DA NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE RENDA LÍCITA NO TRÁFICO DE DROGAS PRIVILEGIADO: uma proposta legislativa

11/12/2019

Depois de mais de dez anos atuando na esfera criminal e de refletir sobre a Lei Federal n.º 11.343/2006, atual norma que disciplina a política nacional sobre drogas e que traz os tipos penais respectivos, ponderamos sobre a possibilidade de elaboração de projeto de lei para mudança de alguns pontos altamente relevantes do texto legal.

Conquanto seja claro que o encarceramento pelos tipos penais envolvendo drogas ilícitas aumentou nos últimos anos, a análise rasa dos números pode proporcionar entendimento enviesado e não totalmente verdadeiro sobre o que se tem na prática forense.

Segundo dados do banco de monitoramento de prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1], em agosto de 2019 o Brasil possuía aproximadamente 812 mil presos, sendo que quase um quarto desse número decorre de acusações de violação da “Lei de Drogas”.

Informações do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[2] indicam que no ano de 2018, dos mais de 346 mil processos recebidos pela Corte Cidadã, aproximadamente 23% foram referentes ao crime de tráfico de drogas e condutas afins.

Na 8ª Promotoria de Justiça de Ponta Grossa/PR, na qual atuamos desde março de 2016, com atribuição perante a 1ª Vara Criminal, entre 01/01/2018 e 01/09/2019, das 584 denúncias oferecidas, 80 foram pelo crime de tráfico de drogas, o que representa 13,69% das exordiais acusatórias protocolizadas no citado período (dados oficiais do sistema PROMP).

Contudo, apesar de o encarceramento indicar que a Lei vem sendo aplicada, há razões preponderantes para tal realidade: a ausência de freios inibitórios, a reiteração delitiva e a não intimidação dos traficantes com a primeira condenação. A prática demonstra que esse viés é o principal responsável pelo inchaço dos presídios com condenados por tráfico de drogas. E por que motivo isso se dá?

Embora o Direito Processual Penal tenha por escopo sempre buscar a verdade, a realidade do processo, pautada em provas, pode ser consideravelmente diferente da verdade fática. O traficante primário, preso aos vinte e poucos anos de vida, muitas vezes faz do tráfico seu meio de obtenção de renda desde início da vida adulta ou até da adolescência, sendo “herdeiro” de uma tradição de traficância e que vê na passagem criminal um mero dissabor, que não o fará deixar de retornar ao contexto criminal, inclusive durante o próprio andamento processual, quando é beneficiado com a liberdade provisória.

A questão é de política criminal, é de violação de direitos fundamentais, é de crise  sistematizada em todos os níveis de proteção da dignidade humana, sendo a criminalidade o sintoma mais visível de uma sociedade doentia e que, consequentemente, precisa recuperar-se.

E, nesse cenário, o Poder Judiciário é um dos principais atores. No caso do tráfico de drogas, essa assertiva é estonteante e facilmente perceptível com alguns exemplos.

A Lei nº 11.343/2006, em seu artigo 44, caput, prevê que: “Os crimes previstos nos artigos 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”.

Em que pese o texto do dispositivo legal, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de repercussão geral, e o STJ, entenderam que é possível conceder a liberdade provisória nos crimes de tráfico de drogas. A questão da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos para esse delito, contrariando a norma expressa, também decorreu de decisão da Corte Suprema, que no Habeas Corpus (HC) 97.256 declarou incidentalmente a parcial inconstitucionalidade do §4º, do artigo 33, e do artigo 44, da “Lei de Drogas”, permitindo o benefício aos condenados pelo crime, desde que presentes os requisitos do artigo 44, do Código Penal.

Ademais, o pleno do STF, no julgamento do HC 118.533/MS, bem como do STJ, em sede de recurso repetitivo (Pet 11.796/DF), entenderam recentemente que o tráfico de drogas privilegiado[3] perde a característica da hediondez, ainda que o artigo o artigo 2º, da Lei n.º 8.072/90, não excepcione esta situação.

Tais medidas permitem que o traficante seja colocado em liberdade com bastante facilidade, bem como que penas baixas sejam fixadas, em que pese a gravidade do crime, considerado pela própria Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XLIII, como equiparado a hediondo, sem nenhuma exceção.

Destaca-se que a incidência da minorante em questão em grau máximo, sobre pena mínima de 5 anos, implica na fixação de uma pena de reclusão definitiva de 1 ano e 8 meses, podendo ser cumprida em regime aberto e ainda ser substituída por duas penas restritivas de direito ou mesmo ser concedida a suspensão condicional da pena.

A questão é que a minorante do artigo 33,  §4º, da Lei de Drogas, que já inspirou  tantos projetos de lei e centenas de críticas doutrinárias, gera tamanha movimentação   das cabeças juridicamente pensantes porque é um dispositivo lacunoso e que deixa margem para interpretações variadas pelos julgadores, dificultando a tentativa de se chegar à segurança jurídica e igualdade de tratamento entre sentenciados em idêntica situação. Ademais, a redação atual do dispositivo coloca traficantes esporádicos, que efetivamente cometem o “tráfico privilegiado”, e pessoas que fazem do tráfico meio de vida no mesmo patamar, beneficiando indevidamente, com penas baixíssimas, muitos “funcionários” de organizações criminosas estruturadas de intensa atuação nesse ramo delitivo e claro poderio de destruição social.

