DA NECESSÁRIA REAFIRMAÇÃO DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA: O PROBLEMA DA ESCOLHA DOS REITORES NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS    

15/10/2020

Em decisão monocrática proferida no início deste mês de outubro o Ministro do STF, Edson Fachin, Relator da ADI 6565, votou pelo deferimento parcial de medida cautelar, para a finalidade de que, com lastro no art. 207, “caput”, CF/88, fossem observadas as seguintes diretrizes normativas pelo Presidente da República em seu ato de nomeação de Reitores e vice-Reitores universitários: “(I) se ater aos nomes que figurem na respectiva lista tríplice; (II) respeitar integralmente o procedimento e a forma da organização da lista pela instituição universitária; e (III) recaia sobre o docente indicado em primeiro lugar na lista.”

A ação foi ajuizada pelo Partido Verde, com a participação, na condição de “amicus curiae”, de diversas entidades de representação setorial de interessados na proteção da educação nacional, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) e a Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (PROIFES FEDERAÇÃO). Seu objeto é a declaração de inconstitucionalidade (ou intepretação constitucional adequada) da Lei nº nº. 9.192, de 21 de dezembro de 1995, que alterou a redação do art.16, da Lei nº. 5.540/1968, que passou a viger com a seguinte dicção expressa:

Art. 16. A nomeação de Reitores e Vice-Reitores de universidades, e de Diretores e Vice-Diretores de unidades universitárias e de estabelecimentos isolados de ensino superior obedecerá ao seguinte:

I - o Reitor e o Vice-Reitor de universidade federal serão nomeados pelo Presidente da República e escolhidos entre professores dos dois níveis mais elevados da carreira ou que possuam título de doutor, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo, ou outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim, sendo a votação uninominal;

Tal previsão, já sob o pálio democratizante da CF/88, manteve um ranço de autoritarismo que vigia sob o regime político ditatorial no país, sem se atentar às normas constitucionais específicas atinentes à gestão democrática e à autonomia administrativa das universidades públicas. Referida legislação, então, não efetivou a Constituição de forma a lhe conferir a maior eficácia possível e, desde pronto, mantendo as determinações que havia durante a ditadura cívico-militar, já representava maneira indevida de regulamentar a norma do art. 207, “caput”, CF/88.

Caso confirmada tal cautelar, da forma como está, tratar-se-ia de um resguardo do regime jurídico que até então era observado no Brasil sobre o tema, à luz da legislação infraconstitucional aplicável. Acontece que não se pode descurar da necessária reafirmação constante não apenas da força normativa da Constituição e do regime político democrático como também, especificamente, da eficácia das normas constitucionais de gestão democrática do ensino e da autonomia administrativa das universidades públicas. E, infelizmente, deve-se constatar: a autonomia universitária está sob ataque e encontra-se em perigo no Brasil.

 

O PROBLEMA DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA ADMINISTRSATIVA NO BRASIL

Prevista no art. 207, “caput”, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), somente se pode cogitar de autonomia universitária administrativa, no Brasil, quando se releva o regime jurídico democrático (art. 1º, “caput” e parágrafo primeiro, CF/88) e, especialmente, o princípio setorial específico e expresso da gestão democrática do ensino público (art. 206, VI, CF/88).

Tal conjuntura já implica a conclusão parcial de que, em primeiro lugar, a garantia constitucional fundamental de autogoverno institucional das universidades públicas deve ser interpretada no sentido de que seja sempre garantida a maior eficácia possível às decisões internas de cada universidade quando da escolha de seu quadro de dirigentes, inclusive Reitores e, em segundo lugar, que se deve conferir a máxima carga de eficácia possível à norma constitucional sistemática que determina que tal autogoverno seja promovido de forma democrática.

