – e como a própria análise axiológica do termo indica – trata-se de uma qualidade intrínseca a todo aquele que ostenta a condição humana, ofertando “o (...) direito da pessoa humana de ter direitos” (MORAES, 2006, p. 13). Tal atributo deve ser núcleo íntegro e sólido, objeto de máxima proteção e respeito por parte tanto da sociedade, quanto do Estado que tem, em seus braços, a força necessária à garantia da aplicação de tais normas.

Portanto, o fundamento supramencionado serve de base para toda hermenêutica jurídica, conforme afirma Piovesan (2004, p.92):

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, a dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno.

Sendo norte constitucional, a dignidade da pessoa humana informa todas as outras normas garantidoras de direito, sendo por certo, a mais forte base principiológica do ordenamento jurídico. E, em se constituindo alicerce interpretativo fundamental, faz-se mister analisar o artigo 5º do mesmo diploma, dispositivo que cataloga uma série de direitos e garantias individuais primordiais para que a harmonia político-jurídica se perfaça sem eventuais gravames.

O caput do artigo 5º faz menção expressa à importância e à prioridade que o ordenamento jurídico e o Estado devem dar à igualdade, ao direito à vida, à liberdade e à propriedade, elencando, para tanto, inúmeros incisos que compõe toda uma estrutura protetiva e garantista de direitos.

No ponto de vista do dever-ser, a igualdade postulada tem sua ratio na ideia de que as pessoas que apresentem a condição humana devem ter tratamento uníssono, impedindo que haja, neste sentido, qualquer submissão a tratamentos degradantes que, por qualquer motivação, os coloque em situação de inferioridade e de disparidade. Trata-se da igualdade formal, elencada em texto legal que busca, como todo o ordenamento pátrio, seu cumprimento voluntário e integral. Ocorre que, para atingir tais finalidades, é necessário passar por cima do simbólico, da letra de lei que, por si só, é fria e distante da realidade social cotidiana. Por isso, concebeu-se o entendimento de que a igualdade, para além da forma, deve ser também substantiva, assumindo seu formato material na hipótese do tratamento desigual entre indivíduos em posições desiguais, na medida de sua desigualdade, para supri-la.

Outra conclusão não poderia ser feita, visto que pacificamente se observa o quão plural é a sociedade brasileira. “É preciso que sejam contempladas, desde sempre, as diferenças existentes entre as pessoas, evidência empírica que pode ser facilmente comprovada: os homens não são iguais entre si, e para confirmar esta assertiva, basta pensar em dicotomias facilmente visualizáveis, como cultos e analfabetos, sadios e deficientes, heterossexuais e homossexuais”. (MORAES, 2006, p. 21)

Ademais, de nada adiantaria esse extenso rol de direitos se não houvesse a vida para usufruí-los. O Pacto San José da Costa Rica, de 1969 já deixava clara a importância do direito à vida, quando em seu artigo 4º dispõe que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” Não obstante, a Convenção sobre os direitos das Crianças também traz em seu texto proteção especial aos referidos incapazes, dizendo em seu artigo 6º que “os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida”. Tal direito é, assim, pressuposto essencial para o exercício dos demais. Sendo um dos principais objetos de proteção do ordenamento jurídico, o Estado tem o dever negativo de não atentar contra a vida e, também, o dever positivo de promovê-la e protegê-la, enquanto vida digna.

Avançando no caput do artigo 5º, temos ainda que “a Constituição Federal é, (...) em primeira linha, uma constituição da liberdade” (SARLET, 2012, p. 429). Trata-se, por conseguinte, de um tema que – junto com a igualdade – traça um retrato fiel do que se denomina dignidade da pessoa humana, expressão latente do Estado Democrático de Direito, como se pode verificar na análise supra.

Tal liberdade está classificada no texto (e no entendimento) Constitucional como sendo a faculdade que todos aqueles que ostentam a condição humana tem de agir ou omitir-se, de pôr em prática seus desejos máximos, ir e vir sem restrições, expressar-se sem que o Estado intervenha na esfera de sua individualidade. Este instituto deve ser fomentado pelo Estado, de modo que o direito à liberdade não circunde num status meramente formal, mas que se materialize no sentido de viabilizar aos cidadãos a possibilidade de maior participação nas decisões políticas e fundamentais do Estado e, também, exercer os direitos elencados na Magna Carta sem restrições de cunho autoritário por parte do Ente federativo.

