Cultura do Estupro e futebol: uma guerra midiática travada no silenciamento da violência contra as mulheres nos bastidores do esporte

13/11/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A proposta que iremos discutir essa semana não é nova, mas está ligada a uma ordem de não-elaboração discursiva e psicológica, sobre a ideia do vício de consentimento sexual ou da naturalização da cultura do estupro, presentes no futebol. Conforme presenciamos nas últimas semanas, a narrativa entregue pela imprensa revelou uma denúncia de estupro coletivo envolvendo o jogador Robinho, condenado por um crime de estupro na Itália, em janeiro de 2013. A notícia reverberou através das grandes mídias internacionais durante semanas, alcançando a marca das notícias mais comentadas dos últimos tempos no Twitter[1]. Após a notícia chegar ao conhecimento dos seus patrocinadores e dirigentes, o clube Santos se viu obrigado a suspender o contrato de trabalho com o jogador. A notícia inesperada sobre Robinho, desde então, vem dividindo opiniões entre colegas e torcedores, dentro e fora do time.

Durante anos, o futebol se consagrou como um dos esportes de mais alta expectativa de rendimentos — seja pela excelência no preparo físico dos jogadores — seja por movimentar mercados, capitais e consumos absolutos. Nos dois sentidos, o futebol é capaz de se organizar sobre uma racionalidade totalizante de desempenho, que em linhas gerais, baseia-se na entrega de resultados, na confirmação de si mesmo através do próprio talento, e no encontro com uma masculinidade mais exibicionista. No entanto, quando essa masculinidade vai à erosão, através da figura carismática de alguns jogadores e seus atos impensáveis, o futebol passa a se tornar um ambiente hostil à voz das vítimas, principalmente, diante do crescente número de estupros divulgados.

A medida em que se escolhe publicamente enfrentar ou falar sobre o problema do machismo, da masculinidade tóxica e da cultura do estupro, há também uma reação, um dever transformativo em curso: nasce uma expectativa que deve vir ao encontro de uma ruptura com certos signos sexistas. Diante isso, a procura por uma interlocução que inaugure novos marcos sobre a masculinidade deste 1968/1970, ainda aguarda pela revolução. Isso porque nenhum processo de construção de gênero deve ser conformado como irreversível. A demanda por reconhecimento dos abusos sexuais vem desacomodando espaços sociais, inclusive no lugar do esporte, para que se deixe de singularizar o feminino como único responsável pela violência, orientada contra as vítimas. Diante disso, torna-se quase inautêntico pensar que homens não devam falar sobre o que pensam, como se estivessem de fora da cultura do estupro. Essa estratégia negativa serve para evitar que olhem ou falem mais sobre si mesmos.

No entanto, é preciso salientar que a crítica cultural feita aqui ao futebol deve ser dirigida de modo uniforme aos valores tradicionais da heterossexualidade. Com isso, quero dizer que o debate sobre a sexualidade, sobre o consentimento e a distinção das formas de abuso, da violência sexual e do machismo, em muitas circunstâncias comuns, deva sim ser deslocada do seu “paradigma particular” para decidir limites políticos e coletivos importantes, tanto para as vítimas quanto para os seus ofensores.

Para ensinar que existem zonas de fronteira a serem sinalizadas e aprendidas publicamente antes de acessarmos o corpo e a intimidade de alguém. Quando se trata de conviver com a violência sexual do estupro, não é apenas sobre o corpo das mulheres brancas e cisgênero que recai ameaças de obscuridade pela falta de informação, pelo julgamento público. Todos os outros corpos feminizados, prostituídos, e empobrecidos de autonomia são colocados também numa posição semelhante de fragilidade e de desimportância. E isso também inclui aos homens. Inclui o Estado e uma cultura patriarcal que se beneficia da ignorância, da censura, da covardia ou do desconhecimento intencional gerado sobre o corpo das mulheres. Sem a ação dos movimentos feministas, a violência hegemônica da cultura do estupro prevalece sobre a liberdade, sobre o conhecimento e os desejos femininos, subjugando-os e fazendo-as temer confrontá-los, simultaneamente.

Quando não lidarmos muito bem com isso, a cultura machista no futebol se encarrega de multiplicar o medo e, através deste, pactos de silenciamento para a garantir impunidades, seja entre as vítimas ou entre agressores e seus cúmplices. Em destaque, estão os escândalos protagonizados por alguns jogadores famosos. Em muitos casos, geralmente nem costumam ser denunciados, restando apenas uma média de notificações de 10% dos casos denunciados, que se somam a um total de 500mil casos de estupros por ano[3].

