Da proporcionalidade da pena

16/01/2016

Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 16/01/2016

“A teoria crítica do delito tem como objetivo estabelecer limites dogmáticos ao poder punitivo. Esta é uma tarefa que corresponde à estrutura do Estado democrático de direito, que tem por base a proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos e da cidadania”.

(Juarez Tavares)

Para Ferrajoli o princípio da proporcionalidade - poena debet commensurari delicto – emana dos princípios de legalidade e de retributividade. Segundo Ferrajoli[1] a exigência de que a pena seja proporcional à gravidade do delito já tinha sido expressada por Platão, segundo o qual “não temos que distinguir entre o ladrão que rouba muito ou pouco, ou que rouba de lugares sagrados ou profanos, nem atendermos a tantas outras circunstâncias inteiramente dessemelhantes entre si, como se dão nos roubos que, sendo vários, exigem que o legislador se atenha a elas impondo castigos totalmente diferentes?Ferrajoli informa, ainda, que o princípio da proporcionalidade foi contemplado na Magna Carta de 1215 (itens 20 e 21) a qual se referia à “proporção entre pena e transgressão”.

Cesare Beccaria, em sua pequena grande obra “Dos Delitos e das Penas[2] (escrito em 1763 e publicado em 1764), referia-se à limitação do poder punitivo do Estado e a necessidade de humanizar as penas. Já no século XVIII sustentava a necessidade de haver uma proporção entre os delitos e as penas.[3] Deste modo, o castigo (a pena) deveria sempre guardar uma proporcionalidade com o mal (dano) causado pelo delito.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 estabelece que “A lei não deve estabelecer mais do que penas estritamente e evidentemente necessárias” (art. 8º)

Numa concepção garantista, Ferrajoli sustenta que a pena de prisão perpétua e as penas pecuniárias, em razão da natureza, são contrárias ao princípio da proporcionalidade e da igualdade das penas. A primeira porque é desumana e não graduável equitativamente pelo juiz. A segunda revela-se desproporcional por inexistir qualquer proibição penal informada pelo princípio de economia ou de necessidade. [4]

Embora sem fazer qualquer referência expressa ao princípio da proporcionalidade, de acordo com Boschi[5], este pode ser visto no Código Penal (art. 59) quando determina que na fixação da pena-base o juiz deve estabelecer conforme seja “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

Alguns autores, entre os quais Paulo Queiroz[6], referem-se ao princípio da proporcionalidade sob três aspectos: 1º) proporcionalidade abstrata (ou legislativa); 2º) proporcionalidade concreta ou judicial (ou individualização); e  3º) proporcionalidade executória. A proporcionalidade abstrata, de acordo com o citado autor, dar-se-á quando o legislador define as sanções (penas e medidas de segurança) mais apropriadas (seleção qualitativa) e quando estabelece a graduação (mínima e máxima) das penas cominadas aos crimes (seleção quantitativa). A proporcionalidade concreta (individualização judicial), como o nome já diz, é aquela feita pelo julgador no momento da aplicação da pena. Por fim, a proporcionalidade executória que ocorre durante o cumprimento da pena na fase da execução penal. Assim, conclui o autor que têm o princípio da proporcionalidade três destinatários: o legislador, o juiz e os responsáveis pela execução penal.

Em relação à proporcionalidade abstrata[7] é necessário destacar que o legislador não está livre ou desvinculado dos princípios limitadores do poder de punir, bem como dos princípios constitucionais e garantistas, para ao seu bel prazer estabelecer a pena que lhe convier. Quando da cominação da pena o legislador deve verificar e ponderar a relação entre a gravidade da ofensa ao bem jurídico e a pena que deverá ser imposta ao infrator. Como salientou Beccaria, não se pode punir do mesmo modo aquele que mata um homem e aquele que mata um faisão. Lembrando, ainda, que uma das consequências do princípio da lesividade é a proibição de incriminação de condutas que não afetam qualquer bem jurídico. Não pode, assevera Alberto Silva Franco[8], “o legislador penal determinar, de modo desproporcionado e desequilibrado, a medida da pena.” Assim sendo, no dizer de Juarez Tavares[9],o arbítrio do legislador em fixar limites de penas em completa desatenção ao dano social que as respectivas condutas acarretam, adotando critérios divergentes para fatos iguais e critérios mais rigorosos para fatos menos graves e vice-versa” deve ser limitado em face dos princípios da proporcionalidade e da necessidade da pena[10].

