Durante a última semana, foi bastante comentada a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus (HC) n. 126.292/SP, em que a Suprema Corte - modificando entendimento consolidado em 2009 – passou a entender possível a execução imediata da pena com a condenação em 2.ª grau.
Como era de se esperar, a decisão foi elogiada por alguns e execrada por outros.
De um lado, conforme restou consignado no voto do Ministro Relator, Teori Zavascki, a execução da pena com a decisão em 2.º Grau seria possível, argumentando-se que, no direito comparado, a maioria das legislações admite essa possibilidade. Nesse sentido foi a ponderação feita pelo Professor Oscar Vilhena Vieira, da Fundação Getúlio Vargas, de que “o Supremo seguiu o padrão internacional”[1].
Por outro lado, como também lembrado pelo mesmo Professor[2], embora seja um padrão internacional, a nossa Constituição da República é bastante clara ao definir que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.
Ora, se ninguém será considerado culpado, por óbvio também não será (ou, pelo menos, não deveria ser) tratado como tal, sendo a prisão (ainda que cautelarmente decretada) a forma mais clara de se tratar alguém como se culpado fosse.
Em causa está o princípio da presunção de inocência – ou também conhecido como não consideração prévia de culpabilidade -, prevista já desde a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1787, § 8.º, e, anos depois, abraçada pelos franceses.
Trata-se de um princípio jurídico (e político) que, como bem demonstra a história, nunca foi apreciado, pela maioria dos povos, da maneira como se deveria; na própria França Revolucionária – notadamente, um de seus berços - milhares de cabeças rolaram sem a menor observância a este preceito, como aduz Paula Bajer Fernandes Martins da Costa[3].
Desde então, a presunção de inocência assumiu diversas conformações nas mais diversas legislações, com sua previsão (e interpretação) se dando em maior ou menor amplitude, conforme o sistema, o povo e a realidade do país em que inserida, cada qual com as suas devidas particularidades. Por óbvio, não é porque a presunção de inocência é prevista de um modo em determinado país que, necessariamente, essa mesma previsão seria a mais adequada para o nosso próprio sistema jurídico.
Seja como for, do ponto de vista jurídico, não importa o tratamento conferido à presunção de inocência em outras legislações: em nosso sistema constitucional, trata-se de um princípio com letra expressa, que não exige muito esforço exegético por parte de seu aplicador, em que pese a flexibilização de todos os princípios advinda com um abuso do recurso à proporcionalidade. Ao se admitir a execução imediata da sanção imposta com a decisão em segunda instância, viola-se, frontalmente, a literalidade da Carta Magna. Ora, com todo o respeito aos que interpretam diferentemente, não é isso que se espera de um Tribunal que se coloca como o guardião da Constituição.
Não obstante, tal entendimento não é novidade, e não fomos os primeiros a chegar a esta conclusão. Justamente por isso, o foco do presente artigo é outro: pretende-se analisar a repercussão da decisão do Supremo Tribunal Federal; outrossim, a vingarem os pressupostos do voto do Ministro Relator, é imperioso tratar da necessidade e urgência em rever o (restrito) cabimento do habeas corpus.
Em primeiro lugar, a decisão proferida, por ser proveniente de um caso concreto (diga-se de passagem, decisão bastante inusitada[4]), não tem, a nosso ver, efeito vinculante.
Assim como ocorreu com a jurisprudência formada em sentido contrário desde 2009 (a propósito, justamente por isso o caso chegou ao Supremo, havendo nova modificação do entendimento), as Cortes inferiores não estão obrigadas a observar a decisão e, de modo automático, determinar o cumprimento da pena, com expedição de mandado de prisão, após julgamento da segunda instância.
Embora seja possível prever que a atuação jurisdicional vá neste sentido, trata-se de opção dos julgadores, e não de qualquer efeito vinculante atribuível à decisão do STF.
Caso se entenda que a decisão tenha efeito vinculante, tratando-se de “jurisprudência” formada em detrimento do imputado – sobretudo em relação ao seu direito de ir e vir –, é inadmissível sua aplicação retroativa, na esteira da instigante e excelente obra da Professora Mariângela Gama de Magalhães Gomes quanto ao caráter vinculante da jurisprudência (mormente quando se mostrar benéfica), em âmbito penal[5].
Em segundo lugar, em consonância com a própria lógica do voto do Ministro Relator, para que se evitem abusos e arbitrariedades, deve-se conferir proteção jurídica idônea e efetiva em casos nos quais a execução imediata da pena possa acarretar grande injustiça.
Afinal, conforme ressaltado no voto em questão: “podem ocorrer equívocos nos juízos condenatórios proferidos pelas instâncias ordinárias. Isso é inegável: equívocos ocorrem também nas instâncias extraordinárias. Todavia, para essas eventualidades, sempre haverá outros mecanismos aptos a inibir consequências danosas para o condenado, suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena. Medidas cautelares de outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário ou especial são instrumentos inteiramente adequados e eficazes para controlar situações de injustiças ou excessos em juízos condenatórios recorridos. Ou seja: havendo plausibilidade jurídica do recurso, poderá o tribunal superior atribuir-lhe efeito suspensivo, inibindo o cumprimento de pena. Mais ainda: a ação constitucional do habeas corpus igualmente compõe o conjunto de vias processuais com inegável aptidão para controlar eventuais atentados aos direitos fundamentais decorrentes da condenação do acusado”[6].
