DA AÇÃO E DAS AÇÕES: distinções pela forma e, com isso, pelo móvel, pela matéria e pelo fim – 5ª Parte

18/06/2019

Dando seguimento à série, passe-se a analisar a segunda forma acional: a pretensão à tutela jurídica. Neste primeiro momento, apresentando seus aspectos essenciais (causa formal). Mais uma vez, por se tratar de uma continuidade, a numeração seguirá a partir da última utilizada no texto anterior, qual seja a 2.6, logo começando pela de n. 3.

 

3. Ação como direito de ação (rectius: pretensão à tutela jurídica)

Já se falou acerca da ação como poder de imposição, a que se chama de ação material. Observou-se, além disso, o seu aspecto estritamente relacional, ou seja, ela existe apenas como conteúdo de relações jurídicas. Mais, em qualquer uma destas a ação pode se fazer presente, universalidade.

Ocorre que uma coisa é a ação como titularidade; outra, seu exercício. Como visto, embora já tenha entidade, a ação é potência (não por outra razão tem natureza jurídica de poder). Quando da análise de sua causa final, já se explicitou tal aspecto. É preciso, porém, esmiuçar como se dá essa passagem: da potência acional ao ato eficacial.

Em termos jurídicos, é preciso lançar mão de outra arquicategoria para explicar tal acontecimento: a de fato jurídico. Isto, pois, em direito, tudo é ocorrência de um fato jurídico, como bem demonstra Pontes de Miranda. Fato jurídico é o acontecimento do mundo feito jurídico pela incidência normativa, eis, sinteticamente, o cerne do pensamento do jurista alagoano.

No caso da ação, mais especificamente, esse acontecimento dá-se em exercício, uma vez que, sendo poder, necessita do agir de seu titular ou de algum outro legitimado. Eis a nota diferenciadora do ato jurídico lícito dos demais fatos jurídicos existentes: ele dá-se sempre como que em exercício de uma situação jurídica pré-existente[1].

É preciso, portanto, analisar o ato jurídico de exercício da ação. Entretanto, há um complicador: como poder de imposição que é, a ação traduz certa forma de violência de seu titular sobre o sujeito passivo, que, com o perdão do truísmo, se submete. Deste modo, salvo exceções, o ato de passagem mencionado acima depende da atuação de outrem, o Estado, na sua participação Estado-juiz.   

Isto porque, desde que impossibilitou aos sujeitos a realização da justiça de mão própria[2], o Estado detém o monopólio da jurisdição[3]. Em contrapartida, ao menos no ordenamento pátrio, atribui a todos o direito de instá-lo a solucionar situações das mais diversas, litigiosas ou não[4].

Por haver essa limitação, existe em favor dos sujeitos em geral a pretensão à tutela jurídica, ligada ao direito à tutela jurisdicional. Desse modo, para melhor designar essa substância, deve-se utilizar o termo pretensão à tutela jurídica, e não apenas direito à tutela jurisdicional, pois este último, base sobre a qual repousa a primeira, já nasce dotado de exigibilidade. Assim, ao se fazer alusão à pretensão, o direito a ela ligado é implicitamente mencionado.

Costuma-se denominar a pretensão à tutela jurídica de direito de ação. E é este, como cediço, o objeto das mais conhecidas teorias sobre a natureza da ação, muito embora, algumas delas, não o tenham propriamente como base[5]

Um aspecto fundamental da pretensão em análise é seu viés pré-processual, já que a relação Estado-sujeito de direito se dá anteriormente ao próprio processo, pré-existindo[6], pois, a ele[7]. A pretensão à tutela jurídica é devida a qualquer das partes[8], ao autor ou ao réu[9].

Pretensão à tutela jurídica, posto que, de algum modo, seja poder de exigir uma sentença (lato sensu), não é a pretensão a uma sentença favorável[10]. A primeira, como esclarecido, é titularizada (ao menos no sistema de direito positivo brasileiro) por qualquer sujeito de direito a fim de obter do Estado-juiz uma resposta a uma provocação lhe feita[11]; a segunda, decorre da relação processual, a partir da demonstração feita ao juiz por algumas das partes acerca da justeza de seus fundamentos[12]. Colocar a sentença favorável como conteúdo da pretensão à tutela jurídica, é retornar à concepção civilista da ação. Portanto, vincular a pretensão à tutela jurídica a uma ação (no sentido material) é retirar dela a autonomia (demonstrada por Theodor Muther[13], no momento inicial, e por Adolf Wach[14], em definitivo) e a abstração (sustentada, não necessariamente com os mesmos fundamentos, por Alexander Plòsz, Heinrich Degenkolb, Ludovico Mortara, Alfredo Rocco, Eduardo J. Couture[15] dentre tantos outros).