A primeira dificuldade decorrente da escolha feita pelo legislador, in abstracto, da pena em relação à gravidade do delito corresponde justamente à noção de “gravidade” do delito.[11], existindo, segundo Ferrajoli, duas orientações: uma “objetivista”, que mede a gravidade do delito e, consecutivamente, a da pena pelo dano causado; outra “subjetivista”, que mede pelo grau da culpabilidade. A despeito do sistema garantista (SG) abarcar ambos os princípios (ofensividade e culpabilidade) e de que na fixação dos limites da pena deva ser considerado tanto o dano como a culpa, o problema reside, segundo Ferrajoli, no peso que se atribui a cada um dos dois critérios em relação ao outro.[12]

Contudo, Ferrajoli assevera que a maior dificuldade se encontra na fixação dos limites máximo e mínimo da pena determináveis conforme os dois critérios mencionados. “Se a pena é quantificável, não é quantificável o delito”.

Em relação à pena mínima cominada, melhor seria se a lei não estabelecesse um mínimo legal[13] ou que a pena mínima prevista para cada tipo penal, por questão de segurança jurídica e para vincular o juiz, fosse cominada no menor grau possível (um ano, por exemplo) ou que ficasse determinado, expressamente, que o julgador atendendo a culpabilidade do agente pudesse fixar a pena abaixo do mínimo legal, independente do reconhecimento de causa de diminuição da pena ou de atenuante. O mínimo previsto em lei deveria ser acatado apenas como um norte, uma referência para o julgador, posto que em alguns casos a reprovabilidade decorrente da culpabilidade que se atribui à conduta do agente (considerando a ofensa ao bem jurídico) é inferior àquela atribuída, ainda que mínima, pela lei.

No que diz respeito à pena máxima cominada, Ferrajoli sustenta que esta, qualquer que seja o crime, não deveria ultrapassar dez anos. De acordo com Ferrajoliuma redução deste gênero suporia uma atenuação não só quantitativa, senão também qualitativa da pena, dado que a ideia de retornar à liberdade depois de um breve e não após um longo ou um interminável período tornaria sem dúvida mais tolerável e menos alienante a reclusão”. [14]

Segundo Roxin[15], a exigência de que a pena não pode ser em nenhum caso superior à culpabilidade do autor é reconhecida na Alemanha de forma absolutamente majoritária.  De acordo com o penalista alemão, uma pena que ultrapassa a medida da culpabilidade atenta contra a dignidade do homem.

Em relação à pena máxima cominada ao crime, já foi dito, deveria ser considerado pelo legislador o dano causado ao bem jurídico, bem como a natureza deste. Assim, abstratamente, as penas cominadas aos crimes contra o patrimônio jamais poderiam ser superiores às cominadas aos crimes contra a pessoa.

Outro grave problema apresentado pelo Código Penal brasileiro, em relação à cominação das penas, refere-se à proximidade dos limites entre a pena mínima e a máxima cominada, não deixando ao juiz margem para fixação da pena. No crime de extorsão mediante sequestro qualificado pelo resultado morte (art. 159, § 3º do CP), por exemplo, a pena cominada é de 24 a 30 anos de reclusão.

Assim, para atender ao princípio da proporcionalidade e corrigir as distorções apresentadas pela lei, deve o juiz quando da aplicação da pena, nos limites da discricionariedade vinculada, ter em mente que a pena jamais poderá ultrapassar os limites impostos pela culpabilidade, que hodiernamente atua como limitador do poder punitivo do Estado.

