DA AÇÃO E DAS AÇÕES – 8ª PARTE, BREVES NOTAS PARA A IDEIA DE CUMULAÇÃO DE AÇÕES

10/12/2019

1. INTRODUÇÃO

Trago desta feita uma reflexão primacial acerca da cumulação de ações. Além de tudo, falarei do importante, embora não muito mencionado, tema da cisão acional.

 

2. DA CUMULAÇÃO À CISÃO DE AÇÕES

Como sabido, é lícita a cumulação de ações. Mas de quais modos ela ocorre? Essa pergunta aparentemente tola carrega consigo outro dificílimo tema da processualística. É natural dizer que cumulação de ações existe quando se formula mais de um pedido. Neste caso, cada pedido – até por ser o princípio de individuação da demanda – refere-se a uma ação distinta. Não obstante a obviedade da hipótese, é quase nada para fins de compreensão do fenômeno da cumulação de ações. Não serve como resposta à pergunta acima, até porque apenas se exemplificou. A resposta almejada, como não poderia ser diferente, há de principiar na correta definição de cumulação de ações.

Cumular, no caso, tem a ver com acúmulo, complexidade, multiplicidade. Aquilo que é além da simples unidade. Mais, como toda multiplicidade, a cumulação dá-se em algo, o que denota agrupamento, conjunto etc. Na expressão do termo: ações seriam cumuladas. Obviamente, cumulação perfeita em um ato: na demanda, especificamente. Fora do peticionamento não há cumulação, as ações existem separadas, cada uma compondo um âmbito próprio. É a petição que possibilita o ajuntamento delas. Logo, não são as ações em si (em seu estado natural ou, numa linguagem mais afeita ao direito processual, em sua materialidade) os objetos cumuláveis; cumulam-se ações processualizadas, isto é: contidas numa petição. 

Todavia, sendo a petição composta de causa de pedir e pedido, qual dos dois é passível de acúmulo? Ambos, pode-se responder intuitivamente. Em toda cumulação, contudo, há mais de um pedido. Isto necessita de uma explicação mais acurada.

 

2.1. Das diversas formas de cumulação

Já se demonstrou que o mesmo fato jurídico (e não apenas o mesmo fato bruto) pode ensejar duas ou mais consequências distintas. Em termos processuais, significa que a mesma causa de pedir (indicação do fato jurídico) pode justificar mais de um pedido. Estes podem tanto concorrer entre si, o exemplo dado do vício redibitório, como ser simplesmente cumulados, caso do inadimplemento que gera ao credor o poder de condenar o devedor a pagar e o direito aos consectários da mora.  

Há também a hipótese de duas causas de pedir servirem ao mesmo pedido. Aqui, aparentemente, o acúmulo é resultante da causa, e não do pedido, que é simples. Por exemplo, pede-se a anulação de um contrato alegando-se lesão e dolo. Estes últimos convergem para o mesmo fim: a anulação. O que se dá, porém, é uma fusão circunstancial de pedidos. Pelo fato de convergirem para o mesmo fim, os pedidos relativos a cada um dos fundamentos acabam por coincidir e, portanto, fusionam-se

A fusão, no entanto, é apenas circunstancial, logo a separação lhe é própria. Mesmo nos casos em que a formulação dos pedidos ocorre ao mesmo momento, algo que já lhes faz desde sempre fundidos, existe separabilidade. Assim, embora cronologicamente coincidam, ontologicamente há distinção. Aparentemente há um único pedido; essencialmente, há cumulação.

De outro modo, não seria possível dizer que, inadmitida petição (e, portanto, o pedido) quanto a uma das causas de pedir indicadas, permaneça pedido quanto a outra. A inadmissão, no caso, provoca uma diminuição, logo o que não for inadmitido prosseguirá.      

Mais, tanto há cumulação de pedidos que essa fusão pode acontecer em momento posterior à formação do processo. Se assim o é, é porque agregou-se algo a outro, que já existia.

A “prova dos noves” de que existe mais de um pedido é o fato de que as ações referentes a eles podem estar em âmbitos distintos, ou seja, não cumuladas. Neste caso, sequer se pode falar em litispendência, por não se preencher o suporte fático dos §§ 1°-3° do art. 335, CPC, mas, no máximo, conexão.

Existe, dessa forma, uma cumulação em fusão.

A cumulação de ações pode ocorrer também em virtude de litisconsórcio. Com a ressalva do litisconsórcio unitário, no qual a ação deduzida é comum e indivisível a todos os litisconsortes, a formação do litisconsórcio coincide com uma cumulação de ações, independentemente de ele ser ativo ou passivo.

