Cultura do Estupro no Direito Penal Brasileiro

10/06/2016

Por Marília Cassol Zanatta - 10/06/2016

Diante da notícia e das investigações sobre ocorrência de um estupro coletivo de uma adolescente no Estado do Rio de Janeiro, reiniciou-se a discussão acerca da violência sexual e de gênero[1], perpetrada primordialmente contra mulheres[2], e sobre a chamada cultura do estupro que a estrutura, mantém e justifica.

A cultura do estupro consiste nas “maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens"[3]. Trata-se de justificar, com base em critérios morais determinados socialmente às mulheres[4], a conduta violenta de quem as agride, afastando o reconhecimento dessa violência como tal e o inerente caráter de perversidade, de crime, de violação de direitos, de desumanização que a caracteriza.

O engendramento dessa cultura se perpetua em processos de socialização cotidianos, mormente na justificação fundada na omissão diante dessa violência, na culpabilização da vítima, na reiteração da inferioridade feminina e na concepção de que o estuprador é apenas o desconhecido, o “outro”, o “louco”. É a reiteração dos papeis de gênero, da desnecessidade do consentimento feminino para práticas sexuais voltadas para a satisfação de mera lascívia masculina – enquanto, na verdade, violência sexual é sobre relações assimétricas de poder[5] e de objetificação, e não de desejo. É o conjunto - indissociável do controle formal exercido pelo sistema de justiça criminal e do controle informal desenvolvido por outros âmbitos, como escola, família, mídia, instituições religiosas e ordenamentos jurídicos - de ensinamentos sobre a exigência de recato, cuidado e submissão femininos, opostos ao exercício de sua liberdade sexual e seus direitos reprodutivos. É, primordialmente, sobre a invisibilidade e condição secundária da mulher como sujeito de direitos e de autonomia.

Nesse sentido, o Direito corroborou e normatizou com a formulação e a mantença desse processo de violência de gênero, em sua forma nítida e/ou simbólica[6] mediante leis[7], tratamento judicial e institucional às mulheres vítimas de violência e discursos doutrinários.

Contudo, na assimilação de uma constelação de valores políticos e sociais, a formação do próprio Direito passou a ser questionada e a expor a insurgência da concepção de gênero, representando uma forma inédita de romper com a invisibilidade da mulher nos estudos e na construção dos saberes, uma vez que, até então, praticamente a totalidade destes se desenvolveu sob a perspectiva masculina e colocando-a como universal, como único ponto de referência. Assim, passou-se a problematizar as relações existentes entre criminalidade, sistema de justiça criminal e mulher/feminino, bem como a se questionar como os marcos teóricos das ciências sociais mantinham as desigualdades entre homens e mulheres disfarçadas sob uma aparente neutralidade[8].

Essa temática passou a ser disciplinada no ordenamento brasileiro nas Ordenações Filipinas, em que se tutelava a honra da mulher virgem ou da viúva honesta, inexistindo os termos “estupro”, “violência sexual” ou qualquer outro vocábulo que lhe fizesse as vezes.

Posteriormente, o Código Imperial de 1830[9] passou a reger os crimes “contra a segurança e a honra”, observando a adequação da mulher aos bons costumes e colocando-a como único sujeito passivo desses delitos. Referia-se a uma proteção à castidade e à expectativa de matrimônio, em que o casamento do agressor com a vítima constituía causa de extinção da culpabilidade.[10]

Já o Código de 1890 trouxe a primeira previsão de homens e mulheres como possíveis sujeitos passivos dos crimes sexuais, apesar do ainda distinto tratamento entre mulheres “honestas” e mulheres “públicas” e do crime de adultério como possível conduta apenas feminina. Nas palavras de Hungria, a mulher honesta era: “não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum  de decência exigido pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico penal) a mulher francamente desregrada, aquela que, inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda que não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interêsse ou mera depravação (cum vel sine pecunia accepta). Não perde a qualidade de honesta nem mesmo a amásia, a concubina, a adúltera, a atriz de cabaré, desde que não se despeça dos banais preconceitos ou elementares reservas de pudor.” [11]

Assim, o julgamento e a determinação punitiva estiveram sempre vinculados a características subjetivas da mulher como vítima, analisando seu comportamento moral-sexual pregresso - em que a lei estipulava punição ao agente do crime, mas não se poderia considerar eficaz no que tange ao reconhecimento dos direitos da mulher.

