DA AÇÃO E DAS AÇÕES – 7ª. PARTE, CAUSA DE PEDIR: UM DIFÍCIL CONCEITO – 2ª. PARTE

03/12/2019

1. Uma premissa fundamental: o conceito de causa de pedir

No texto passado, deixei as seguintes perguntas em aberto: Por qual razão se diz que existe uma causa de pedir remota e outra próxima? Será pela mesma razão, e até por isso mesmo, de a regra do inciso III do art. 319, CPC, imputar ao peticionante o ônus de indicar o fato e o fundamento jurídico do pedido?

Eis o momento de respondê-las.

 

2. Causa de pedir remota e causa de pedir próxima x fato e o fundamento jurídico: uma dialética necessária

Segundo o inciso III do art. 319, CPC, é ônus do peticionante indicar o fato e o fundamento jurídico do pedido. Muito por força disto, costuma-se dizer que a causa de pedir se desdobra em remota e próxima: “como há hipótese normativa é desdobrada, a realidade à qual ela se volta deve sê-lo também”. Eis um fundamento lógico para a distinção em tela.  

Ocorre que, como demonstrado alhures, uma coisa é a realidade da situação jurídica invocada processualmente; outra, a do ato-petição. No primeiro caso, o problema é de ordem ontológica; no segundo, deontológica. Lá, há um processo causal propriamente dito: do fato jurídico à eficácia jurídica; cá, ônus imputado ao sujeito processual, forçando-o a apresentar determinado tipo de argumentação.

Assim, dizer que existe uma causa de pedir remota e outra próxima baseando-se na estrutura da realidade extraprocessual (material, dir-se-ia) é confundir o ontológico com o deontológico. Que a estrutura da juridicidade é baseada na relação causal fato jurídico → eficácia jurídica não é algo que se possa discutir, isto, porém, refere-se ao primeiro plano, não ao segundo, próprio da causa de pedir.

Tampouco é negável que a eficácia jurídica possa se desenvolver de modo escalonado. Basta, neste caso, atentar para a relação jurídica obrigacional oriunda de contrato de promessa de compra e venda de imóvel em incorporação imobiliária, na qual o direito do promitente-comprador à aquisição da coisa, conquanto se forme no momento em que se perfectibiliza a eficácia do contrato, somente se municia de exigibilidade (pretensão) com o efetivo pagamento do preço. Mais, a ação de adjudicação compulsória forma-se a partir de outro fato: a não emissão de declaração de vontade pelo promitente-vendedor. Em verdade, a possibilidade de ocorrer uma cisão da causa (eficiente) da situação jurídica invocada processualmente não é apenas possível; é frequente. Contudo, essa cisão não é necessariamente por dois momentos, podendo ser, ao menos, por três, como no exemplo acima. Portanto, ter-se-ia de invocar três causas: uma mais próxima, uma intermediária e outra mais remota à situação jurídica processualizada[1].

Muito por isso, mostra-se equivocado ou, no mínimo, desnecessário relacionar a causa de pedir remota ao fato jurídico, e a próxima à relação jurídica[2], pelos seguintes motivos: i) primeiramente, a razão de ser da causa de pedir é, como visto, a justificação racional do pedido, nada tendo a ver com a própria estrutura da realidade da situação jurídica processualizada; ii) ademais, embora a simples afirmação do composto fático não individualize a demanda, o pedido, uma vez que define juridicamente tais fatos, cumpre tal função dentro do sistema, sendo desnecessária a afirmação da relação jurídica para tanto. Formulado o pedido, implícita está a afirmação da chamada causa de pedir próxima[3]; iii) por fim, em rigor não é a relação jurídica pura e simples a causa (justificadora) próxima do pedido, visto que em si nada define. Isto somente se perfaz com a afirmação de um interesse juridicamente relevante[4]. Em processos de tipo impositivo[5], a esse tipo de interesse atribui-se ação para satisfazê-lo. Neste caso, alguém dizer que outrem lhe deve algo (afirmar, pois, a existência de uma obrigação) não é suficiente para sustentar um pedido. É preciso afirmar a incerteza quanto à existência da dívida para justificar o pedido declaratório, o inadimplemento do mesmo modo ao condenatório etc.        