 

3.1. As pretensões à tutela jurídica específicas

A abstração da pretensão à tutela jurídica não significa, contudo, a impossibilidade de haver no plano pré-processual situações jurídicas estritamente ligadas às situações jurídicas situadas no plano material.

Desse modo, pode-se dizer que, paralelamente à ideia de pretensão à tutela jurídica, nos moldes acima delineados, há, no plano pré-processual, pretensões à tutela jurídica específicas, vinculadas a cada tipo de direito, pretensão e ação passíveis de processualização. Por exemplo, paralela à ação de reintegração de posse, há a pretensão à tutela jurisdicional reintegratória, esta servindo de instrumento para aquela.

Assim sendo, é possível afirmar que, havendo no plano material situação jurídica processualizável (ações, em regra), há, no plano pré-processual, situações jurídicas a ela correlatas. 

As pretensões à tutela jurídica específicas têm a ver com cada tipo de tutela jurisdicional existente, estas que têm a ver com as diversas causas-finais da ação já analisadas. 

O entendimento dessa categoria é fundamental para a compreensão de muitos problemas processuais, tais como: a) a perempção, que, sem atingir o direito material, extingue a pretensão à tutela jurídica ligada ao caso; b) a convenção de arbitragem, que é negócio pré-processual de disposição da pretensão à tutela jurídica ligada a uma determinada situação ou situações determináveis (cláusula compromissória). Ao se convencionar pela arbitragem, não se abre mão, por óbvio, da pretensão à tutela jurídica genérica; resta encoberta, porém, a eficácia da pretensão específica enquanto perdurar a convenção de arbitragem; c) a coisa julgada, que, entre outras coisas, gera, para o beneficiário da decisão, exceção substancial contra a pretensão à tutela jurídica do caso. 

Igualmente à ação material e muito diversamente da pretensão à tutela jurídica genérica, as pretensões à tutela jurídica específicas podem ser classificáveis das mais variadas formas. Inclusive, pode-se dizê-las declaratórias, constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas. Ora, ao exercê-las, pede-se ao Estado-juiz que, em suma, declare, constitua, condene, mande e execute. Por isso, não é de todo errado falar que, com o monopólio estatal da tutela jurídica, as pretensões à esta última acabaram por absorver as eficácias acionais, especialmente de um ponto de vista pragmático. 

Eis, em síntese, a apresentação da pretensão à tutela jurídica como forma acional. Em rigor, há dois tipos: um referente à genérica e outro à específica. Na linha aqui defendida, faz-se necessário, para cada uma delas, analisar os outros aspectos de suas causas-formais, especialmente seus sujeitos. Além disso, indispensável falar, mesmo que de modo pormenorizado, de suas demais causas: eficiente, material e final. Em postagens próprias tais aspectos serão trazidos à baila.

 

Notas e Referências

[1] O ato jurídico em si não é o exercício da situação jurídica. Daí ter se valido da expressão como que em, que denota analogia. Isto porque pode-se agir sem se ter aquilo que, aparentemente, funda o ato: a situação jurídica pré-existente. Em rigor, o ato é composto (causa material) de uma afirmação acerca da situação jurídica. Eis o porquê de o ato ser passível de julgamento de procedência/improcedência, ou seja: se a afirmação nele feita tem fundamento na realidade ou não. E não se trata apenas do ato processual: todo ato jurídico tem esse aspecto comunicacional, pois em todo ele alguém afirma algo a outrem. Quando um devedor emite um cheque afirma à instituição financeira sacada que está a dispor de valor seu, por exemplo. Do mesmo modo, quando se faz uma oferta de venda ao público, comunica-se que se está a dispor da coisa. É possível que, tanto num caso como no outro, tal afirmação não corresponda à realidade, porquanto, por exemplo, o emitente pode não ter fundos, e o ofertante não ter o poder de dispor da coisa. 