A lista de direitos fundamentais não se basta nas delongas do artigo 5º, sendo, os direitos sociais, matéria de relevância singular no ordenamento jurídico brasileiro. Diante disto, a Constituição de 1988 reservou um capítulo para tratar exclusivamente desta temática, dando origem ao artigo 6º, que elenca, em seu corpo, um rol de prioridades político-administrativas, essenciais para a manutenção do que se denomina Estado democrático de direito.

De acordo com o texto constitucional, devem ser tratados como prioridade fundamental a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Tais direitos são prestações positivas do Estado, ou seja, fazem parte de um conjunto normativo que depende precipuamente da boa atuação estatal para se perfazer. Seu objetivo principal é assegurar aos indivíduos melhores condições de vida, proporcionando serviços que atendam à população de modo a equilibrar desigualdades sociais. Assim, pode-se dizer com segurança que o artigo 6º da Magna Carta consagra uma hermenêutica voltada a eficácia da igualdade e da liberdade, dentre outros direitos, atendendo a pressupostos intrínsecos da dignidade da pessoa humana.

Neste cenário protetivo e garantidor de direitos, a Constituição Federal tratou de dar importância específica às crianças e aos adolescentes, reservando, no artigo 227 do mesmo diploma, uma série de prerrogativas assistencialistas devidas a esta (grande) parcela da sociedade. Trata-se de uma norma em separado que destaca uma soma de forças, tanto da família, quanto da sociedade e do Estado, no sentido de assegurar-lhes todas as proteções e as garantias constitucionais, consideradas imprescindíveis à plenitude do gozo dos demais direitos sociais, como se pode notar in verbis: 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

Nota-se, pelo texto legiferante, que o Estado figura como personagem principal – e não subsidiário – na prestação de serviços que tenham como objetivo supremo a promoção e, consequentemente, a eficácia de políticas que resultem na melhoria das condições de vida de crianças e de adolescentes. Ocorre que tal dispositivo somente terá aplicabilidade plena quando a sociedade como um todo a recepcionar como essencial ao Estado democrático de direito e dignidade da pessoa humana, considerando a criança e o adolescente como personagens vulneráveis às condições próprias da vida adulta.

2.2. o Tratamento PUNITIVO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À LUZ DO ECA, DA SINASE E DA Constituição federal 

A lei 8.069 de 1990 traz para o Brasil um catálogo de normas protetivas que envolvem questões relativas a crianças e a adolescentes tanto no âmbito civil, quanto no penal. Nela, o legislador descreve uma série de medidas que devem ser tomadas pelas autoridades administrativa e judiciária quando se está diante de cenários de, por exemplo, abandono familiar, vulnerabilidade social, prática de atos infracionais, dentre outros.

No tocante a esta última especificidade, qual seja, atos infracionais praticados por crianças e por adolescentes, resta necessário analisar de que maneira o legislador traçou as regras para que o Estado atue na apuração e, posterior, punição do delito, levando em consideração, por óbvio, a condição de vulnerabilidade biológica e psíquica, intrínsecas da vida infanto-juvenil.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, aquele que for flagrado praticando ato infracional análogo a crime tipificado no Código Penal, deve ser apreendido e encaminhado, imediatamente, à autoridade policial especializada neste tipo de apuração. Ainda, o mesmo diploma que determina a condução da criança ou do adolescente até a autoridade policial para verificação do suposto ato infracional, ressalta que tal transporte não pode ser feito em viatura ou veículo com compartimento fechado, em situações que atentem contra a dignidade ou impliquem riscos à integridade moral e física de a quem se atribui a autoria da infração, sob pena de responsabilidade.

Após isto, o responsável pela repartição deve, desde logo – e a depender do crime em questão –, realizar o boletim de ocorrência circunstanciada ou lavrar o auto de apreensão, ouvindo, nesta oportunidade, além do próprio adolescente, testemunhas que possam esclarecer os fatos descritos. Em casos de violência ou de grave ameaça, deve a autoridade policial apreender o instrumento eventualmente usado na intimidação das vítimas e requisitar exames e perícias que tenham o condão de comprovar a materialidade e a autoria da infração apurada.