Por outro lado, há outros casos que são tratados como incidentes e terminam em tragédia. Mesmo após uma ou várias condenações criminais por violência de gênero (como o caso do goleiro Bruno, atual do clube Rio Branco), já declarou apoio a Adriano “Imperador”, acusado em 2010 de agredir a companheira: “quem nunca saiu na mão com uma mulher?”, disse. A idolatria do futebol é quase inabalável e oferece a muitos a oportunidade de encontrar reabilitação na carreira profissional e na vida afetiva sem maiores dificuldades. Evidentemente que não se está condenado a chance de um recomeço, mas sim a forma como os crimes violentos passam a atormentar para sempre, para o resto da vida alguns dos seus envolvidos. Nestes casos, há uma desnaturalização da violência observada através de uma leitura de gênero hegemônica, isso porque a violência só é pré-concebida como parte da masculinidade que, por sua vez, é incapaz de controlar o próprio desejo. Do contrário, para as mulheres emasculadas, a violência nunca se funda como parte do seu território. Após o estupro, lidar com sequelas implica em dirigi-las contra si mesmo, contra a sua incapacidade de defender-se, contra a autoestima desfigurada e contra o trauma elaborado como um terrível fardo. Sentimentos, estes, quase insuperáveis de serem reconstruídos após o sofrimento de uma violência desse tipo. É o que a sociedade deseja que acreditemos sobre o estigma do estupro...

Em relação à justiça, os próprios tribunais lidam com uma consequência que ampara casualidades dissonantes: uma arquitetura de leis penais pensadas para beneficiar homens brancos, esposas e suas herdeiras versus o número extraordinariamente baixo de homens brancos que secularmente, de fato, chegam a ser processados e condenados pela prática de violências sexuais[4]. No ano de 2018, foram registrados 66mil vítimas de violência sexual[5]. Conforme dados extraídos da Secretaria da Segurança Pública, a partir de dados coletados em vários estados do país, diagnosticou-se que grande parte das violações acontece em casa[4]. De cada dez estupros, oito são praticados contra meninas e mulheres, dois contra meninos e homens. Já mulheres negras representam entre as estatísticas um total de (50,9%) dos casos. Por dia, acontecem 180 casos de estupros por no Brasil, o que representa  uma cifra de 4,1% acima do verificado em 2017, pelo anuário de Segurança pública[5]. A cada 11 minutos uma mulher é vítima de um crime de estupro[4.

No total, essa média alcança a marca de 50mil crimes. E nesses casos midiáticos, será que a fama do réu não conta para priorizar interesses econômicos em jogo, que não deixarão de ser "desconfirmados" pela justiça? Podemos aqui, caracterizar essas relações disfuncionais com a sexualidade olhando para a identidade do fetichismo no esporte, para o princípio de desempenho[6]. Racionalidade, esta, bem concebida por expressões de violência e de autoafirmação de uma masculinidade tóxica. Hoje, a expressão das políticas do desempenho ocupam cada vez mais espaços no âmbito da vida. As fronteiras entre o público e o privado dissolvem-se com facilidade no mundo da fama, principalmente, em relação à vivência fluida do sexo. No mundo do esporte, essas mesmas realidades também passam a serem aprisionas pelo mesmo modelo ditatorial da performance[6].

Esta mesma política, por sua vez, parece ir além das necessidades de auto exposição dos jogadores, sobre exibir um excelente condicionamento físico, sobre destacar-se no saldo de gols dos campeonatos brasileiros, ou de aperfeiçoar uma imagem atraente para representar grandes marcas de patrocinadores. A eficiência dos jogadores deverá realizar o modelo de desempenho para o qual foram treinados[6]. Agir para cumprir acordos milionários arranjados entre os clubes, participar de campanhas publicitárias dos seus times. Por outro lado, na vida pessoal, são mal formados em direção à moral e a uma posição ético-profissional capaz de conciliar a fama, o rápido sucesso financeiro e as glórias da profissão. A impressão é a de que os jogadores nunca conseguem adquirir uma imagem própria, estável sobre si mesmo.   

Neste sentido, quero dizer que a política do desempenho é complementar ao desejo de performar uma masculinidade superlativa que, em alguns casos especiais, pode estar alinhada a uma vida repleta de demonstrações ostensivas de virilidade. A rápida ascensão econômica traz essa possibilidade de capilarizar o poder econômico como um monopólio do próprio prazer, e de usá-lo a seu favor para reforçar o seu status de macho-arfa-bem-sucedido. Com isso, não digo que todas as formas de masculinidade no esporte sejam naturalmente violentas, mas sim que há uma permissividade estrutural da violência de gênero e da discriminação ligadas à cultura do futebol. Nas duas situações, a vista grossa de alguns times, às vezes, chega a tal ponto de quase a inocentá-la, priorizando o talento desses atletas acima de qualquer dever com a justiça. Esse mesmo comportamento negligente busca reforçar espaços de discriminação (de gênero, de raça) não apenas dentro clubes, mas na mensagem de conivência passada aos torcedores.

Nesse sentido, percebe-se que os jogadores que desempenham o tipo de masculinidade de dominância autoritária, agem através de uma brecha cultural que se expande para receber, naturalizar, e, principalmente, justificar o uso da força no ato sexual, praticado sem o consentimento (ou por culta exclusiva) da vítima. No caso do jogador Robinho, nem mesmo os áudios conseguem fazê-lo reconsiderar a gravidade explícita do abuso que aconteceu, quando a vítima ainda estava inconsciente. Em outros momentos da transcrição de uma conversa grampeada pela justiça, há uma clara manifestação de gozo do jogador, enquanto comemora uma impunidade apressada. Não há remorso, mas sim uma “inconsciência” dissimulada entre os limites do abuso no ato sexual, da reciprocidade do desejo e, principalmente, nos casos em que não há a mínima possibilidade de defesa.

