Da (In) Constitucionalidade da Execução Provisória da Pena e a violação à presunção de inocência e coisa julgada. A implementação do Estado de Exceção no Processo Penal

10/04/2018

No tocante a garantia do estado de inocência, é salutar asseverar que a Constituição de 1988 assegura entre os direitos e garantias individuais que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”[1].

Em verdade, não é despiciendo observar que o dispositivo constitucional não utilizou da expressão de “presunção de inocência”, que representa a fórmula tradicional do princípio. Deu-se preferência à fórmula da consideração da não culpabilidade. Sendo certo que em virtude dessa diversidade terminológica, o preceito constitucional passou a ser denominado “presunção de não culpabilidade”.

Em relação a não diferenciação entre presunção de inocência e presunção de culpabilidade, Badaró aduz que:

“Não há diferença de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade. As expressões “inocente” e “não culpável” constituem somente variantes semânticas de um idêntico conteúdo. É inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas”[2]

No tocante ao conteúdo da presunção de inocência, é possível distinguir três significados: (i) garantia política; (ii) regra de tratamento do acusado; (iii) regra probatória.

A primeira, e talvez a mais importante forma de analisar tal princípio, é como garantia política do cidadão.

Nesse sentido, advoga a melhor doutrina que:

“O processo, e em particular o processo penal, é um microcosmos no qual se refletem a cultura da sociedade e a organização do sistema político. Não se pode imaginar um Estado de Direito que não adote um processo penal acusatório e, como seu consectário necessário, o in dubio pro reo. A presunção de não culpabilidade é um fundamento sistemático e estrutural do processo acusatório. O princípio da presunção de inocência é reconhecido, atualmente, como componente basilar de um modelo processual penal que queira ser respeitador da dignidade e dos direitos essenciais da pessoa humana. Há um valor eminentemente ideológico na presunção de inocência. Liga-se, pois, à própria finalidade do processo penal: um processo necessário para a verificação jurisdicional da ocorrência de um delito e sua autoria[3]”.

Em outros termos, pode-se compreender que a presunção de inocência assegura a todo e qualquer cidadão um prévio estado de inocência, que somente pode ser afastado se houver prova plena do cometimento de um delito. A presunção de inocência, é segundo Pisani, “uma presunção política que garante a liberdade do acusado diante do interesse coletivo à repressão penal[4].

Entretanto, o dispositivo constitucional não se encerra neste sentido político, de garantia de um estado de inocência. A presunção de inocência também pode ser vista sob uma ótica técnico-jurídica, como regra de julgamento a ser utilizada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo. Para a imposição de uma sentença penal condenatória é necessário provar, além de qualquer dúvida razoável, a culpa do acusado. Nesta acepção, presunção de inocência confunde-se com o in dubio pro reo[5].

Em último lugar, mas não menos importante, tem-se a presunção de inocência funcionando como regra de tratamento do acusado ao longo do processo, não permitindo que ele seja equiparado ao culpado. É manifestação clara deste último sentido da presunção de inocência a vedação de prisões processuais automáticas ou obrigatórias.

Outra repercussão da presunção de inocência, como regra de tratamento do acusado, é a impossibilidade de execução provisória ou antecipada da pena[6].

A impossibilidade de aplicação da execução provisória da pena ou antecipada de forma prejudicial ao acusado no processo penal, é decorrente do julgamento do Habeas Corpus nº 84.078, em 2009, pelo Supremo Tribunal Federal[7], que entendeu que a presunção de inocência se aplicava até que houvesse uma condenação transitada em julgado, o que, na prática, impedia a execução provisória da pena, enquanto pendesse qualquer recurso.

Entretanto, o STF em julgamento realizado no dia 17.02.2016, alterou o seu entendimento. Na supracitada data, o Plenário da Suprema Corte, por 7 votos a 4, ao julgar o Habeas Corpus nº 126.292/SP[8], considerou que seria possível dar início da execução da pena condenatória após confirmação da sentença em segundo grau. Isto porque, segundo se entendeu, a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerraria a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autorizaria o início da execução da pena, mesmo que pendentes de julgamento recursos especiais e extraordinários.

Ao que tudo indica, a decisão mostra-se equivocada, por restringir indevidamente a garantia constitucional do art.5º, caput, LVII, que estabelece como marco final da presunção de inocência o “trânsito em julgado da sentença penal condenatória” e não “até a confirmação da sentença em segundo grau”.

Nesse mesmo sentido, se manifesta Badaró[9].