Observe-se o caso da ação de indenização movida contra os causadores do dano. Nela, mesmo sendo caso de solidariedade (e. g., art. 933, CC, remissivo às hipóteses do artigo lhe imediatamente anterior)[1], é possível decompor em tantas quantos forem os réus. Embora a indenização a ser paga não possa ir além da extensão do dano (art. 944, caput, CC), senão haveria enriquecimento sem causa, pode-se propor uma ação (e, obviamente, formular em cada uma delas um pedido) para cada um dos responsáveis. Ademais, é bom frisar, condenações múltiplas podem (e, até mesmo, devem) conviver, o que não pode acontecer é execução (no sentido máximo, ou seja, de efetuar a transmutação patrimonial) para além do limite devido.

Não por motivo, propostas ações separadamente, não se pode falar em ocorrência de litispendência, não há preenchimento do suporte fático do § 3° c/c § 2° do art. 337, CPC. O caso é de simples conexão (art. 55, caput, CPC).

Sem embargo, podem ser fundidas em virtude da permissão à formação de litisconsórcio (com esteio em algumas das hipóteses do art. 113, CPC). Eis, portanto, mais um caso de cumulação de ações pela fusão delas.

A pergunta que resta – fundamental para o segundo questionamento objeto deste parecer – é a seguinte: de que modo é possível falar em cisão de ações fundidas?        

Dedicar-se-á um subitem próprio a tanto.

 

2.2. Da cisão acional

Se fusão acional é a cumulação de ações que resulta circunstancialmente num mesmo pedido, cisão (ou fissão) é o exato oposto. Isto é, parte-se do unido para o difuso. Do fato da cisão há de resultar a permanência das ações dantes fundidas. Por óbvio, se a diminuição do composto acional dá-se por terminação de uma das ações, cisão não haverá, mas sim propriamente extinção[2]. Essa terminação pode ocorrer, basicamente, de dois modos: i) com a análise da ação, caso em que o pedido dela decorrente é acolhido ou rejeitado; ii) com a inadmissibilidade, da ação mesma ou do ato que a movimenta[3], desde que disto não resulte o término da litispendência.

Em poucas palavras: ocorrida a cisão, as ações permanecerão, cada uma num processo próprio; analiticamente: para que haja cisão, é preciso que do agir decisional sobre as ações cumuladas resulte a sobrevivência delas, agora em separado.

Sendo assim, na hipótese (i) aventada acima, é impossível a ocorrência de cisão acional, visto que as ações cumuladas são, no todo ou em parte, julgadas, e o julgamento faz cessar a litispendência[4]; já em (ii) a cisão somente ocorrerá em hipóteses nas quais da declaração de inadmissibilidade não decorra ipso facto a extinção do processo. Quando, por exemplo, dada sua ilegitimidade para a causa, um litisconsorte é excluído, há cessação da litispendência da ação lhe relacionada, ou seja, uma extinção parcial sem resolução do mérito. Algo idêntico acontece na hipótese de o autor desistir de uma das ações propostas.

Há, todavia, no sistema processual brasileiro dois casos de indiscutível cisão processual[5]. O primeiro é a separação do processo por força do litisconsórcio multitudinário (§ 1° do art. 113, CPC); o segundo, mais drástico, é o da declaração parcial de incompetência. Este necessita de maiores esclarecimentos.

Seguindo a tradição, a declaração de incompetência no sistema processual brasileiro, salvo exceção conhecida (incompetência territorial no âmbito dos juizados especiais, inciso III do art. 51, Lei n. 9.099/95), não implica extinção do processo. Inadmite-se a postulação sem desconstituir o ato, que é transladado ao juízo (tido pelo declarante por) competente. Trata-se de uma forma de aproveitamento do ato processual defeituoso por expressa imposição legal (§ 3° do art. 64, CPC). Não há margem para qualquer discussão. Caso o juiz, declarando a incompetência, determine o deslocamento da causa ao juízo competente, ao invés de extinguir o processo, estará a cometer sério error in procedendo, sendo invalidável sua decisão. Isto em qualquer hipótese de declaração de incompetência, seja ela absoluta ou relativa, total ou parcial.

Em que sentido é possível falar que a competência (ou, por decorrência lógica, a incompetência) pode ser total ou parcial? Nada tem a ver com o problema da absolutidade ou relatividade da competência, que é referente à quantidade desta, de modo que o juízo relativamente incompetente tem, de outra banda, relativa competência. Totalidade e parcialidade da competência referem-se à abrangência dela sobre seu objeto, que é a ação posta à análise. Se a competência abarca a totalidade do objeto, ela é do primeiro tipo; se apenas algo dele, do segundo. Isto, inclusive, se a ação for única, caso da cobrança de valor superior a quarenta salário mínimos no âmbito dos juizados especiais cíveis, na qual o juízo não tem competência para o excedente.