Em 1940, foi promulgado o Código Penal vigente, o qual contemplava originalmente o Título VI – “Dos Crimes Contra os Costumes[12]” e o Capítulo I – “Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual”, em que se tipificou crime de estupro, com a manutenção da concepção de mulher honesta.[13]

Já em 2001, a Lei n. 10.224 tipificou o delito de assédio sexual e realizou significativas alterações na compilação penal brasileira, podendo-se citar entre elas que: eliminou o termo “mulher honesta”; descriminalizou determinadas condutas (como os delitos de adultério e de sedução); suprimiu o Capítulo III (que abarcava os crimes de rapto); retirou a extinção de punibilidade em caso de matrimônio entre a ofendida e o agressor; modificou o crime de atentado violento ao pudor mediante fraude, o qual passou a admitir qualquer indivíduo como sujeito passivo e/ou ativo.

Por muito tempo, foi considerada aceitável a prática do estupro marital[14], e a Lei n. 11.106/05 conferiu, então, nova redação ao art. 226, II, ao acrescentar o cônjuge como um dos agentes que ensejam aumento de pena no crime em comento. Posteriormente, a hipótese também foi tutelada pela Lei n. 11.340/06.

A Lei n. 12.015/09 consignou o estupro como crime hediondo, alterou o nome do capítulo referente “aos costumes” por “dignidade sexual”, bem como reuniu o crime de atentado violento ao pudor e estupro em um único tipo penal e inseriu a concepção de estupro de vulnerável. Houve uma ampliação quanto à tipificação de condutas do estupro, abrangendo práticas relacionadas ao sexo oral e anal, além da já inserida conjunção carnal – ou seja, o crime passou a abarcar a realização de qualquer ato libidinoso, inclusive a penetração por meio de objetos.[15]

A Lei 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha consignou, em seu art. 7º, III, a violência sexual contra a mulher como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.”

Passou-se, então, ao novo paradigma de que a tutela penal deveria ter como objeto a liberdade e autodeterminação sexual do indivíduo, criminalizando condutas praticadas sem o consentimento de uma das partes e com danos a esta, e não mediante designação de atos considerados moralmente contra o bem-estar social.

Foi-se moldando a nova concepção de violência sexual no direito penal brasileiro, influenciada fortemente pelas novas conquistas femininas, reestruturação dos papéis sociais, inserção da mulher no mercado de trabalho e pela própria revolução sexual, ocorrida com a criação e a popularização dos métodos contraceptivos – os quais alteraram as relações sexuais no sentido de efetivamente dissociá-las da função reprodutiva, possibilitando maior liberdade à mulher. Consolidou-se, no texto legal, a liberdade sexual como bem jurídico protegido, o direito ao corpo como parte do exercício da privacidade e o reconhecimento da sexualidade como um âmbito de compreensão e realização pessoal.

Entretanto, realizando uma análise acerca do funcionamento do sistema de justiça criminal referente à violência sexual contra a mulher, Vera Andrade concluiu que este é ineficaz quanto à proteção das mulheres contra a violência, sobretudo porque não cumpre sua função preventiva (não impede novas violências) e não se atenta aos interesses da vítima, tampouco colabora para elucidar as questões de gênero e o entendimento da própria violência sexual sofrida. Ademais, duplica a violência exercida contra a mulher, uma vez que acarreta sua vitimação e se constitui como um subsistema de controle social e de violência institucional, marcado pela seletividade de homens e mulheres. Assim, acaba por denotar e reproduzir a violência e a desigualdade características das relações sociais e de gênero, porquanto recompõe as figuras estereotipadas vinculadas a essas relações[16].

Desse modo, a palavra da vítima é desvalorizada, tratada com desconfiança e, quando considerada, passa por um determinado direcionamento, mediante perguntas que induzem respostas específicas. A violência psicológica que lhe é exercida, juntamente com a agressão física, é relativizada, menosprezada, tornando seus traumas e seu sofrimento invisíveis aos olhos da justiça criminal e desencorajando a vítima a realizar uma denúncia contra seu agressor.

Não há uma incriminação igualitária de condutas, distribuindo-se seletiva e desigualmente tanto a estigmatização de criminoso quanto a de vítima - nesta se encontra a figura da mulher promíscua, de moral duvidosa, enquanto a imagem do daquele representa um homem “anormal”.

Diante de todas estas assertivas, torna-se ainda mais evidente a necessidade de repensar o ensino e a atividade jurídicos sob uma perspectiva de gênero, que contemple a noção das possíveis decorrências físicas, sociais e psicológicas da agressão sofrida[17], bem como de humanizar o atendimento à vítima de violência, mormente porque esta “[...] ao pedir ajuda, seja no âmbito da justiça ou da saúde, muitas vezes está sujeita a ser submetida a outra violência: a do preconceito, do julgamento e da intolerância”[18].