Seja como for, não obstante as pertinentes observações do Ministro Relator, haverá, por certo, questionamentos quanto ao uso dos meios jurídicos destinados a evitar injustiças.
A esse respeito, ainda que se possa conferir efeito suspensivo aos Recursos Especial e/ou Extraordinário, caberá indagar - caso haja a imediata expedição do mandado de execução da pena pelo Tribunal de 2.º Grau, quanto tempo o cidadão terá que aguardar preso até que a(s) Autoridade(s) confiram o referido efeito suspensivo.
Também se deverá ponderar quem poderá conceder efeito suspensivo, considerando-se que o juízo de admissibilidade dos recursos – mantido com a recente alteração do novo Código de Processo Penal - é feito tanto nas instâncias inferiores quanto superiores.
A propósito, o tema já é objeto de questionamentos, conforme recente decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, determinando a imediata soltura de um cidadão, por se entender ser do Superior Tribunal de Justiça a atribuição para decidir se seria o caso, ou não, de determinar a prisão imediata.[7]
Nessa esteira, afigura-se patente que, em tais casos, deverá ser feito uso do remédio do habeas corpus, até mesmo em caráter preventivo, dado o risco efetivo à liberdade.
Contudo, para tanto, em prol da própria lógica do ordenamento e da harmonia e da coerência do sistema, deverá ser modificada a jurisprudência sedimentada desde 2012 quanto ao limitado cabimento do writ, sobretudo com relação à questionável asserção de que o remédio heroico seria inadmissível quando cabível recurso, não podendo ser utilizado como substitutivo ou sucedâneo, por exemplo, de Recurso Especial[8].
Ora, nesses casos, mormente quando plausível a questão de Direito, é óbvio que sempre será cabível o recurso, de modo que - para se conferir lógica à decisão do Supremo Tribunal Federal -, deverá ser revisitado o cabimento do writ, devendo-se restaurar a antiga (e, a nosso ver, correta) jurisprudência, que preconizava pelo amplo cabimento da ação constitucional.
Afinal, relembrando as lições da Professora Maria Thereza Rocha de Assis Moura, “não se pode jamais perder de vista que a acusação deve ser sempre justa, sob pena de transformar-se em instrumento de coação ilegal à liberdade jurídica do acusado, passível de ser remediada por meio do habeas corpus, instrumento criado e até hoje assegurado pela Constituição Federal, justamente para coibir tal constrangimento”[9].
Por fim, deve-se anotar que, por melhores que sejam as intenções e os propósitos dos que advogam pela execução imediata da pena, é inegável que tal entendimento se contrapõe ao texto constitucional. E - ainda que assim não o fosse -, importante destacar que o pretenso fim almejado não se concretizará: primeiro, porque os jurisdicionados não deixarão de interpor recursos (a propósito, haverá, inclusive, mais recursos e apenas mais impetração de ações constitucionais!); segundo, porque, como sempre, os maiores atingidos serão os mais desprivilegiados, observando-se que os acusados com melhores condições serão, certamente, assistidos por bons advogados, sendo muitíssimo difícil que – ausente alguma hipótese de cautelaridade à prisão decretada – permaneçam presos, sendo a sua soltura – destaque-se – correta do ponto de vista jurídico. Haverá, portanto, mais injustiça e ainda um tratamento jurídico mais desigual entre os cidadãos.
Notas e Referências:
[1] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1740916-decisao-do-supremo-nao-viola-a-democracia-afirma-pesquisador.shtml.
[2] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2016/02/1741320-presuncao-de-inocencia.shtml
[3] “... aos inimigos da Revolução não se garantiram os direitos do homem. (...) Em junho de 1794 executaram-se 2 mil pessoas em Paris. A guilhotina funcionava seis horas por dia. Estava em operação o terror judiciário” (COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Igualdade no direito processual penal brasileiro. São Paulo: RT, 2001, p. 34-35).
[4] É inusitada, pois, apesar de, na decisão, ser flexibilizada a súmula 691, do Supremo Tribunal Federal, o que indicaria que o constrangimento ilegal seria reconhecido, ocorreu, justamente, o contrário.
[5] GOMES, Mariângela Gama Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo, Atlas, 2008.
[6] Confira-se: http://s.conjur.com.br/dl/stf-decide-reu-preso-depois-decisao.pdf
[7] Confira-se: http://s.conjur.com.br/dl/tese-stf-aplicada-stj-hc-concedido-ex.pdf
[8] A título ilustrativo, segue recente decisão do Superior Tribunal de Justiça: “Tratando-se de habeas corpus substitutivo de recurso especial, inviável o seu conhecimento” (STJ, HC 337.321/RS, Sexta Turma, julgado em 17/12/2015, DJe 02/02/2016).
[9] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal. São Paulo: RT, 2001, p. 288.
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