Poderá, a criança ou adolescente apreendido, ser liberado pela autoridade policial caso haja o comparecimento de seus responsáveis na repartição policial, oportunidade em que estes preencherão o termo de compromisso e responsabilidade na apresentação do ‘menor’ envolvido ao representante do Ministério Público no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.

Neste caso, em não sendo a criança ou o adolescente liberado, visto a gravidade do ato eventualmente praticado, deve a autoridade policial encaminha-lo imediatamente ou, na impossibilidade de fazê-lo, dentro de vinte e quatro horas, ao membro do Parquet, junto com cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência circunstanciada, dependendo do delito em questão. Tal cópia, entretanto, deve ser encaminhada ao Ministério Público ainda que tenha havido, por parte da autoridade policial, a liberação do suspeito pela prática de ato infracional.

É possível perceber, ao longo da análise tecida neste trabalho, que a instituição do Ministério Público tem uma importância relevante em todos os casos que tenham como personagens principais, crianças e adolescentes. Neste sentido – e após os trâmites administrativos oriundos da delegacia policial – deverá o Parquet, diante do auto de apreensão ou boletim de ocorrência autuado pelo cartório judicial e de informações acerca dos antecedentes do adolescente encaminhado, promover sua oitiva, juntamente com a de seus responsáveis, da vítima e de eventuais testemunhas do fato.  Convencendo-se da inexistência de indícios mínimos de autoria e de materialidade, ou seja, na falta de justa causa para a privação da liberdade do acusado pela prática do ato infracional, pode o promotor de justiça arquivar os autos. Não entendendo pelo arquivamento, pode o membro do Parquet conceder a remissão que é uma medida socioeducativa de não seja de semiliberdade ou de internação, conforme artigo 127 do Estatuto, in verbis: 

Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.

Após opinar o Ministério Público pelas medidas supradescritas, os autos são encaminhados à autoridade judiciária que deverá homologar em sentença devidamente fundamentada. Em discordando do parecer emitido pelo órgão Ministerial, pode o juízo, segundo o artigo 181, §2º do Estatuto, fazer remessa dos autos ao Procurador Geral de Justiça. Este oferecerá representação, designando outro membro do Ministério Público para apresentá-la, caso contrário, ratificará ou não a decisão do Parquet pelo arquivamento ou remissão, oportunidade em que deverá o juízo homologar tal decisão sem maiores delongas.

Como última atitude, de acordo com o resquício probatório que se perfizer ao longo da investigação, o Ministério Público pode pugnar à autoridade judiciária pela aplicação de medida socioeducativa, aí sim de caráter restritivo de liberdade, como, por exemplo, a submissão do adolescente à internação em estabelecimento próprio.

Estando o adolescente internado provisoriamente, o procedimento deverá ser concluído no prazo máximo de quarenta e cinco dias, improrrogáveis. Aqui, uma vez oferecida a representação, conforme artigo 184 do referido diploma, a autoridade judiciária designará, tão logo, audiência para apresentação do adolescente, com o objetivo de decidir sobre a decretação ou manutenção da internação. Marcada a audiência, os responsáveis do adolescente serão cientificados e deverão comparecer na data estabelecida, acompanhados de um advogado. No caso de não comparecimento dos mesmos, a autoridade nomeará curador especial ao adolescente que o acompanhará em todo o rito.

Durante mais de uma década, as crianças e os adolescentes, sob suspeita (ou confirmação) da prática de atos infracionais no Brasil, ficaram sem proteção legislativa quanto à maneira em que as medidas socioeducativas deveriam ser aplicadas no caso concreto, visto que o Estatuto da Criança e do Adolescente, nesta temática, se mostrava um tanto quanto omisso, vago. Todavia, no ano de 2012, a lei 12.594 foi editada para dispor sobre o que se denominou Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Esta lei nasce com o objetivo de regular as medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem atos infracionais. É um amplo rol de princípios e de regras que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei. (art.1º, §1º SINASE).