[2] Nesse sentido, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. São Paulo: RT, 1970, t. 1, p. 231.

[3] Dois temas aparentemente falseiam a afirmação acima referente a um suposto monopólio estatal da jurisdição. São eles: a autotutela (justiça de mão própria, na expressão de Pontes de Miranda) e a arbitragem. Em ambos, de algum modo, há imposição de um sujeito a outro, logo exercício de ação. O falseamento, porém, é apenas aparente. Quanto à primeira, o correto não é dizer que a atividade judicial é substitutiva da atividade do indivíduo; este é que age em substituição ao Juiz, resta saber se de forma lícita ou ilícita. E o faz, basicamente, declarando, constituindo, condenando, ordenando e executando. Ela presta, para si, tutela jurídica. Eis o porquê de não serem atividades em autotutela as funções essenciais do indivíduo: como a auto-executoriedade típica da Administração Pública; nem também o serem aquelas que, no plano “meramente” fático, existem para evitar a lesão ao indivíduo, como a legítima defesa e o estado de necessidade. Quanto à arbitragem, dedicar-se-á uma postagem própria.   

[4] Válido tecer breves comentários acerca da pretensão à tutela jurídica nos processos de jurisdição voluntária. Em determinadas situações os sujeitos de direito são autorizados, quando necessário, a solucionar seus conflitos sendo necessária a homologação das vontades por parte do Estado é o que se chama de jurisdição voluntaria. Nesse tipo de jurisdição não há falar em conflito propriamente dito, e sim em “simples” tutela de interesses. A doutrina diverge acerca da natureza jurídica da jurisdição voluntária, havendo, corrente tradicional, aqueles que defendem não haver, em verdade, jurisdição, mas simples ato da Administração Pública protegendo interesses privados. De outro lado, há importante parcela da doutrina que sustenta a natureza jurisdicional da chamada jurisdição voluntária. Para tanto, ver, com argumentos similares aos ora defendidos, por todos, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1977, t. 16, p. 5-6; SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 1, t. 1, p. 31-34; GRECO, Leonardo. Jurisdição Voluntária Moderna. São Paulo: Dialética, 2003, p. 19-21.

[5] Diversas teorias foram criadas acerca da ação. Defendida por Friedrich Carl von Savigny, a primeira teoria acerca do tema, a teoria civilista, afirma que a ação é inerente ao direito material, sendo a ação o próprio direito material violado. Ela exsurge, pois, da lesão. Em seguida, historicamente, tem-se a famosa polêmica Windscheid x Muther, pela qual duas importantes noções foram consolidadas: a de pretensão (pelo primeiro) e a de direito à tutela jurisdicional (pelo segundo). Nos fins do século XIX (mais especificamente, em 1885), surge a teoria concreta defendida, inicialmente, pelo alemão Adolf Wach e, posteriormente, pelo italiano Giuseppe Chiovenda, os quais, a seus modos, entendiam que o direito de ação era dependente da procedência do pedido. Houve, principalmente com Wach, a diferenciação plena do direito de ação e do direito material.  Em contrapartida, sendo historicamente anterior, tem-se a teoria abstrata da ação, pela qual se propugna a desvinculação do direito de ação da sentença de procedência do pedido. São prosélitos de tal ideia, principalmente, Alexander Plosz, Heinrich Degenkolb, num primeiro momento, e, em seguida, por Alfredo Rocco. Por fim, tem-se a teoria eclética, defendida pelo italiano Enrico Tullio Liebman. Para tal teoria, o direito de ação nem está vinculado a uma sentença procedente nem é completamente independente do direito material, trata-se de um direito a uma sentença de mérito, independentemente de ser favorável ou não. Sobre o tema, ver, dentre outros, WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica sobre la “Actio”. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: E.J.E.A, 1974, passim; WACH, Adolf. La Pretención de Declaración. Trad. Juan M. Semon. Buenos Aires: E.J.E.A, s.a, p. 19 e segs.; CHIOVENDA, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos. Ensayos de Derecho Procesal Civil. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: E.J.E.A, 1949, t. 1, p. 7 e segs.; LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros, 2005, v. 1, p. 197-203; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. São Paulo: RT, 1970, t. 1, p. 271-278; PASSOS, José Joaquim Calmon de. A Ação no Direito Processual Civil Brasileiro. Salvador: Impressa Oficial, 1960, p. 7 e segs.; SILVA, Ovídio Baptista da; GOMES, Fábio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 90 e segs.

