Da in (constitucionalidade) do art. 305 do CTB: Decisão do STF afronta a Constituição  

24/11/2018

 

A Lei 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro) em seu art. 305 dispõe:

 

Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir da responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: penas – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, ou multa.”

 

O STF (Supremo Tribunal Federal), por 7 votos a 4, na última quarta-feira (14), ao declarar a constitucionalidade do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro, feriu a um só tempo, pelo menos, três princípios constitucionais: 1) princípio da não autoincriminação (autodefesa); 2) princípio da lesividade; e 3) princípio da presunção de inocência.

 

1) Princípio ou garantia da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere, nemo tenetur ipsum accusare ou nemo tenetur se ipsum prodere): inerente à ampla defesa (autodefesa) e a presunção de inocência, significa que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo e se auto incriminar. Trata-se de direito do suspeito, do investigado, do indiciado ou do acusado de não autoincriminação.

 

É certo que o direito ao silêncio e o princípio da não autoincriminação é bem mais amplo do que sua forma literal. Neste sentido, Paulo Queiroz, para quem o referido princípio compreende:

 

1) o direito ao silêncio, preso ou solto o investigado (CF, art. 5°, LXIII; CPP, art. 186, parágrafo único2), podendo, inclusive, responder a certas perguntas e não responder a outras, silêncio que não pode ser interpretado em seu desfavor, nem implica confissão; 2) a necessidade de ser previamente informado dessa garantia; 3) privilégio de não prestar juramento ou compromisso de dizer a verdade; 4) o direito de se recusar a entregar documentos e de praticar qualquer comportamento ativo que o incrimine (fornecer material grafotécnico etc.); 5) a recusa de participar de reconhecimento, acareação ou reprodução simulada dos fatos; 6) o direito de ser dispensado do interrogatório (CPP, art. 457, §2°, final); 7) a vedação de perguntas capciosas ou em tom de ameaça que induzam o indivíduo à confissão ou delação; 8) o direito de não se submeter ao teste de alcoolemia (exame do bafômetro) nos delitos de trânsito; 9) a possibilidade de invocação do princípio perante qualquer juízo ou autoridade pública, cível ou criminal, policial ou parlamentar; 10) a não caracterização dos delitos de falso testemunho, desobediência ou desacato, quando no exercício estrito do privilégio; 11) a disponibilidade da garantia pelo colaborador na forma do art. 4°, §14, da Lei n° 12.850/20133; 12) a ilegalidade de toda prisão fundada na recusa de colaborar com a investigação; 13) apesar do direito ao silêncio, o investigado ou acusado tem o dever de se identificar pelos meios legais, revelando nome e apelidos etc.; 14) a legalidade das provas não invasivas, isto é, que não ofendam a integridade física do suspeito ou que não dependam de ação do indivíduo, com ou sem sua anuência, a exemplo de inspeções ou verificações corporais e coleta de material orgânico por ele descartado (v.g., sêmen contido em camisa de vênus, saliva em copos, cigarros etc.).[1]

 

 

Para o ministro Gilmar Mendes - primeiro a divergir do relator (Luiz Fux) no sentido do desprovimento do recurso - o STF já assentou que o direito de permanecer calado, previsto na Constituição, deve ser interpretado de modo amplo, e não literal. A Corte já afirmou que viola tal direito a obrigação de fornecimento de padrões grafotécnicos, de participação em reconstituição de crime e de submissão ao exame de alcoolemia, disse. “Não calha aqui o argumento de que, permanecendo em silêncio, não estaria a produzir prova contra si. A comprovação da conduta criminosa pressupõe a configuração de autoria e de materialidade, e a permanência do imputado no local do crime inquestionavelmente contribui para a comprovação da autoria, assentando o seu envolvimento com o fato em análise potencialmente criminoso”. [2]

 

Ao se referir a “vedação da autoincriminação como garantia estruturante de um sistema punitivista democrático”, Thiago Bottino observa que:

 

Se é verdade que todos os cidadãos têm a obrigação legal de colaborar com a justiça durante uma investigação de natureza penal (caso mintam, omitam ou se calem serão processados e eventualmente punidos por falso testemunho), é igualmente verdade que isso não se aplica ao réu. Este réu (ou acusado, indiciado, investigado ou qualquer pessoa que se veja em situação de ter que revelar um crime durante um depoimento) é o único de quem não se pode esperara colaboração com a acusação.[3]

 

 

2) princípio da lesividade:

 

De acordo com o princípio da lesividade (nullum crimen sine injuria) também chamado de princípio da ofensividade[4] só podem ser considerados como crimes aqueles comportamentos que lesam ou ofendam bem jurídico alheio público ou particular. Pelo referido princípio à conduta interna e, portanto, que não se exterioriza lesionando direitos de outras pessoas devem se situar fora do âmbito do direito penal, ainda que seja “pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente - falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal”. [5]