No entanto, chama atenção a reação quase imediata do clube santista de não se comprometer publicamente com manutenção do jogador na temporada. No caso em questão, Robinho, diferente de tantos outros, não parece interessado em demonstrar sentimentos de perplexidade moral ou arrependimento pelos seus atos. Ao contrário, o jogador repudiou a “patrulha feminista” por existir e pela sua vigilância sexual de proteção às vítimas. Mas, porque o peso de ter consumado o crime de estupro pelo jogador é posto em dúvida, enquanto o da vítima é, na maioria das vezes, inquirido e divulgado como uma novidade midiática consumível? Em alguns casos judiciais, a humilhação da vítima faz parte de um ritual político que pretende purgar a sensualidade feminina da sua promiscuidade, algo que facilmente possa induzir os homens ao erro ou ao equívoco do abuso sexual, “sem intenção” de cometê-lo  (relembrando o famigerado “estupro culposo”). Revitimar a vítima alegando os motivos mais absurdos possíveis — quase sempre mencionando motivações econômicas — não deixa de ser mais uma manobra política que ainda triunfa nos tribunais. Os dispositivos jurídicos estão alinhados a essa compreensão política sobre o estupro, de enxergar a vítima como uma predadora, uma “alpinista sexual”. Enquanto isso, nas cortes, garante-se a agressores que saiam vitoriosos, intocáveis, após o acerto de contas com a justiça. Além disso, fica a impressão de não ter arriscado muita coisa após atacar uma mulher.

O fenômeno da “Lacração” na internet tem sido muito atuante sobre essas questões de gênero, e nessa onda, três hashtags foram criadas como forma de resposta para os comentários de Robinho. Demonstrações como essas na internet, nos mostram que os torcedores que consomem o futebol e que acompanham os clubes, também são agentes dessa mudança substancial, filtrando denúncias e promovendo exposições públicas como forma de enfrentamento e prevenção da violência sexual e a outras, associadas ou não, ao gênero esportivo.

Não podemos esquecer que a dimensão da cultura do Estupro está alicerçada a estratégias de poder, de consumo da violência e de controle da sexualidade/reprodutivo, assim como acontece em muitas relações íntimas heterossexuais, nos bastidores (dentro e fora dos gramados), no meio artístico, musical e nas redes sociais. A diferença que me parece admirável destacar está na luxúria, quando esta se torna um aparato chave para fortalecer o hedonismo e o narcisismo. Subjetividades que permitem aos jogadores instrumentalizar a sua potência masculina como referência de um poder-menosprezar a dignidade do outro. Nesse sentido, a dor da vítima passa a ser consumível. A satisfação do sexo pode estar na capacidade de infligir medo e humilhação às mulheres, e, com isso, passa-se a gozar desses atos de violência por mera distração. É o poder de defesa que se retira da vítima, do seu sexo, quando o peso dúvida pende mais dolorosamente à vítima. O prazer de subjugar através do medo torna-se, portanto, a sua melhor arma de excitação contra o sexo estrangeiro[2]. A cultura do estupro nada mais é do que a manutenção desse pacto de violência que reafirma valores de fraternidade, agressividade e solidariedade entre os homens. Ou quando estes passam a se tornarem cúmplices daquilo que sustenta as amarras da dominação, a partir da exclusão dos corpos feminizados dos espaços públicos, como o futebol.  

 

 

Notas e Referências

[1]Reportagem de BITTENCOUT, Júlio.<https://revistaforum.com.br/noticias/dialogos-que-confirmam-robinho-como-estuprador-explodem-nas-redes/> 16. Out. 2020. Acesso: 02.nov.2020.

[2] DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. Tradução Marcia Bechara -- são Paulo: n-1 edições, 2016.

[3]Atlas da Violência, 2018. Ipea/FBSP, 2018.  <https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/estupros-no-brasil/> Acesso: 27.out.2020.

[4] Reportagem: Estupro no Brasil: 99% dos crimes ficam impunes no país. Biografia de um crime sem castigo, 2017  <https://www.metropoles.com/materias-especiais/estupro-no-brasil-99-dos-crimes-ficam-impunes-no-pais> Acesso: 02.nov.2020.

[5]ESTATÍSTICAS - Estupro bate recorde e maioria das vítimas são meninas de até 13 anos. MPPR. 09.mar.2020. <http://crianca.mppr.mp.br/2020/03/233/ESTATISTICAS-Estupro-bate-recorde-e-maioria-das-vitimas-sao-meninas-de-ate-13-anos.html> Acesso: 27.out.2020.

[6] HAN, Byung Chul. A agonia do Eros. Tradução Ênio Paulo Giachini. – petropolis, RJ; vozes, 2017.

 

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