[6] É preciso detalhar um pouco a distinção entre o pré-processual, o processual e, até mesmo, o pós-processual. Para tanto, faz-se necessário estabelecer algumas premissas: a) primeiramente é diante da facticidade jurídica (direito como fenômeno do mundo, nível dinâmico) que tal distinção se apresenta. No âmbito da normatividade abstrata (nível estático), não há direito pré-processual, direito processual, direito material e direito pós-processual. Há direito civil, direito constitucional, direito processual civil etc. Ambas as perspectivas são fundamentais e não se excluem entre si. Este trabalho, contudo, limita-se à primeira. Um exemplo serve para o esclarecimento: regra jurídica sobre competência jurisdicional é, na estática, fonte de direito processual (civil, penal etc., a depender da espécie); na dinâmica, entretanto, pode se apresentar das mais variadas formas. Em si, a competência, como efeito jurídico (tipo de capacidade), não é processual, pois seu surgimento antecede a qualquer processo, salvo as competências que decorrem da prevenção (competência em concreto). É, de outro modo, elemento de suporte fático de atos processuais, como a sentença, funcionando como pressuposto para a validade desta. Pode, além disso, compor o núcleo do direito material, pois, sendo questionada, passa a ser o objeto de uma decisão judicial; b) tem-se como processual o efeito jurídico da facticidade processual. Processual é, pois, a relação jurídica processual (RJP) e tudo que dela decorre. Assim, o pré-processual é aquilo que é necessário (e, por isso, antecede) à formação da RJP; já o pós-processual tem a ver com aquilo que segue ao término da RJP. É preciso, no entanto, frisar que todas essas noções dependem de um referencial, que é o direito material, objeto da RJP, e até mesmo esta pode ser o direito material, objeto de outra RJP (num recurso, por exemplo, pode-se questionar a eficácia de uma RJP); c) percebe-se, portanto, que a premissa acima tem a ver com a ideia de antecedência. Não se trata, porém, de antecedência temporal, nem espacial, mas sim de antecedência lógica. Algo é pré-processual não porque surgiu antes da formação de uma RJP, mas sim porque é condição para a formação de uma. No curso de uma RJP, por isso, pode haver pré-processualidade.

[7] Assim, MELLO, Marcos Bernardes de. Da Ação como Objeto Litigioso no Processo Civil, op. cit., p. 393.

[8] Na noção de parte posta acima incluem-se os terceiros intervenientes, mesmo aqueles que o fazem em adesão à postulação feita, como os assistentes. O termo empregado, portanto, designa qualquer sujeito processual principal com interesse na causa.

[9] Nesse sentido, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Relação Jurídica Processual. SANTOS, J. M. Carvalho (org.). Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, s.a., p. 92.

[10] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, op. ult. cit., p. 08.

[11] Fale-se, acima, em obtenção de uma resposta a uma provocação feita ao Estado-juiz, porquanto tal expressão sirva para abranger qualquer tipo de manifestação por parte dele acerca da demanda lhe dirigida, até mesmo a declaração de inexistência da pretensão à tutela jurídica, por não ser o autor, por exemplo, dotado de capacidade de ser parte.

[12] Vale ressaltar que, para que haja a titularidade e o exercício da pretensão à tutela jurídica, não há de existir necessariamente uma lide. Um exemplo disso é a existência da pretensão à tutela jurídica nos casos de jurisdição voluntária. Nesse sentido, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, t. 16, op. cit., p. 6-7.

[13] MUTHER, Theodor. Sobre La Doctrina de la Actio Romana, del Derecho de Accionar Actual, de la Litiscontestatio y de la Sucesión Singular en las Obligaciones. Polemica sobre la “Actio”. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: E.J.E.A, 1974, p. 236 e segs.

[14] WACH, Adolf. op. cit., p. 19 e segs.

[15] COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1976, p. 67 e segs.

 

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