 

O princípio da lesividade, como bem observou Ferrajoli

 

equivale a um princípio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário e, com isso, para reforçar sua legitimidade e credibilidade. Se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de toda relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos reparáveis e à de ilícito administrativo todas as violações de normas administrativas, os fatos que lesionam bens não essenciais, ou os que são, só em abstrato, presumidamente perigosos, evitando, assim, a ‘fraude de etiquetas’, consistente em qualificar como ‘administrativas’ sanções restritivas da liberdade pessoal que são substancialmente penais. [6]

 

 

O princípio da lesividade compreende quatro funções: a) proibir a incriminação de uma atitude interna; b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais e d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afete qualquer bem jurídico. [7]


Para o relator do RE, ministro Luiz Fux que votou pelo desprovimento do recurso e, consequentemente, pela constitucionalidade do artigo 305 do CTB, o tipo penal previsto no dispositivo tem como bem jurídico tutelado a “administração da Justiça”, que, a seu ver, fica prejudicada pela fuga do agente do local do evento, pois essa atitude impede sua identificação e a apuração do ilícito na esfera penal e civil.[8]

 

É de natureza duvidosa, para dizer o mínimo, que o bem jurídico tutelado pelo dispositivo em comento seja, conforme muitos entendem, a “administração da justiça”.

 

A epígrafe “crimes contra a administração da justiça” é nova no direito brasileiro, segundo informa Fragoso, “onde penetrou por influência da legislação italiana”. Os códigos anteriores classificavam os crimes contra a administração da justiça em capítulos diversos, somente posteriormente, como no código Rocco, reuniu fatos puníveis que se relacionavam a mesma objetividade jurídica.[9]

 

Diferentemente de outros crimes contra a administração da justiça previstos no Código Penal, o crime do art. 305 do CTB não se caracteriza por lesão ou perigo concreto de lesão ao pretenso bem jurídico tutelado. Note-se, por exemplo, que a suposta “responsabilidade civil” se situa, tão somente, no campo da hipótese, já que dependeria do particular a propositura de ação correspondente.

 

Apenas a título exemplificativo, verifica-se, em vários crimes contra a administração da justiça – previsto no Código Penal – que a ação do agente causa, concretamente, um dano a atuação da justiça na consecução dos seus fins. É o que fica evidenciado nos crimes previstos nos artigos: 339 (denunciação caluniosa); 342 (falso testemunho); 344 (coação no curso do processo); 347 (fraude processual) etc.

 

A proteção ao bem jurídico não pode se sobrepor ao direito de qualquer pessoa não produzir provas contra si mesmo ou de se auto incriminar. Caso contrário o acusado – em sentido amplo – deveria sempre colaborar com a “administração da justiça” o que tornaria letra morta o princípio e a garantia da não autoincriminação.

 

3) Presunção de inocência:

 

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagra em seu texto o direito à liberdade (artigo 5°, caput, da CR/88). Direito esse que transcende a própria realidade humana.

 

A Constituição da República proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII CRFB).

 

Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito à sua dignidade, aos direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma, pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.

 

Hodiernamente, o processo penal é voltado, principalmente, para a garantia e realização dos direitos fundamentais e que tem como objeto a limitação do poder punitivo estatal. O processo penal acusatório - único compatível com a democracia - deve ser balizado e interpretado conforme a Constituição da República.

 

Assim sendo, é inconcebível exigir do suspeito, do investigado, do indiciado ou do acusado que produza prova contra si mesmo ou se auto incrimine. O acusado – presumido inocente – não deve em hipótese alguma ser tratado, conforme dito, como meio ou instrumento, ainda que seja para uma suposta realização da justiça.

 

Conclusão:

 

Por tudo que foi dito, lamenta-se que na decisão tomada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no que diz respeito a constitucionalidade do art. 305 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), uma vez mais tenha se motivado pela perversa lógica de que “os fins justificado os meios”, em nome de um fantasmagórico combate a criminalidade.

É necessário que a sociedade compreenda, definitivamente, goste ou não, que a Constituição da República e os princípios nela insculpidos não podem se transformar em peças decorativas ou em letra morta. Caso contrário, mais honesto seria queimar a Constituição em praça pública.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em:< http://www.pauloqueiroz.net/principio-da-nao-autoincriminacao/ Acesso em 19/11/2018.

[2] Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=395716 Acesso em 19/11/2018.

[3] AMARAL, Thiago Bottino do. Direito ao silêncio na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 33.

[4] QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: introdução critica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 36.

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 91.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 383-384).

[7] BATISTA, Nilo. Introdução crítica...ob. cit. p. 92-94.

[8] Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=395716 Acesso em 19/11/2018.

[9] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Volume II. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 495.

 

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