Da presunção de inocência à arbitrariedade do estado

20/07/2016

Por Ilana Santos do Amaral - 20/07/2016

Diante da presente realidade que enfrenta o povo brasileiro no que diz respeito ao alto índice de criminalidade e à impunidade no país, os magistrados têm tomado decisões um tanto severas no sentido de diminuir este índice de criminalidade e evitar a impunidade conforme clama a sociedade. Ao juiz cabe julgar segundo a lei preceitua, sob a observância dos direitos e garantias fundamentais, bem como dos princípios constitucionais. No entanto, a “sede” por justiça e a “cultura da punição” têm causado cegueira aos magistrados, uma vez que suas decisões têm se baseado em meras concepções intrínsecas e subjetivas destes, as quais violam a objetividade de julgamento, além de serem por vezes induzidas pelo clamor da sociedade, sem respeito ao que prevê a Constituição Federal, principalmente no que concerne aos princípios da presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Nos termos do artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988, dispõe que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”.

Mediante este princípio não se aplica a pena até que se esgotem todos os recursos cabíveis ao réu. O primordial é a proteção do inocente, sendo que é inaceitável que autoritariamente ou de forma impulsiva seja o cidadão punido ou considerado culpado sem antes ter exercido todos os direitos de recurso permitidos em lei. É importante lembrar que acima de todos os princípios, prevalece a dignidade da pessoa humana, portanto, faz-se mister ressaltar que a decisão inquisitória de um magistrado que executa a pena sem passar pelo crivo de todos os procedimentos necessários para tanto e dos elementos constitucionais, é simplesmente um abuso ou violência à dignidade do ser humano.

O in dubio pro reo decorre do princípio da presunção de inocência, uma vez que por meio da carga de prova é possível chegar à convicção de quem realmente é o culpado pelo delito alegado pela acusação. Ocorre que nem sempre a prova que fora produzida no processo é plena, a qual deixa dúvidas, omissões, não constituindo, assim, provas suficientes de autoria e materialidade do crime.

Em caso de dúvida, o juiz não pronunciará o réu, mediante a presunção de sua inocência. Diante disso, o juiz atuará em favor do réu, pois não havendo certeza quanto à sua culpabilidade, não será ele punido. A dúvida jamais poderá ser alvo de condenação, embora haja um insaciável anseio pela impunidade.

A impunidade e a morosidade do sistema jurídico processual brasileiro têm sido argumentos que tentam justificar a aplicação do direito sem a observância do princípio da presunção de inocência conforme entendimento de doutrinadores e magistrados, onde alegam que a quantidade de recursos até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória atrasam o sistema e permitem que criminosos fiquem livres, em vez de punidos, prejudicando a segurança da sociedade. Entretanto, não se soluciona um problema dando ensejo à ocorrência de outros os quais violam os direitos e garantias fundamentais.

Em contrapartida, o in dubio pro societate, “na dúvida, decide-se em favor da sociedade”, é defendido pela maioria dos doutrinadores e jurisprudência, no entanto, não está expressa na Constituição Federal de 1988. Assim, não se admite que magistrado decida a vida de um ser humano em favor de outrem sem considerar os seus respectivos direitos. Sob a ótica constitucional, é incabível a aplicação de tal “princípio”, uma vez que viola os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Nele se extingue o contraditório e ampla defesa, permitindo que o réu vá a júri popular, submetendo-o consequentemente a um constrangimento em público, situação esta que pode se agravar ao permitir que a sociedade o veja como “delinquente”, sendo que o mesmo ainda não usufruiu de todos os recursos para provar sua inocência, ou seja, a sociedade poderá estar condenando um cidadão inocente contrariando o que preconiza o Direito que é a justiça, a qual muitas vezes se torna utopia pregada nos tribunais.

Em outras palavras, não se deve permitir que a falha de atuação do Ministério Público em sua acusação leve o inocente a um lugar que não o pertence, mas sim, à liberdade. Por este princípio (in dubio pro societate) prevalece o interesse da coletividade, e, como não procede de lei; se trata apenas de meros atos impostos por inquisidores desprovidos de consciência racional jurídica e de saber equilibrado e não o que de fato consiste a concretude de justiça nas decisões, que levam à balança jurídica “pesos” referentes à vida de um ser humano.

Diante disso, é inadmissível que em um Estado Democrático de Direito haja entendimento jurisprudencial e leis que se apliquem de modo arbitrário ao executar a prisão antes de transitada em julgado a sentença, ou até mesmo seja condenado o acusado sem carga probatória suficiente que comprove de fato a materialidade e autoria do crime, apenas com o fim de punir com base em meros fundamentos como a impunidade ou gravidade do crime, os quais não procedem em vista das graves consequências que possibilitam tal punição, tal qual a condenação de um inocente, sem respeitar os direitos assegurados na Carta Maior.

Quanto ao limite para a aplicação das penas de prisões cautelares? Qual será a posição dos juízes perante situações de execução da pena? Prevalecerá o sistema inquisitório? E quanto ao princípio da presunção de inocência?

Uma vez que o Estado tem o poder-dever de punir, o processo penal é norteado por princípios constitucionais que limitam a função jurisdicional do Estado, de modo que ninguém sofrerá sanção injusta ou desproporcional, nem mesmo quando incumbe ao indivíduo punição por crime grave e hediondo. Tais são os direitos e princípios: contraditório e ampla defesa, garantia da imparcialidade do juiz ao executar a pena, princípio da proporcionalidade, a liberdade individual, o devido processo legal, entre outros.

É sabido que nenhum princípio é absoluto, assim, o direito à liberdade é limitado; no entanto, para que este seja restringido, é preciso que sejam cumpridos os requisitos legais para tanto, isto é, a existência de indícios suficientes para comprovação de autoria do delito e materialidade do crime; e não apenas isto, mas também que sejam respeitados os direitos e garantias constitucionais.

