Coluna Defensoria Pública e Sistema de Justiça / Coordenadores Gina Bezerra, Jorge Bheron e Eduardo Januário
A Defensoria Pública da União e dos Estados, desde a sua previsão constitucional originária e inaugural, vem gradativamente evoluindo suas funções institucionais para fazer jus as cada vez mais complexas e intrincadas demandas de massa, como expressão de instrumento do regime democrático.
Para reequilibrar os pesos da balança de uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, necessita-se de instrumentais suficientes para que o cidadão possa ter vez e voz de forma qualificada, tanto judicial quanto extrajudicialmente. Daí a importância das previsões contidas nos artigos 5º, LXXIV e 134 da Constituição Federal, qualificando o Órgão de Defesa dos vulneráveis como responsável pela missão de promover os direitos humanos através da assistência integral e gratuita.
Com efeito, de nada serviria o ordenamento jurídico prever um órgão do quilate da Defensoria Pública com suas múltiplas atribuições se não fornecesse os instrumentais necessários para que a instituição possa realizar seu desiderato de modo efetivo e concreto.
Neste sentido, destaca-se que uma das facetas modernas do acesso à Justiça revela-se no acesso coletivo ao direito. O Estado deve garantir aos vulneráveis modelos legais que garantam o acesso coletivo à Justiça, sendo espécie do mesmo a salvaguarda à probidade administrativa. Consoante defende pacificamente a doutrina brasileira sobre o tema, a probidade ou direito coletivo do cidadão à moralidade administrativa pode ser viabilizado judicialmente por meio de Ação Civil Pública. Em suma, a Ação Civil Pública seria gênero e a Ação de Improbidade Administrativa espécie.
Em análise circunscrita à defesa da probidade administrativa, costuma-se apontar um microssistema específico de tutela jurídica composto pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7347/1985), Lei de Improbidade Administrativa (lei 8429/1992) e a Lei da Ação Popular (Lei 4717/1965). No mesmo sentido, Patrícia Kettermann e Felipe Kirchner lecionam que “a Lei 8.429/1992 não deve ser interpretada isoladamente, posto que componente do microssistema de tutelas coletivas do nosso país. (...). Assim, devido à conexão sistemática entre a Lei 7.347/1985 e Lei 8.429/1992, a ação civil pública é o instrumento adequado para a repressão dos atos de improbidade administrativa”.
Este introito é basilar para que se enfrente o tema enfoque deste estudo. Teria a Defensoria Pública legitimidade para ingressar com ações de improbidade administrativa por atos lesivos ao Patrimônio Público e à Moralidade Administrativa?
Embora exista corrente doutrinária e jurisprudencial no sentido negativo, em razão de falta de previsão expressa na lei 8429/92, esse entendimento há muito não se sustenta.
Destaque-se que a legislação há muito aponta por meio da Lei 7347/1985 e a Lei Complementar Federal 080/1994, em seu artigo 4º, VII, a legitimidade da Defensoria para ingressar com Ação Civil Pública, sendo reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, vide ADI 3943[[i]]. e que tais diplomas integram um microssistema de defesa da probidade administrativa. Por todas, a decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 510150[[ii]]. E exatamente pelo fato de compor um microssistema jurídico de tutela coletiva, a LIA deve ser aplicada de modo conjugado à LACP, bem como o entendimento de que ações coletivas são gênero da qual a Ação de Improbidade, repita-se, é espécie.
Para além de tais tipificações, é interessante extrair da própria Lei Orgânica da Defensoria Pública o potencial concretizador de garantias fundamentais, e reconhecendo o legislador a incapacidade de prever em um único diploma normativo e todos os tipos de ações possíveis para salvaguardar tais garantias, adotou em diversas oportunidades no texto legal cláusulas abertas com róis exemplificativos quanto às funções institucionais, deixando a cargo do intérprete manejar todo e qualquer tipo de ação judicial ou extrajudicial que se revele, no caso concreto, a mais apta a resguardar os direitos e interesses do seu assistido, na busca da concretização do mandamento constitucional de acesso integral à Justiça.
Como ensina Erik Palácio Boson, “o fundamento maior da legitimidade da Defensoria Pública na atuação na proteção à moralidade administrativa é justamente a otimização de eficiência dos recursos disponíveis, no sentido do potencial que a pluralidade de agentes legitimados para essa ação tem na melhoria das condições de vida dos necessitados”.