O artigo segundo desta lei traça os objetivos das medidas socioeducativas, entendendo que, em primeiro lugar, a medida quando decretada por meios judiciais tem o condão da responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação. Não obstante, a aplicação de tais medidas devem buscar, sobretudo, a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento.

Dentre os princípios estabelecidos pela lei que rege o SINASE está a legalidade, que reforça o tratamento regular e menos gravoso do que os oferecidos aos adultos que praticam infrações penais, bem como está a proporcionalidade com relação à infração cometida, devendo ser o Estado responsabilizado pelos exageros cometidos quando da manutenção das medidas para além do tempo estabelecido em lei, exageros estes alimentados pelo animus puniendi percebido em cada palavra de grande parte das decisões judiciais proferidas no Brasil.

A lei elenca, ainda, o princípio da individualização, ou seja, a medida deve ser aplicada levando em consideração a idade do adolescente, sua capacidade e circunstâncias pessoais que o levaram à prática do ato infracional, isto sem contar com o princípio da mínima intervenção, circundando, na aplicação objetiva da medida descrita em lei, sem que haja nenhum tipo de discriminação de cunho étnico, de gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status, conforme bem disposto no artigo 35 da lei em análise. 

3. A DESCONTRUÇÃO DA PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO DIREITO BRASILEIRO

Tendo sido visto o dever-ser jurídico, nos pontos que mais importam para a presente pesquisa, passamos agora ao âmbito do ser social, de modo que olharemos o direito estatal, acima reproduzido, por fora dele, criticando-o. Para tanto, tratemos sucintamente dos conceitos de direito e de Estado, para entendermos com mais clareza o direito estatal.

Assim, em linhas gerais e sem querermos entrar em maiores polêmicas, partiremos de uma das possíveis compreensões do que seja o direito, qual seja, a que o vê como um conjunto de normas de condutas que coagem determinado sujeito a agir de determinada forma em determinada relação social. Desse modo, nessa definição adotada, temos três elementos em destaque para caracterizar o direito: 1) o direito se dá necessariamente em uma relação social, ou seja, entre dois ou mais sujeitos; 2) o direito caracteriza tal relação social como uma relação de força, de poder, no qual um dos sujeitos impõe determinada coisa a outro sujeito sob pena geralmente de alguma sanção; 3) por fim, o direito busca determinar condutas de ação ou, ainda, leques possíveis de condutas ou entendimentos sobre condutas, por meio de um dever-ser.

Em outras palavras, podemos dizer que a partir da visão acima exposta, o direito se trata de uma face do poder ou, mais especificamente, o direito se apresenta como o próprio exercício do poder, posto que por meio dele passa a se impor condutas queridas por um agente social a outro(s) agente(s). Nesse sentido, tem-se que o direito é caótico e complexo, se multiplicando na mesma medida em que se multiplica o próprio exercício poder. Igualmente, não estaria ligado a um ideal de justiça e, por óbvio, também não se limita ao direito estatal, pelo contrário, este é uma parte daquele.

Dada essa definição, temos que o chamado direito estatal, ao menos em sua forma ideal, é um meio pelo qual o Estado Moderno buscou e busca afirmar seu poder diante de outros agentes sociais, especialmente através do conceito de soberania. A soberania, em sua dimensão interna ao Estado, como indica Bonavides (2012), fixa a predominância do ordenamento jurídico estatal aos demais ordenamentos sociais. Inclusive Dallari (2011), em sua análise dos diversos conceitos de soberania, trata que ela está ligada intimamente ao poder, apontando que na concepção puramente política, o que importaria à soberania não seria a legitimidade, mas simplesmente seu caráter absoluto. Dessa forma, o Estado Moderno, no intento de ser soberano, estabeleceu uma ordem jurídica própria, taxando como ilegal ou desviante as demais ordens sociais que não convergissem a si. Mas outras concepções de soberania, como o próprio Dallari (2011) trata, apontam para a necessidade de que tal ordenamento, estatal e por isso soberano, atenda a determinados fins éticos, culturalmente estabelecidos.