Referido parágrafo prevê a diminuição como um direito subjetivo do denunciado que seja primário, ostente bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas e nem integre organizarão criminosa. O STJ, esclarecendo o texto legal, firmou o entendimento de que tais requisitos precisam estar presentes de forma cumulada (HC 510.077/SP).

Todavia, afora a primariedade e os antecedentes criminais, que ficam registrados em bancos de dados, sendo facilmente verificáveis pelos Juízos de Direito, a necessidade de demonstração de dedicação às atividades criminosas e/ou composição de organizações criminosas confere margem para subjetivismos. Afinal, se responde pelo crime de tráfico de drogas é justamente porque está inserido na criminalidade, está inserido em atividades criminosas. Ocorre que isso gera um paradoxo, trazendo dúvidas na aplicação do §4º, já que quando se pode dizer que há dedicação às atividades delituosas? Ser pego em flagrante e confessar traficar há menos de mês, é dedicação ao crime ou apenas um período de cometimento eventual de um crime grave (tido como crime permanente pela doutrina)?

Odon Ramos Maranhão[4] define a ação criminosa como sendo “[…] a soma de tendências criminais de um indivíduo com sua situação global, dividida pelo acervo de suas resistências”. Por sua vez, Enrico Ferri[5] propõe uma classificação de criminosos, identificando-os em cinco “tipos”: nato, louco, ocasional, passional e habitual, sendo este último aquele que faz do crime seu meio de vida.

Deveras, a "mens legis da causa de diminuição de pena seria alcançar os condenados neófitos na infausta prática delituosa, configurada pela pequena quantidade de droga apreendida, e serem eles possuidores dos requisitos necessários estabelecidos no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06" (STJ. AgRg no REsp n. 1.389.632/RS, Rel. Ministro Moura Ribeiro, 5ª T., DJe 14/4/2014).

Assim, pelas circunstâncias do caso concreto os Juízos identificam aquelas que não se compatibilizam com as de um pequeno traficante, ou de quem não se dedica, com certa frequência e anterioridade, às atividades criminosas, inclusive outros crimes de tráfico de drogas. Implica dizer: a minorante deveria ser aplicada apenas aos traficantes “de primeira viagem”, que cometeram o crime por um deslize, um desacerto momentâneo na vida, e que fazem jus à concessão da benesse como incentivo para não voltarem a delinquir.

Contudo, na prática processual, o que se se vê é o contrário: a aplicação desarrazoada e impensada da minorante, pautada, talvez, na tentativa de reduzir o encarceramento, que é um problema gravíssimo no país, mas por via transversa. Na verdade, esse pensamento apenas engenha um ciclo vicioso de recolocação do traficante na rua, para onde voltará imediatamente a comercializar drogas, sem que nenhuma lição efetiva tenha sido tirada do processo. Vale dizer, uma das finalidades de Direito Penal, a prevenção geral, no sentido de assegurar a fidelidade da população às normas vigentes[6], não vem sendo atingida para o tráfico de drogas.

Destarte, sem ferir o direito constitucional à individualização da pena, retirando por completo uma causa de diminuição a que criminosos ocasionais realmente fazem jus, tem-se a necessidade de se criar critérios que possam ser concretamente exigidos e provados pelos réus para receberem um benefício de redução de pena.

Por isso, pensamos numa sutil alteração redacional do parágrafo 4o, do artigo 33, da lei em tela, para se exigir mais um requisito, ora em negrito:

Art. 33 [...]

§4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, comprove fonte de renda lícita, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Entende-se que comprovar a licitude do dinheiro encontrado na posse do suposto traficante é um requisito importante para demonstrar que ele não faz do tráfico de drogas seu meio de obtenção de renda, de forma habitual.

Logicamente que a constatação de renda lícita por si só não significa que o indivíduo faz jus à minorante, sendo necessária a sua cumulação com todos os requisitos do §4º já existentes.

Em suma, pensa-se que tal mudança de redação no texto legal implicará em substancial alteração nos julgamentos criminais, agora tendo-se como exceção a incidência do privilégio da diminuição considerável da pena ao traficante, e não a regra, como lamentavelmente vem ocorrendo.

 

Notas e Referências

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción de la 2.ª edición alemana por Diego-Manuel Luzón Pena et al. Barcelona/Madrid: Civitas, 1997. t.1.

SUMARIVA, Paulo. Criminologia: teoria e prática. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017.

[1]              Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml>. Acesso em: 05 nov. 2019.

[2]              Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Publicacao-traz-entendimentos-atualizados-do-STJ-sobre-a-Lei-de-Drogas.aspx>. Acesso em: 05 nov. 2019.

[3]              Para criminosos eventuais, ocasionais, beneficiados com a redução de pena do parágrafo 4o, do artigo 33, objeto desta sugestão de projeto legislativo.

[4]          Apud, SUMARIVA, Paulo. Criminologia: teoria e prática. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017, p. 146.

[5]             Apud, SUMARIVA, Paulo. Idem.

[6]              Cf. Claus Roxin. Derecho penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción de la 2.ª edición alemana por Diego-Manuel Luzón Pena et al. Barcelona/Madrid: Civitas, 1997. t.1, p. 92.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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