Com mais propriedade, há incompetência parcial diante de cumulação de pedidos, ainda que esta se dê em fusão. Existe regra expressa quanto ao ponto, ademais. Trata-se do inciso II do § 1° do art. 327, CPC. A cumulação de pedidos somente é permissível se o juízo tiver competência para ambos ou, sendo o caso, todos. A consequência pelo não preenchimento desse requisito é a inadmissibilidade do pedido não abarcado pela competência e, consequentemente da cumulação. Aqui, faz-se indispensável uma explicação mais acurada, a fim de que se evite interpretações equivocadas do dispositivo.

Como dito, o fato de o juízo não ser competente para um (ou alguns) dos pedidos cumulados acarreta a inadmissão deste. Que o pedido é inadmitido não há como negar. Até porque, todo pedido posto à apreciação judicial há de ser admitido ou inadmitido, tertium non datur. Resta identificar, porém, qual é a consequência dessa inadmissão. Seria o descarte do pedido, fazendo cessar a litispendência da ação fundante dele? Não, definitivamente. Essa consequência não há de ser outra senão a de operar uma cisão processual, determinando que a ação não admitida seja deslocada ao juízo competente. Por um motivo muito simples: o que determina a consequência da inadmissibilidade não é ela em si, mas sim o porquê de ela ter ocorrido. No caso, a inadmissão teve por causa exatamente a declaração de incompetência, e a consequência inexorável por força disto é, consoante o já analisado § 3° do art. 63, CPC, a determinação do deslocamento da ação ao juízo competente. Não há no sistema processual vigente outra solução possível, até porque, em tal caso, não há falar em inépcia da petição, inadequação procedimental, ausência de interesse, ilegitimidade da parte ou qualquer outro fato que, de acordo com as hipóteses do art. 485, CPC, enseje a extinção do processo sem resolução do mérito. O que há é pura e simplesmente a incompetência do juízo, cuja consequência é, conforme demonstrado, categórica.            

 

Notas e Referências

[1] Salvo, por óbvio, os casos em que lei exige a citação de ambos os responsáveis, como se dá com os cônjuges e companheiros nos moldes dos incisos II e III do § 1° do art. 73, CPC.

[2] A extinção referida acima é do estado processual da ação, da litispendência, na nomenclatura de praxe. Extingue-se no sentido de deixar de existir, o que não significa, necessariamente, que não possa ressurgir. Como cediço, impedimento ao ressurgimento dá-se pela eficácia da coisa julgada: logo, em não ocorrendo esta, óbice não haverá.  

[3] Em rigor, sob o nome de inadmissibilidade várias situações são compreendidas. Todas, porém, indicam para o mesmo fim: a impossibilidade de a postulação ser analisada. As razões para tanto variam. É possível, contudo, estabelecer o seguinte: ou é a inadmissibilidade é da ação em si ou é do ato que a movimenta, que é a petição. Neste caso, não obstante a ação poder ser admitida, falta algo no seu ato que a inviabiliza. A falta de capacidade postulatória, por exemplo, posto que não faça inócuo o conteúdo da postulação, impossibilita a análise. O mesmo se falta ao órgão julgador competência. É problema atinente ao rigor formal do ato, logo à sua validade; de outro modo, naquele, a ação (no sentido de ação processualizada) mesma não tem viabilidade. É o que ocorre quando movida por parte ilegítima, quando desnecessária, quando seu objeto é impossível, quando já foi ajuizada e, mais, quando já julgada. Trata-se, aqui, de um ato impotente: problema atinente à eficácia. 

[4] O julgamento, salvo quando dado a título provisório, põe a litispendência a termo. A consumação disto, porém, depende de outro fato: o trânsito em julgado. Eis porque o recurso prolonga a litispendência: ele funciona como fato impeditivo do trânsito em julgado. Ocorre que, em tal caso, a permanência dela não é a própria da decisão recorrida, sendo-a do recurso. Pelo contrário, esta tem por força findar aquela, a qual somente permanece porque o recurso tem um objeto próprio –  ou seja, uma ação recursal–, distinto da ação julgada.  

[5] Embora estranho ao problema em análise, não é de se descartar a possibilidade de cisão processual por acordo entre as partes.

 

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