Posto isto, há de se notar que o Estado Moderno encontrou, especialmente nos países europeus, uma trajetória que, no campo jurídico, significou uma valorização crescente da dignidade da pessoa humana como fim ético último do ordenamento jurídico estatal. Se, enquanto no Estado Absoluto, pouco valor se dava à pessoa humana, já se pode verificar a maior importância dada a esse valor no Estado Liberal de Direito, primeira forma do Estado de Direito, no qual se procurou a limitação do poder do Estado em detrimento do indivíduo, garantindo-se a esse a liberdade e um tratamento igualitário, ainda que formais, em uma visão de mundo essencialmente individualista, em razão da ideologia dominante burguesa, como apontam Dallari (2011) e Bonavides (1980). Nessa linha de ideias, Novais (2006) defende que no Estado Liberal de Direito, o centro do ordenamento estatal era a propriedade, contudo com a passagem para o Estado Social de Direito, passou a centrar o valor da dignidade da pessoa humana e os ditos direitos fundamentais desta.

Todavia, em que pese tal rumo no plano ideal, no plano concreto é possível se observar que a atuação do Estado de Direito, em qualquer uma de suas formas, se mostrou mais agressiva e menos clara, acompanhando um desenvolvimento do capitalismo, com uma tensão intrínseca entre regulação e emancipação, da qual saiu triunfante a regulação, como observa Santos (2000). Ademais, vê-se que muitas vezes as normas proferidas pelo Estado não produzem efeitos, sendo apenas simbólicas, tanto por falta de capacidade do Estado em executá-las, quanto até por interesse dissimulado dele nessa ineficácia – o que Neves (1994) aborda ao tratar da legislação simbólica.

A partir disso, e remetendo ao conceito de direito visto anteriormente, entendemos que o direito estatal, nas hipóteses em que é ineficaz, em verdade observa a atuação de outro direito paralelo a ele. Assim, por exemplo, se em determinada localidade uma norma da constituição produz poucos efeitos, isso significa que os agentes sociais não se conduzem todos a partir dela, de forma que devem necessariamente se conduzir por outra norma que não ela. Nesse sentido, cabe ao Estado buscar a eficiência das suas normas, especialmente com relação àquelas que guiam seus fins éticos últimos, quais sejam as que protegem a dignidade da pessoa humana e os demais direitos fundamentais.

Portanto, ao se avaliar o direito estatal em sua dimensão social, tem-se que ele compõe um campo maior de conflitos de poder, de forma que a letra da lei não significa eficiência, podendo os próprios agentes oficialmente encarregados de dar cumprimento à norma jurídica estatal, não o fazê-lo, dando abertura a outras normas, não oficiais, mais efetivas, enquanto frutos de um poder exercido. Nesse sentido, avançaremos sobre o dever-ser jurídico, exposto no tópico anterior deste artigo, com base em três aspectos, cada qual pautado em um autor específico, na seguinte ordem: 1) segundo Falbo (2002), como é a prática da aplicação do direito da criança e do adolescente, a partir do marco constitucional de 1988? 2) conforme Neves (1994), como é o fenômeno da ineficácia das normas à luz do conceito de legislação simbólica? 3) e, por fim, em que isso pode implicar no tratamento policial despendido às crianças e aos adolescentes, na esteira da ideia de seletividade penal, como pensada por Zaffaroni (1998)?

3.1. da situação irregular à proteção integral?

A legislação brasileira institui uma série de direitos voltados às crianças e aos adolescentes, abordando-os em sua generalidade. Tal tratamento jurídico é próprio do direito moderno, como bem aponta Santos (2000). Diz o citado autor que o direito moderno, estatizado, busca reproduzir a dinâmica característica da ciência moderna, ao procurar ser universal, genérico e abstrato, de forma que possa ser um aparato apto ao controle social realizado pelo Estado. Um problema em especial é o de que a realidade não é genérica, nem abstrata, nem universal, mas sim específica, concreta e pontual, do que se conclui que o tratamento do direito nos moldes da modernidade pode levar a um distanciamento excessivo entre as variadas expressões do ser e do dever-ser, ainda mais com a utilização de mecanismos simbólicos.