Logo, o ônus de alegar (indicar a causa de pedir) resume-se à descrição do composto fático apto a, dentro do ordenamento jurídico, justificar a providência requerida. Esse composto pode ser de formação contemporânea ou, consoante se demonstrou acima, em sucessão.

Sendo assim, dá para se dizer letra morta o trecho do inciso III do art. 319, CPC, que menciona a necessidade de indicar o fundamento jurídico como razão de ser do pedido?

Não por completo, pois é possível atribuir-lhe outro sentido.

Como regra, pode-se dizer que ao peticionante não é necessário – na perspectiva da admissibilidade – justificar o seu pedido de acordo com o regramento jurídico aplicável ao caso. Por exemplo, indicar artigo de lei que reja a matéria. O que não significa que não possa fazê-lo, máxime numa perspectiva retórica.

Há situações, entretanto, que impõem – em graus variados – ônus argumentativo ao peticionante. Se pretende ter seu aplicado a seu favor determinado precedente não obrigatório, a parte necessita demonstrar a correlação dele com o caso em análise. Não basta, para tanto, mera menção a existência do precedente; é preciso justificar sua aplicabilidade à situação concreta. Analogamente ao fato de o juiz ter o dever de argumentar (especialmente nas hipóteses dos incisos do § 1° do art. 489, CPC), a parte tem ônus em tal perspectiva, cuja não observância torna defeituosa a postulação no ponto.

Claro, não há falar nesse ônus diante de casos referentes à aplicação de precedentes obrigatórios, de regras de definição[6] etc.

Portanto, é preciso reinterpretar a expressão fundamento jurídico do pedido, contida no inciso III do art. 319, CPC, a fim de lhe dar um sentido que, além de útil, é mais adequado à contemporaneidade.

 

Notas e Referências

[1] Como diz Pontes de Miranda, “na exposição da causa petendi há de estar a afirmação: da relação jurídica; da pretensão de direito material, que corresponde a essa relação; de fato que justifique a ação; do interesse de agir; do direito público subjetivo a usar do juízo, o que se subentende hoje em dia”, Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. 4, p. 15. Disto bem se percebe o quanto, mesmo em casos dos mais simples, é complexa a composição da causa de pedir, de modo que a tentativa de separá-la em apenas dois momentos é de todo equivocada.

[2] Nesse sentido, por todos, DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 21. ed. Salvador: JusPODIVM, v. 1, p. 644-647.

[3] É preciso deixar claro que não que não exista a afirmação no processo de uma situação jurídica a ser efetivada, aquilo que, alguns autores, como Fredie Didier Jr. entendem ser a causa de pedir próxima. Não só existe como é sobre ela que recairá o julgamento de procedência/improcedência. Em rigor, é ela o ponto de individuação do ato. Ocorre que a indicação do pedido representa uma consequência necessária dessa situação jurídica: porque se tem ação condenatória contra alguém, há de se condená-lo; pelo fato de se ter ação declaratória, algo análogo etc. Nesse sentido, já que o pedido tem de ser indicado, torna-se desnecessária a alegação da situação jurídica que lhe serve de base. Em termos lógicos, se a consequência foi indicada, a causa implicitamente também o foi.  

[4] Em rigor, nem todo interesse juridicamente relevante tutelável processualmente é um direito subjetivo. O caso da posse, sem dúvida, é o mais emblemático.

[5] Nem todo processo, mesmo se judicial, é impositivo a alguém. Sem sequer mencionar os chamados processos homologatórios, em que, como já demonstrado nesta série, há uma impositividade em potencial, basta atentar para a ocorrência da interpelação (art. 727, CPC) para constatar a veracidade dessa afirmação. No caso, do interpelado apenas se exige; não se impõe. Interpelar alguém judicialmente – com a ressalva de uma suposta maior carga retórico-persuasiva – é algo análogo a enviar-lhe um boleto de cobrança. 

[6] Por regra de definição entende-se aquela cuja a incidência produz a situação jurídica afirmada pela parte. Numa ação de indenização por violação a direito da personalidade, por exemplo, o autor não precisa invocar o art. 186, CC, como base do seu direito ao ressarcimento pelo dano causado. 

 

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