Este foi, inclusive, o compromisso que o Brasil assumiu durante a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), reunida em Paris, de 21 de outubro a 12 de novembro de 1997, na sua 29° sessão, quando, por consenso, os cerca de 180 Estados membros aprovaram a "Recomendação Relativa à Condição do Pessoal Docente do Ensino Superior", na qual os artigos 17 a 21 são dedicados à questão da autonomia dos estabelecimentos. Ali, todos, inclusive o Brasil, decidiram, entre outras coisas, que "cabe aos Estados membros proteger a autonomia dos estabelecimentos de ensino superior contra qualquer ameaça, de onde quer que venha", inclusive para que fosse resguardada a liberdade necessária “para que esses estabelecimentos possam tomar decisões eficazes no que diz respeito às suas actividades académicas, às suas regras de funcionamento, à sua gestão e outras actividades conexas.” [1]

No ano seguinte, durante a Conferência Mundial sobre Educação Superior (UNESCO), realizada em Paris, de 05 a 09 de outubro de 1998, os Estados membros da UNESCO, inclusive o Brasil, aprovaram, a "Declaração Mundial Sobre a Educação Superior no Século XX: Visão e Ação"[2], na qual decidiram que os estabelecimentos de ensino superior deverão, dentre outras coisas “desfrutar de liberdade acadêmica e autonomia plenas”.

Tal conjunto normativo demonstra que se deve entender que a tônica de criar um regime jurídico democrático profundo e eficaz guiou a positivação das normas constitucionais atuais e que tal espírito deve também servir de permanente pano de fundo para o intérprete da Constituição brasileira. Não permitir que práticas autoritárias sejam perpetradas novamente no país não é apenas dever cívico de cada brasileiro, mas também dever jurídico de quem pratica hermenêutica do direito, precipuamente do direito constitucional.

Acontece que o Presidente da República eleito em 2018, Jair Bolsonaro, quebra reiteradamente uma longa tradição de eficácia do regime democrático brasileiro, quando deixa de nomear o candidato mais votado constante das listas a ele encaminhadas pelas universidades após eleições realizadas em seus âmbitos internos. Em agosto de 2020, já havia onze nomeações para Reitores que não os mais votados, sendo que, em seis destas ocasiões, o nomeado pelo Presidente da República sequer constava da lista a ele encaminhada pela universidade ou pelo instituto federal de educação[3]. Em setembro, quase 40% das nomeações realizadas pelo Presidente da República desconsideraram as eleições realizadas pelas instituições[4].

 

REAFIRMANDO A AUTONOMIA ADMINISTATIVA DAS UNIVERSIDADES

A autonomia administrativa das universidades públicas, que decorre diretamente deste regime político democrático e que é pautada por princípio constitucional setorial específico de gestão democrática do ensino (art. 206, VI, CF/88), deve ser sempre interpretada de forma a se retirar das normas constitucionais a máxima eficácia possível em cada conjuntura histórica em que se desenvolvem as relações sociopolíticas no país.

O modelo de um sistema legal de nomeação de Reitores e vice-Reitores, pelo Presidente da República, a partir de eleições internas às instituições e formação de lista tríplice encaminhada ao Poder Executivo, é originado diretamente de reformas universitárias do período ditatorial brasileiro e somente pode ser admitido, sob as normas da CF/88, caso observado estritamente o resultado das referidas eleições.

De qualquer modo, a única intepretação que realizaria de forma ótima a eficácia constitucional das normas atinentes à autonomia administrativa universitária seria o abandono do modelo atualmente observado, realizando-se o regime democrático de forma plena, em sua máxima eficácia constitucional, para que Reitores e vice-Reitores das universidades públicas fossem eleitos e nomeados diretamente por cada instituição de ensino superior, sem participação alguma de poderes ou órgãos externos às próprias universidades públicas. Essa proposta, que já é objeto de 9 projetos de Lei na Câmara dos Deputados e 1 projeto no Senado Federal, portanto, é a única que permite a realização da autonomia administrativa das universidades à luz do regime político democrático brasileiro e sua reafirmação contemporânea.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em http://www.cpihts.com/PDF02/Recomendacao%20UNESCO.pdf Acesso em 12/10/2020

[2]Disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-a-Educa%C3%A7%C3%A3o/declaracao-mundial-sobre-educacao-superior-no-seculo-xxi-visao-e-acao.html Acesso em 12/10/2020

[3] Disponível em: https://andesufrgs.org.br/2020/08/24/governo-bolsonaro-ja-interveio-em-pelo-menos-dez-nomeacoes-de-reitores/, acesso em: 10/10/2020.

[4] Disponível em : https://www.metropoles.com/brasil/bolsonaro-desconsiderou-1o-colocado-para-reitoria-de-38-das-universidades, acesso em: 10/10/2020.

 

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