Nessa linha, Falbo (2002) aponta a dificuldade de delimitar “o sentido específico e o alcance genérico das expressões crianças e adolescentes e de seus direitos na lei positiva estatutária” (p. 54). Para tanto, percorre o autor a trajetória histórica desse ramo no direito brasileiro, apontando que antes do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e da Constituição Federal, de 1988, vigia o Código de Menores, cuja lógica era a da situação irregular, contraposta à proteção integral trazida pelo ECA e pela Constituição. Os chamados menores, isto é, os que tinham idade inferior à maioridade civil, eram assim identificados por estarem em alguma situação dita irregular, por exemplo, pelo cometimento de algum ato infracional ou por terem sido abandonados. Todavia, na prática deste código, verificou-se que os menores eram tão somente de grupos sociais menos abastados, os menores se limitavam à pobreza. De outro giro, os filhos e as filhas dos segmentos sociais mais ricos eram denominadas crianças, em outras palavras, eram referidos com termo de origem afetiva e não um termo propriamente jurídico, concretamente segregador, como é o termo menor. Essa diferença, por óbvio, refletia-se para além da legislação, tendo, por exemplo, uma vara especializada ao trato dos menores, enquanto as crianças eram tratadas na vara de família. Ainda, no Código de Menores, não se via praticamente qualquer direito concedido a tais indivíduos, servindo mais como se fosse uma reprodução do processo penal aos que não estavam submetidos a ele, por serem de idade inferior a maioridade legal.

Com a promulgação do ECA, e na esteira da proteção integral já anunciada na Constituição, esse quadro se modificou, ao menos em uma visão inicial. Com efeito, não se usa mais o termo menor, sendo todos aqueles com menos de doze anos tratados como crianças e, maiores de doze anos e menores de dezoito, como adolescentes – note-se nesse ínterim, como aponta Falbo (2002), que a generalização pautada nas faixas etárias é arbitrária, de forma que não se verifica um desenvolvimento biológico e psicológico que necessariamente siga a indicação desses marcos de idade. De qualquer modo, para além dessas problematizações quanto a generalidade, tem-se que, da comparação do próprio corpo do ECA com a prática cotidiana, ainda é possível se verificar elementos do Código de Menores.

Segundo diz Falbo (2002), a própria permissão do trabalho infantil – lembrando que o direito ao trabalho é um direito social –, destina-se basicamente aos segmentos sociais mais empobrecidos, coadunando com a distinção jurídica e social que o Código de Menores fazia e dando abertura a uma proteção mitigada aos “menores”, adolescentes trabalhadores, ainda que a generalização do Estatuto dissimule isto. Ora, o trabalho é um elemento associado ao mundo dos adultos, sendo que a partir do momento que uma criança ou um adolescente passa a trabalhar, socialmente, ou seja, à vista de outros agentes sociais, ela passaria a não ser vista mais plenamente como criança ou adolescente, mas sim parcialmente adulta e, por conseguinte, a proteção integral prevista na nossa legislação não se aplicaria em sua plenitude.

Entendemos que com o advento do ECA ocorreu um avanço na proteção das crianças e dos adolescentes, que não se observava no Código de Menores, mas não se pode ter uma visão maniqueísta neste ponto: como ponderado acima, mesmo no plano legislativo esta mudança não surtiu ainda em efeitos mais profundos, quanto mais no plano social. Desse modo, ainda que parcialmente e utilizando-se da conceituação proposta por Neves (1994), o ECA é uma legislação simbólica, no sentido de que não produz os efeitos a que se destina, conforme sua literalidade, mas sim serve a objetivo político, afinal, com a Constituição de 1988 e o próprio direito internacional dos direitos humanos, não havia mais sustentação política e social à normativa do Código de Menores no plano explícito, sendo ainda possível sua continuidade num plano implícito, dissimulado. Afinal, com a entrada em vigor do ECA, que fez no ano de 2015, vinte e cinco anos de vigência, era esperada uma alteração mais brusca da realidade social, especialmente no que toca aos mais pobres, o que parece que não ocorre, como será melhor estudado a frente ou que pode ser deduzido por um olhar minimamente atento ao se andar pelas ruas do Centro da Cidade do Rio de Janeiro.