Conforme leciona Carlos Eduardo Rios do Amaral [[iii]], tais cláusulas legais - sempre intencionalmente, de modo aberto e exemplificativo - “não deixam nenhuma dúvida a respeito da vontade do legislador de convidar os necessitados, através da Defensoria Pública, para a proteção e fiscalização dos princípios gerais norteadores da Administração Pública garantidores, em última análise, da probidade administrativa”.
Também Edilson Santana Filho ensina sobre a necessária legitimação da Defensoria Pública como representante dos vulneráveis: “a lei de improbidade administrativa tutela os direitos transindividuais à moralidade, sendo o processo neste caso, meio de controle jurisdicional de atos extremamente passíveis de agravar as desigualdades sociais, motivo pelo qual podemos afirmar que a atuação da Defensoria Pública na proteção da moralidade encontra-se ligada a seu fim, qual seja a defesa dos necessitados”.
Como já defendido em artigo anterior, “[...] a referida Lei Orgânica Nacional 080/1994, em seu artigo 97 é expressa ao mencionar que dita “normas gerais de seguimento pelas legislações das Defensorias Públicas Estaduais”. E neste normativo mínimo se encontra as denominadas funções institucionais que devem ser exercidas por seus membros e membras”.
Com efeito, embasado nos ensinamentos de Franklyn Roger e Diogo Esteves, pode-se afirmar que as normas de seguimento obrigatório, em especial no tocante às funções institucionais, são numerus apertus, representando um conteúdo mínimo, podendo as leis estaduais inovarem em atribuições no exercício da denominada competência concorrente suplementar pelos Estados membros, desde que não transborde ou transgrida da missão constitucional e institucional da Defensoria Pública. Exatamente nessa linha dispõe o artigo 108 da referida lei, sendo até recomendável que as legislações estaduais possam prever inovadoras formas de atuação ou funções institucionais que representem um novo olhar para o cidadão vulnerável, inspiradas diretamente na missão humanizadora e emancipatória prevista na Constituição Federal.
Assim, a indagação persiste. Seria válido afirmar que existe no Brasil acesso integral à Justiça, se o órgão incumbido de promover tal acesso supostamente estaria impedido de exercê-lo coletivamente em prol de grande parte da população quanto ao direito à probidade ou moralidade administrativas?
Seguindo exatamente na direção de maximização de direitos, o Estado do Pará, em boa hora, alterou a legislação institucional do órgão de Defesa dos vulneráveis, dotando-o de novos instrumentos de atuação.
A Defensoria Pública do Estado do Pará, através da Lei Complementar Estadual 054, de 07 de Fevereiro de 2006, alterada pela Lei Complementar 135/21, traz em seu bojo legitimidade expressa para ingressar com ação de improbidade administrativa ao prever exatamente a possibilidade de atuar na defesa dos bens jurídicos tutelados pela Lei Federal 8429/1992, a saber:
Art. 6º: São funções institucionais da Defensoria Pública do Estado do Pará, dentre outras:
XXII - Realizar a Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa, de forma a promover a tutela individual e coletiva dos vulneráveis, sempre que repercutir na promoção dos direitos humanos e for necessária a proteção dos necessitados, nos termos das Leis Federais e Constituição Federal, conforme Resolução do Conselho Superior.
Conclui-se, pois, que este novo caderno legislativo paraense de notável viés progressista disponibiliza expressamente ao cidadão residente no Estado do Pará importante mecanismo de atuação individual ou coletiva na busca da preservação do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa, fortalecendo o elo entre a população vulnerável e o Estado-Defensor, na defesa dos interesses e do zelo com a coisa pública.
Notas e Referências
[i] Ação Direta De Inconstitucionalidade. Legitimidade Ativa Da Defensoria Pública Para Ajuizar Ação Civil Pública (Art. 5º, Inc. II, Da Lei N. 7.347/1985, Alterado Pelo Art. 2º Da Lei N. 11.448/2007) (...). Ausência De Prejuízo Institucional Do Ministério Público Pelo Reconhecimento Da Legitimidade Da Defensoria Pública. Ação Julgada Improcedente. Adi 3943. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 07/05/2015.
[ii] ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. 1. A probidade administrativa é consectário da moralidade administrativa, anseio popular e, a fortiori, difuso. [...] 4. Considerando o cânone de que a todo direito corresponde uma ação que o assegura, é lícito que o interesse difuso à probidade administrativa seja veiculado por meio da ação civil pública [...].8. A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se [...].10. Recurso especial desprovido. (Resp 510.150/MA, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/02/2004).
[iii] Disponível em: https://oab-ma.jusbrasil.com.br/noticias/2045245/defensoria-tem-legitimidade-para-a-acao-de-improbidade. Acesso em: 3 jan. 2021.
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