Em sentido semelhante, argumenta Pacelli que:“No julgamento do HC 126292, porém o Supremo Tribunal Federal modificou radicalmente a sua posição sobre o princípio da não culpabilidade, permitindo a execução provisória da condenação já após a decisão do Tribunal de Segundo Grau. A decisão, como se vê, desconsidera a exigência do trânsito em julgado, dando-lhe significado diverso daquele constante da legislação brasileira em vigor, que trata da questão como a decisão da qual não caiba mais recurso.

(...)

A menos que se modifique a Constituição, como assim queria a conhecida proposta de Emenda Constitucional designada por Emenda Peluso, não vemos como alterar o conceito de trânsito em julgado, a não ser por essa via (constitucional)()[10]”.

Desta forma, é salutar destacar que a posição adotada pelo STF a partir de 2016 mostra-se equivocada, eis que sequer a legislação brasileira em vigor contempla a possibilidade de recurso após o trânsito em julgado, como ocorre, por exemplo, em Portugal, com o recurso extraordinário de lá. Em terras brasileiras, entende-se trânsito em julgado como a tradução da decisão a salvo de recursos, mesmo aqueles em via extraordinária.

É mister asseverar que muito antes da mudança do entendimento do Supremo, a Lei nº 12.403/11, dando nova redação ao art.283, do CPP, prevê que toda prisão, antes do trânsito em julgado, deve se amparar em fundamentação cautelar. Isto é, a lei brasileira veda expressamente a execução provisória.

É justamente nesse cenário dantesco que se descreveu o julgamento do Habeas Corpus do ex-Presidente Lula.

Pois bem.

O princípio da presunção de inocência pode ser encontrado na Digesta, em latim: “Ei incumbit probatio, qui dicit, non qui negat”.

O princípio do Estado de Inocência, também conhecido como Presunção de Inocência, ou Presunção da não culpabilidade é consagrado por diversos diplomas internacionais e foi positivado no Direito Brasileiro com a Constituição de 1988.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em seu artigo XI, 1, dispõe: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”[11].

A Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 8º, 2, diz: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”[12].

A Constituição Federal, a seu turno, dita que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, artigo 5º, LVII, sem grifos). Para alguns, tal dispositivo consagra a presunção de inocência. Para outros, a presunção de não culpabilidade. Nomes a parte, o texto constitucional é claro ao dispor que sem trânsito em julgado não há culpa, conforme disposto anteriormente.

Já no plano legal, o artigo 283 do Código de Processo Penal prevê que “ninguém poderá ser preso senão em virtude de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Não se trata de dispositivo inovador. A atual redação do artigo 283 do CPP foi aprovada em 2011. O anteprojeto que lhe deu origem foi subscrito, ainda em 2001, por ninguém menos que Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Sacarance Fernandes, Petrônio Calmon Filho, Miguel Reale Jr., Luiz Flávio Gomes, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rogério Lauria Tucci e Sidney Beneti. Na Exposição de Motivos, consta o seguinte trecho:

“O projeto sistematiza e atualiza o tratamento da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória, com ou sem fiança. Busca, assim, superar as distorções produzidas no Código de Processo Penal com as reformas que, rompendo com a estrutura originária, desfiguraram o sistema (...) Nessa linha, as principais alterações com a reforma projetada são (...) d) impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar”.

Assim, lei e Constituição eram — e ainda são— harmônicas. Somente há culpa, e portanto, prisão como execução de pena, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, com o fim do processo, após o julgamento de todos os recursos. Chega-se a isso com a interpretação literal, com a interpretação histórica e com a interpretação sistemática.

Por isso, antes do julgamento definitivo, é possível restringir direitos do réu diante de tumulto processual (destruição de provas, aliciamento de testemunhas), da reiteração de condutas delitivas, ou de indício concreto de possibilidade de fuga. Fora disso, ele é inocente — ou não culpado — e como tal deveria ser tratado.

Ora, alegar que os réus utilizam de muitos recursos é violar frontalmente o princípio da inafastabilidade do Poder Jurisdicional, contraditório e ampla defesa.

Isto porque, se os recursos estão previstos em lei, devem ser usados. Se não o forem, o advogado infringe seus deveres profissionais por assistir de forma inepta ao seu cliente. Além do mais, a mesma legislação prevê filtros para o exagero recursal, como a necessidade de demonstrar a repercussão geral do recurso extraordinário e a possibilidade de decisão monocrática no recurso especial quando a tese já esteja sedimentada em sentido contrário ao pretendido.

Porém, ainda que se insista que existem recursos demais, esse é um problema da lei. Poderia o legislador inclusive restringir as hipóteses de recursos especiais e extraordinários, ampliar seus requisitos, dificultar sua interposição, como propôs o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, em anteprojeto de emenda constitucional. Assim, o processo terminaria mais cedo e seria possível executar a pena sobre culpados, sobre decisões transitadas em julgado.