3.2. A SELETIVIDADE PENAL NO ÂMBITO DOS ATOS INFRACIONAIS

Em que pese oficialmente não se aplicar a legislação penal e a processual penal aos menores de dezoito anos, não se pode crer que o fenômeno do sistema penal está limitado ao dizer da lei, mas, ao contrário, ele é expressão dos fatos. E, no caso dos “menores”, o modo como o Código dos Menores foi formulado trazia uma proximidade grande com o tratamento oficial do direito penal e processual penal, não tendo sido afastada essa proximidade toda de plano com o ECA ao abordar as infrações cometidas pelas crianças e pelos adolescentes. Ademais, como visto acima, devido a perpetuação, ainda que mitigada, da lógica do Código de Menores na prática cotidiana do tratamento a certos segmentos da sociedade, pode-se falar de verdadeiras aplicações de penas, mesmo que sob nomes diversos, como o de medidas socioeducativas.

Nesse sentido, Zaffaroni (1998), ao estudar o sistema penal, aponta que a legitimidade deve se pautar na razão e não na legalidade ou, em outras palavras, um sistema penal é legítimo somente quando as suas penas possuem uma razão de ser, não estão perdidas de um fundamento, o que não é verificado nos atuais sistemas penais. E acrescenta ainda que, ao menos na conjuntura latino-americana, nem pela legalidade estão mais buscando uma legitimação, posto que a própria lei frequentemente dá abertura a atuação do Estado e de agentes seus sem maiores respaldos legais, significando ampla margem de discricionariedade no exercício do poder e constituindo-se em um sistema em que a violência deste poder acaba por ser bem mais corriqueira e expressa e menos dissimulada do que ocorre, por exemplo, nos países ditos centrais. Diante esse quadro, há uma seletividade latente no exercício do poder punitivo que se dá por meio do sistema penal, até porque se todos fossem efetivamente punidos pelas condutas criminalizantes – considerando apenas as tipificadas, sem maiores considerações criminológicas –, a maioria, senão todos os indivíduos, seria punida por um ou mais crimes durante o decorrer da vida, nos dizeres do próprio autor.

Zaffaroni (1998), ao abordar a seletividade penal, entende que esta se dá principalmente pelo uso do estereótipo do criminoso, que pode variar no tempo e no espaço, geralmente se associando a critérios estéticos ou econômicos: “En América Latina el estereotipo siempre se nutre con los caracteres de hombres jóvenes de las clases más carenciadas (...)” (1998, p. 135). Tais imagens do criminoso são ilusões criadas para perpetuar a seletividade, mola propulsora dos sistemas penais. Ilusões, já que não condizem com a realidade, em duas medidas, ao nosso entender: primeira, como já dito, se todos ou quase todos cometem crimes, limitar a ideia de criminoso a alguns segmentos sociais é errôneo; segunda, se assim não o fosse, centralizar a imagem do crime a alguns segmentos também não condiziria a realidade, já que racionalmente nada indica porque um grupo social cometeria mais crimes do que os outros, salvo se exatamente as condutas criminalizadas fossem aquelas associadas mais a este ou aquele grupo.

Feitas essas considerações, temos que o dever-ser jurídico, do direito estatal, não condiz com o ser social, o que na linha teórica encontra vários autores destacando esta disparidade, dentre os quais somente apontamos alguns. No caso específico do direito das crianças e dos adolescentes, isso não difere, como apontou Falbo (2002), ao concluir que a diferenciação econômica entre pobres e ricos, formada no Código de Menores, ainda se perpetua no ECA, mesmo que em menor escala. E, seguindo o pensamento de Zaffaroni (1998), especialmente no tocante à seletividade penal, não seria de se estranhar que se verificasse uma seletividade nos atos infracionais, direcionada contra novamente os segmentos mais pobres, o que já pode ser visto em parte com os estudos do Falbo (2002) e será analisado melhor a seguir, a partir de dados estatísticos de 2015, fornecidos pelo Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ).

4. Apresentação dos dados estatísticos           

Com a finalidade de constatar o estudo feito acima, solicitamos ao Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro dados relativos ao número de crianças e de adolescentes apreendidos na Cidade, bem como a etnia identificada, o sexo, a idade informada, os atos infracionais supostamente praticados e as informações quanto à localidade onde possuem domicílio.