Notas e Referências:

[1] María Acale Sánchez elucida que, pela expressão violência de gênero, entende-se uma classe de violência que afeta os distintos gêneros pelo próprio pertencimento a eles e pela função que cada um desempenha tradicionalmente. Ainda assim, é prioritariamente perpetrada contra o gênero feminino, situação a que mulher é submetida por sua própria condição de mulher e pelo papel social que socialmente lhe foi determinado, e que não se limita ao contexto familiar.  In SÁNCHEZ, María Acale.  La discriminación hacia la mujer por razón de género en el Código Penal. Madrid: Editorial Reus, 2006, p. 7.

[2] Segundo o IPEA, ocorrem aproximadamente 500 mil casos de estupro contra mulheres no Brasil por ano, sendo que apenas cerca de 52 mil deles chegam ao conhecimento da polícia. < http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=25248>

[3] < https://nacoesunidas.org/por-que-falamos-de-cultura-do-estupro/>

[4] “Uma certeza tradicional vem confirmar essa análise da aparência dos gestos realizados: a suposta ausência, na mulher, de um comportamento responsável, uma dúvida sobre suas decisões pessoais e privadas. Devemos dizer que a história do estupro se encontra aqui com a história das representações da consciência, e também com a das representações da feminilidade. Outro conjunto de razões leva, assim, a mascarar a violência sexual: as diversas maneiras de recusar à mulher um status de sujeito.” - VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 43.

[5] “Constatamos que ou a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de poder e ira. O estupro, então, é um ato pseudo-sexual, um padrão de comportamento sexual que se ocupa muito mais com o status, agressão, controle e domínio do que com o prazer sexual ou a satisfação sexual. Ele é comportamento sexual a serviços de necessidades não sexuais.” In KOLODNY, Robert. C.; MASTERS, William H.; JOHNSON, Virginia E. Manual de medicina sexual. Tradução por Nelson Gomes de Oliveira. 1982. IN: ANDRADE, Vera Regina Pereira de.  A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Disponível em: <ttps://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15185/13811>, p. 26.

[6] Cf. BOURDIEU, Pierre.  A dominação masculina. 7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

[7] Conforme Michel Foucault, a sociedade é que determina, devido aos seus próprios interesses, o que deve ser criminalizado, utilizando-se a lei de linguagem própria, mediante um discurso e uma concepção de justiça pertencentes a uma determinada classe. Para o autor, a lei é moldada para todos em nome de todos, e “é prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a outros; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem que sanciona outra”, observando que a lei e a justiça não deixam de revelar a assimetria de classes. In  FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões. Tradução por Ligia Pondé Vassalo. 8. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. p. 243.

[8] BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 21.

[9] Este incluía o Capítulo II nomeado “Dos Crimes Contra a Segurança da Honra”. A título exemplificativo, cita-se a redação do art. 222: “Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças com qualquer mulher honesta”, observando-se que no art. 219 constava a vedação do ato de “deflorar mulher virgem, menor de 17 anos”.

[10] FERRAZ, Carolina Valença (Coord.). Manual dos direitos da mulher. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 259.

[11] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. 3. ed. v. VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 148.

[12] Sobre o Título “Dos Crimes contra os Costumes”, Cezar Roberto Bitencourt considera que já era considerado ultrapassado mesmo quando da ocasião da promulgação do Código de 1940, porquanto não detinha equivalência em relação aos bens jurídicos que buscava proteger, transgredindo a concepção de que os vocábulos utilizados deveriam representar os bens tutelados ao identificar a imposição de um padrão mediano no que se refere à ética, ao moralismo sexual e ao aprisionamento da sexualidade feminina. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13.

[13] Na exposição de motivos do Código de 1940, formulada por Francisco Campos, ele afirmou “Já foi dito, com acerto, que ‘nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais.” – Disponível em: <http://www.diariodasleis.com.br/busca/exibelink.php?numlink=1-96-15-1940-12-07-2848-CP>.

[14] Para Nelson Hungria, por exemplo, não havia ilicitude em tal ato, uma vez que pertencia ao exercício regular de um direito, proveniente de compromissos matrimoniais (dever de coabitação- art. 1.566, inciso II, do Código Civil), e, portanto, só haveria estupro fora do casamento. Disponível em: HUNGRIA, Nelson (MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal: parte especial. 27. ed. v. II. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 387).

[15] GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crimes contra a dignidade sexual. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 67-68.

[16] ANDRADE, p. 3-4.

[17] Conforme tutelado pela Lei 12.845/13.

[18] FERRAZ, 2013, p. 272.


Marília Cassol Zanatta . Marília Cassol Zanatta é Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Assessora Jurídica no Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC, pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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