Em um Estado Democrático de Direito impossível seria não reconhecer como garantia primordial o respeito as garantias fundamentais.
Nesta seara destaca-se o princípio da fragmentariedade, segundo o qual cabe ao Direito Penal tutelar apenas aquelas condutas que atinjam os bens jurídicos mais relevantes.
Para Roxin:
“A função do direito penal é a proteção de bens jurídicos indispensáveis ao funcionamento da sociedade”[1].
Desta forma, caberia somente ao Direito Penal tratar daquelas ações ou omissões que causassem lesões ou provocassem perigo de lesões aos bens jurídicos tidos por mais importantes ou relevantes.
Nesse sentido destacam-se os crimes fiscais consagrados na Lei 8.137/1990.
É de se destacar que o presente não busca criticar a tutela pelo Direito Penal dos crimes fiscais, mas sim, criticar o posicionamento adotado pelos Egrégios Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal ao reconhecer como requisito apto para caracterizar o branqueamento de capitais indícios de qualquer infração penal antecedente, por aplicar-se o disposto no Art.1 da Lei 9613/98 que exige apenas indícios de qualquer infração penal antecedente.
Sem demais delongas frisa-se que o delito de lavagem de dinheiro deve resguardar relação com a infração penal antecedente,
Ademais esse é o entendimento de duas Convenções Internacionais, as quais o Brasil é signatário. São elas: Convenção de Viena e Convenção de Palermo.
Aduz Perpaolo Bottini que:
“Diversos tratados e convenções foram assinados, com recomendações de estratégias para o combate e prevenção à lavagem de dinheiro, como a Convenção de Viena (1988), de Palermo (2000) e Mérida (2003), dentre outras”[2].
Prevê a Convenção de Viena de 1988 no seu Art. 3º. 10 que:
“Para os fins da cooperação entre as partes prevista na presente convenção, em particular a cooperação prevista nos artigos 5, 6, 7 e 9, os delitos tipificados em conformidade com o presente artigo não se considerarão como delitos fiscais ou como delitos políticos nem como delitos politicamente motivados, sem prejuízo das limitações constitucionais e dos princípios fundamentais de direito interno das partes”.
Em sentido diverso caminha o nosso legislador, ao passo que, atualmente para ele qualquer infração penal antecedente poderia em regra configurar o delito de branqueamento de capitais, inclusive os crimes fiscais.
Prevê o Art.1º da Lei 9613/98:
“Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
Aduz Marcelo Mendroni que:
“Os dispositivos que tipificam a prática de crimes fiscais têm sempre como configuração de seu elemento subjetivo as condutas de suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório. A intenção do agente, depois de obter licitamente os recursos é de sonegar o tributo, e não de ocultar ou dissimular a origem dos valores”[3].
Vide o previsto nos Arts.1º e 2º da Lei 8.137/1990 (que tutela os crimes tributários, econômicos e crimes contra a relação de consumo).
Advoga Aliomar Baleeiro que:
“Em verdade antes e depois da lei 9.613/98, o correto é concluir que, estando comprovado o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, seguir-se-á à apreensão ou o sequestro dos bens, fruto da infração. E é absolutamente incabível a exigência de tributos sobre bens, valores ou direitos que se confiscaram, retornando às vítimas ou à administração pública lesada. Pois o tributo, não é sanção de ato ilícito, repousa exatamente na presunção de riqueza, em fato signo presuntivo de renda, capital ou patrimônio.
Imposto poderá incidir sobre a ostentação de riqueza ou o crescimento patrimonial incompatíveis com a renda declarada, no pressuposto de ter havido anterior omissão de receita. Receita, em tese, de origem lícita, porém nunca comprovadamente criminosa. Não seria ético, conhecendo o Estado, a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinquente e dele cobrando uma quota, a título de tributo. Portanto, põem-se alternativas excludentes, ou a origem dos recursos é lícita, cobrando-se em consequência o tributo devido e sonegado, por meio de execução fiscal, ou é ilícita, sendo cabível o perdimento de bens e recursos, fruto da infração”[4].
Para Giorgio Tesoro:
“O pressuposto de fato, isto é, a causa jurídica de uma obrigação tributária, não pode ser em nenhum caso constituída por um fato ilícito – civil, administrativo ou penal – a cargo do sujeito passivo da obrigação; quando de um fato ilícito surge a obrigação de fazer, uma obrigação pecuniária, essa terá caráter de sanção, não de tributo; corresponde à pretensão punitiva do Estado, não sua atividade financeira”[5].
E ainda Ives Gandra Martins:
“Não pode o Estado ser imoral, aético, co-criminoso, beneficiário irresponsável do fruto do crime, incentivador de homicídios, roubos, assassinatos, pela sua co-participação no butim do crime de forma a estabelecer como que uma sociedade entre o criminoso, que pratica o crime, e o Estado que dele se co-beneficia”[6].
Interessante ponderação faz Mendroni, segundo o qual:
“Os valores ilícitos, ou de proveniência (procedência) ilícita, devem (necessariamente) ter origem criminosa. Os crimes fiscais se configuram não porque o dinheiro advém da prática de algum crime, mas porque o agente, tendo dinheiro oriundo de sua atividade produtiva, legal – portanto, após ter o dever legal de cumprir alguma obrigação fiscal -, omite-se ou não a realiza nos termos legais. Então o valor sonegado não é proveniente, nem direta e nem indiretamente, de infração penal. Ao contrário, os valores, nessa hipótese, são de procedência lícita, e a falta ou errônea atividade fiscal praticada por parte da pessoa obrigada é que pode ensejar a configuração da infração penal, que, aliás, pode, em geral, na atual sistemática jurídica vigente no Brasil, ser desconfigurada com o cumprimento da obrigação antes do recebimento da denúncia criminal. Se o dinheiro (ou bem ou valor) tem origem lícita – e não suja, não passa a ser sujo – não se altera a sua origem, de limpa para suja, pelo fato de não ter realizado alguma obrigação fiscal. A origem continua a ser limpa, já que não é proveniente de prática de algum crime”[7].
Ante o exposto, conclui-se pela impossibilidade dos crimes fiscais como precedentes ao delito de lavagem de dinheiro, uma vez que nos primeiros há a intenção e vontade do agente em sonegar e não, em ocultar e dissimular bens, direitos e valores. Tal entendimento é consubstanciado pela Convenção de Viena, como referido acima.
Notas e Referências:
[1] ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte Genneral. 2ª Ed. Madrid: Thomson/Civitas, 2006. T.1. p.51 (Tradução livre).
[2] BOTTINI, Perpaolo, BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada, 2013, São Paulo: Revista dos Tribunais. P.25.
[3] MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro. 3ª edição, 2015, São Paulo. Atlas. P.304
[4] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. P. 715-716.
[5] TESORO, Giorgio. Principi di diritto tributário. Bari: Luigi Macri, 1938. P.175 (Tradução livre).
[6] MARTINS, Ives Gandra. O fato gerador do Imposto sobre a Renda – despesas operacionais deduzidas correspondentes a receitas liquidas ofertadas à tributação pelos beneficiários seguem rigorosamente a legislação de regência – inexistência do delito tributário na hipótese consultada. Revista dos Tribunais, v. 712, ano 84, fev.1995, p.119.
[7] MENDRONI, Marcelo B. Op. Cit. P. 303-304.
. . João Pedro Barreto é graduando em Direito pelo Ibmec/RJ. . . .
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