Nesta feita, a partir dos dados fornecidos, foram apreendidos na cidade do Rio de Janeiro 1.315 (um mil trezentos e quinze) adolescentes, sendo, para fins de estatística, separados dentre autuados e encaminhados. Em nota, o Instituto informa serem "autuados" os adolescentes encaminhados à delegacia por suspeita de ato infracional que assinou Nota de Pleno e Formal Conhecimento referente ao Ato de Apreensão de Adolescente por Prática de Ato Infracional lavrado na delegacia e “encaminhados” os adolescentes que, após serem autuados, foram encaminhados da delegacia ao Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE).

Posto isto, vejamos as tabelas referentes a cada um dos requisitos solicitados, destacando que no caso da tabela referente ao bairro de moradia (Tabela 4) e aos supostos atos inflacionais praticados (Tabela 5), limitamos a apresentação dos dados somente aos itens mais numerosos.

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3

4

Ademais, conforme tabela a seguir, extraída da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2009, organizada pelo IBGE, neste ano a cidade do Rio de Janeiro possuía 6.147.801 habitantes, sendo 3.797.833 de etnia branca, 567.018 de etnia preta e 1.760.444 de etnia parda correspondendo aos seguintes percentuais, respectiva e aproximadamente: 61,7%; 9,25%; 28,74%.

5. Conclusão

Com base nos dados colacionados no presente trabalho, bem como a partir dos marcos teóricos desenvolvidos, podemos observar, com clareza, a seletividade penal aventada.

Nesse sentido, tem-se que, em um plano de igualdade, não nos parece razoável que haja uma predominância no âmbito infracional em bairros mais carentes da cidade do Rio de Janeiro, observando, também, uma disparidade gritante nos apreendidos dentre as etnias parda e negra se comparado a proporção populacional destes jovens na formação étnica da urbe. Só para se dimensionar com maior precisão, com relação ao percentual, de habitantes pretos do Rio de Janeiro em 2009 e ao número de adolescentes pretos apreendidos em 2015, há um número quatro vezes maior destes em relação aqueles, em termos proporcionais, bem como um número 1,6 vezes maior de pardos referentes a essa mesma relação, enquanto o número de brancos é de um quinto menor. Ademais, é curiosa a preponderância de crimes de cunho econômico dentre os supostos atos infracionais identificados, crimes estes praticados geralmente por segmentos sociais mais empobrecidos, tais como roubo, furto, receptação e tráfico de drogas.

Conforme Zaffaroni (1998), há em nosso entender a formação de um estereótipo do criminoso, com base nesta imagem do jovem preto ou pardo, pobre e habitante da periferia, o que, inclusive, é corroborado pelo nosso próprio senso comum.

A partir desses três dados – grupos étnicos, domicílio dos apreendidos e espécies de crimes – e não podendo se olvidar de considerar o passado escravocrata, a continuidade dissimulada do racismo na estrutura social brasileira e o número elevado de negros e pardos nas faixas econômicas mais desfavorecidas, chegamos ao final desta pesquisa com a hipótese da seletividade penal, no âmbito dos atos infracionais, comprovada.


Notas e Referências:

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INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO. Dados estatísticos referentes ao Município do Rio de Janeiro, RJ, durante o período de Janeiro de 2015 a Novembro de 2015 fornecidos por e-mail pelo ISP-RJ no dia 13 de Janeiro de 2016, decorrente de requerimento realizado.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca de las penas perdidas: desligitimacion y dogmática penal. 2° ed. Buenos Aires: EDIAR, 1998, pp. 15-47; 121-187.


Gabriel Martins Cruz de Aguiar Pereira. Gabriel Martins Cruz de Aguiar Pereira é graduando em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é integrante da equipe RSFaria Advogados Associados. Pesquisador e estudioso nas áreas de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Sociologia Jurídica. . .


Tayane Caruso do Valle. Tayane Caruso do Valle é graduanda em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é integrante da equipe RSFaria Advogados Associados. Pesquisadora e estudiosa nas áreas de Direito Penal, Processo Penal e criminologia, envolvendo, sobretudo, Crianças e Adolescentes. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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