No entanto, não houve alteração legal. A Suprema Corte — maxima venia— atribuiu-se o papel de legislador.

Portanto, Supremo deixe “desse seu mal sentimento. Você é a mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”.

Como não se pode aceitar essa esquizofrenia judicial, é salutar citar advertência de Eros Grau ao julgar o HC nº 84.078-7/MG ao tratar de igual modo da execução provisória da pena perante este mesmo Tribunal Constitucional:

“A prevalecer o entendimento que só se pode executar a pena após o trânsito em julgado das decisões do RE e do Resp, consagrar-se-á, em definitivo, a impunidade. Isso — eis o fecho de outro argumento — porque os advogados usam e abusam de recursos e de reiterados Habeas Corpus, ora pedindo a liberdade, ora a nulidade da ação penal. Ora — digo eu agora — a prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! Não recuso significação ao argumento, mas ele não será relevante, no plano normativo, anteriormente a uma possível reforma processual, evidentemente adequada ao que dispuser a Constituição. Antes disso, se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes...”.

Pode-se concluir no sentido que ao se permitir a constitucionalidade da execução provisória da pena, mesmo que pendente de julgamento de recursos extraordinários, se estaria violando a presunção de inocência, coisa julgada e dignidade da pessoa humana, enquanto princípios republicanos regentes de um Estado de Direito.

Em verdade, isso nada mais é do que o reflexo da implementação do Estado de Exceção[13], em que a regra passa a ser a violação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão em uma Democracia.

Em tempos de combate à criminalidade organizada, com banalizações de delações premiadas e penas negociadas, o processo penal assume uma marcha célere, passa a ser lavado a jato[14], caracterizado por um desejo punitivo cada vez mais voltado pela busca do mito da “verdade real” a todo custo, sem observar as restrições e limites legais e constitucionais. 

 

Notas e Referências:

[1] Artigo 5º, LVII, da Constituição Federal.

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 3ª ed, ver. Atual e amp: São Paulo, RT. P.56.

[3] Ibidem.. P.57.

[4] PISANI, Mario. Sulla presunzione di non colpevolezza. Il Foro Penale, n.1-2, p.1-5, gen/giul, 1965.

[5] Nesse sentido: GOMES FILHO. Presunção de Inocência. P.39. Luiz Flávio Gomes. Presunção de violência. P.107. Ainda segundo Gomes Filho(op.cit, p.40) outra repercussão probatória da presunção de inocência, que é “a impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar com as investigações dos fatos”.

[6] Todavia, não se desconhece que se tornou praxe a denominada execução penal provisória, inclusive com disciplina normativa de expedição de guias de execução provisória. A possibilidade de tal “execução provisória” acabou sendo reconhecida e sumula pelo Supremo. A súmula 716 estabelece que: “Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”. Trata-se, contudo, de hipóteses que poderiam ser chamadas de “execução penal provisória” pro reo ou “em favor do acusado”.

[7] HC 84078, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048.

[8] STF; HC 126.292, rel. Min. Teori Zavascki, Pleno. Julgado em 17.02.2016.

[9] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 4ª ed, ver. Atual e amp: São Paulo, RT. P.61.

[10] PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal. 20ª edição, revista, atualizada e ampliada. Atlas. P.48-49.

[11] Artigo XI.1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

[12] Artigo 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

[13] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Politi. São Paulo: Boitempo, 2004. P.10 e ss. Para o autor: “A instauração, por meio de estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos” (op.cit, p.13).

[14] JUNIOR, Aury Lopes; ROSA, Alexandre Morais da. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato. Disponível em:

https://www.conjur.com.br/2015-jul-24/limite-penal-delacao-premiada-direito-penal-tambem-lavado-jato

[1] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Politi. São Paulo: Boitempo, 2004.

[2] Artigo 5º, LVII, da Constituição Federal.

[3] Artigo XI.1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 3ª ed, ver. Atual e amp: São Paulo.

[5] GOMES FILHO. Presunção de Inocência.

[6] GOMES, Luiz Flávio.. Presunção de violência.

[7] HC 84078, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048

[8] JUNIOR, Aury Lopes; ROSA, Alexandre Morais da. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jul-24/limite-penal-delacao-premiada-direito-penal-tambem-lavado-jato.

[9] PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal. 20ª edição, revista, atualizada e ampliada. Atlas.

[10] PISANI, Mario. Sulla presunzione di non colpevolezza. Il Foro Penale.

[11] STF; HC 126.292, rel. Min. Teori Zavascki, Pleno. Julgado em 17.02.2016.

 

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