Por fim, não é despiciendo lembrar a advertência feita por Tobias Barreto de que: “Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.

 

Belo Horizonte, verão de 2016.


Notas e Referências:

[1] Ob.cit. p. 320.

[2] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[3] “Não só é interesse comum que não sejam cometidos delitos, mas também que eles sejam tanto mais raros quanto maior o mal que causam à sociedade. Portanto, devem ser mais fortes os obstáculos que afastam os homens dos delitos na medida em que estes são contrários ao bem comum e na medida dos impulsos que os levam a delinquir. Deve haver, pois, uma proporção entre os delitos e as penas.” (Beccaria, ob. cit. p. 50). Ao concluir sua obra, Beccaria afirma que “a grandeza das penas deve ser relativa ao estado da nação mesma. Mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobre os espíritos endurecidos de um povo apenas emergido do estado selvagem. É preciso o raio para abater um leão feroz que não se abala com o disparo do fuzil. Mas à medida que os espíritos se abrandam nos estados de sociedade, cresce a sensibilidade e, com ela, deve decrescer a força da pena, se houver que se manter constante a relação entre o objeto e a sensação. De quando se viu até agora pode tirar-se um teorema geral muito útil, mas pouco conforme ao uso, esse legislador ordinário das nações, a saber: para que cada pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, mínima possível nas circunstâncias dadas proporcional aos delitos e ditadas pela lei.” (Beccaria, ob. cit. p. 138-139).

[4] Ob. cit. p. 323.

[5] BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 72.

[6] QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36.

[7] Para Hassemer os limites do marco penal determinados legalmente nada têm a ver com o princípio da proporcionalidade. Estes limites, segundo ele, são contrários ao conceito de ressocialização. Não se dão em interesse do condenado, mas em interesse da comunidade. “Es en el marco penal y, especialmente em los limites mínimos de ese marco, donde se puede ver el valor que el legislador penal concede al bien jurídico.” (HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. Madrid: Bosch, 1984, p. 361).

[8] SILVA FRANCO, Alberto. A reforma da parte especial do Código Penal: propostas preliminares. RBCCrim n. 3, São Paulo, p. 73.

[9] TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, dez. 1992, (Edição especial de lançamento), p. 84.

[10] De acordo com Tavares “mais do que um critério adicional da culpabilidade, a exigência da necessidade da pena passou a ser, contudo, um princípio geral de Direito Penal, que obriga o legislador”. (Ob.cit. p.81). Juarez Tavares apresenta, ainda, vários exemplos nos códigos penais de inúmeras cominações que se afastam da relação de proporcionalidade que deve haver entre o crime e a pena.  (cf. ob. cit. P. 84).

[11] Ferrajoli, ob. cit., p. 321.

[12] Idem, ibidem.

[13] Neste sentido Ferrajoli, ob. cit., p. 321. Também Paulo Queiroz para quem “o grande compromisso do juiz garantista não é, portanto, com a pena mínima, mas com a pena justa”. Para Queiroz, se o juiz pode absolver o acusado, em razão da insignificância da ação, pode, também, aplicar pena aquém do mínimo legal. (Direito penal: parte geral.  ob. cit., p. 329). Na Alemanha (StGB), informa Jescheck, em muitos casos o legislador só determina o marco punitivo através da fixação de uma pena máxima, podendo o tribunal abaixar a mesma até o mínimo da classe de pena mencionada.  (Ob. cit., p. 940).

[14] Ferrajoli, ob. cit., p. 332.

[15] ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. y notas Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p 100. Ainda, de acordo com Roxin, “non hay objeción alguna contra una pena cuya cuantía se quede por debajo de la medida de la culpabilidad. Ciertamente, la pena no puede sobrepasar la medida de la culpabilidad, pero puede no alcanzarla siempre que eso lo permita su fin preventivo.” (Ob. cit. p. 100-101)


Sem título-1

. Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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