Havendo dúvida ou insuficiência de provas da existência e autoria do crime, pelo principio do in dubio pro reo, será necessário que sejam tomadas todas as medidas permitidas em lei para esclarecer os fatos, e posteriormente, formar o convencimento do juiz quanto à existência do crime cometido e o autor da infração penal; e a partir disso, aplicar a medida punitiva, se cabível.

Quanto a isto, cabe ressaltar que a presunção de inocência faz limitar o poder do Estado de punir, pois não permite que o acusado seja condenado à prisão sem que seja considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença. A liberdade individual não é absoluta, porém, não se admite o abuso de poder de punir do Estado, pois este não deve ser inquisitório e violador dos direitos e garantias constitucionais, mas sim garantidor destes; pois uma vez violados os direitos e afastada a limitação do poder de punir, o Estado se torna autoritário e não aplicador da Democracia.

Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal está acima de todas as demais instâncias do Poder Judiciário, que tem como principal competência, a guarda da Constituição Federal, conforme o art. 102, caput, da CF/88. Assim, cabe à Corte Suprema impedir que quaisquer interpretações ou leis violem a Carta Maior, bem como seus princípios e garantias nesta resguardados. Posto isso, apesar da evidente supremacia do STF, e os extraordinários ministros que o compõem, quaisquer de suas decisões devem se sobrepor à magnitude da Constituição Federal.

Ocorre que, a decisão do Supremo Tribunal Federal em julgamento do HC 126.292 (ocorrido no dia 17 de fevereiro de 2016) deu ensejo à nova jurisprudência com interpretação diversa ao princípio da presunção de inocência, princípio este consagrado na Constituição.

Houve, portanto, redução do princípio da presunção de inocência, uma vez que permitiu a execução da pena de prisão em segunda instância sem antes transitar em julgado a sentença, além de não ser cabível a análise do mérito no sentido de impor interpretação diversa da Constituição Federal infringindo os princípios e direitos nesta previstos, que em consonância disto, viola também os princípios ampla defesa e o contraditório, o que remete a atividade jurídica a um sistema inquisitório e a um Estado arbitrário. Princípios estes, norteadores do ordenamento jurídico brasileiro, que, sem os quais, não há o devido processo legal. Punir nem sempre é justiça, e o autoritarismo característico do sistema inquisitório pode pôr vidas inocentes em cárceres; além disso, isto permite a parcialidade do magistrado, e seus ânimos alterados e o anseio por justiça o cegam, e uma vez ser humano, está sujeito a falhar.

Não é fundamento para a execução da pena o clamor público ou a gravidade do crime, senão os fundamentos e requisitos expressos em lei com a devida fundamentação jurídica para a aplicação das prisões e medidas cautelares, prisões estas que se não executadas como medida excepcional possibilita uma série de consequências irremediáveis, tal qual o aumento de encarceramento sem eficácia, que ao olhar humano parece ser “o fim para a impunidade”, no entanto, não impede que mais delitos sejam cometidos e assim também não contribui para a promoção da paz social. Vale ressaltar que esses fundamentos e requisitos se resumem na guarda dos direitos e garantias, assim como o respeito à dignidade da pessoa humana.

Como se não bastasse, o Projeto de Lei do Senado 402/15 altera o Código de Processo Penal que prevê pena de prisão antes do trânsito em julgado em casos de crimes graves como regra e não como medida excepcional, ou seja, será condenado à prisão após acórdão condenatório de segunda instância de jurisdição, mesmo que sujeito a recurso, projeto este defendido por juízes federais que alegam ser um passo para a concretude da justiça.

É a vida de um inocente que está em jogo, que se aplicada pena privativa de liberdade por meros motivos, que justiça haverá? Além disso, é possível destacar a superlotação em presídios como uma das consequências da execução da pena em segunda instância. As prescrições poderão ser menos frequentes com a redução de recursos nos tribunais superiores, o que significa um “alívio” para o poder judiciário que não será o principal “responsável” pela impunidade, por outro lado, impõe ao acusado, ainda não considerado culpado, um peso que não lhe é cabível ou suportável.

Portanto, o princípio da presunção de inocência é garantia constitucional que não pode ser reduzida diante de sua imprescindibilidade para a efetiva cidadania e preservação da dignidade humana. Sem sua aplicação no processo penal, dá margem a inúmeras injustiças e permite o retrocesso do sistema jurídico penal brasileiro, e a arbitrariedade da penalização. Este princípio, acima de tudo, protege o inocente, que não pode pagar por algo que não o culpa e não o torna responsável, e uma vez relativizado por decisões ou jurisprudências e leis, possibilita a execução de inocentes devido às inúmeras falhas do sistema executório existente no país, que, aliás, não são poucas.

Finalmente, a prioridade é garantir que os direitos assegurados na Constituição Federal sejam efetivos, pois a dignidade uma vez perdida, ninguém pode resgatá-la. A prisão precipitada afeta a imagem e todo o trajeto de vida de uma pessoa. Causa um dano irreparável. E quem vai se responsabilizar? O Estado? A sociedade? Como? Contudo, as respostas para tais questionamentos são vagas e imprecisas, pois são materialistas, e estas não fazem jus à extensão da perda sofrida pelo “culpado” que se tornou vítima da arbitrariedade e autoritarismo do sistema jurisdicional do país.


Ilana Santos do Amaral. . Ilana Santos do Amaral é Graduada em Direito na Universidade Luterana de Santarém-PA.. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Le policiers ont repoussé les personnes bloquées dans bellecour. // Foto de: Sylvain SZEWCZYK // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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