CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE COMO MECANISMO DE CONTENÇÃO DA SELETIVIDADE PENAL

26/10/2018

Coluna Espaço do Estudante

Em tempos onde a verticalidade da violência estatal se encontra mais acentuada, de forma tal que expõe diariamente as garantias processuais e constitucionais ao vilipêndio de flexibilizações, com a ingênua pretensão da defesa social, passa a ser indispensável para os juristas comprometidos com a luta democrática, buscar mecanismos que visem conter a expansão do Estado policial em detrimento do Estado Democrático de Direito.

O viés punitivista estatal, toma contornos mais hialinos quando se observa a criminalização outorgada pela política criminal (ir)racional do capital que, tem como clientela  preferida, aqueles pertencentes a base da pirâmide da hierarquia social[1]. Portanto, no presente artigo, a proposta é atentar para um mecanismo do Direito Penal que propõe promover uma contenção no expansionismo da criminalização seletiva, possibilitando desta forma, uma aplicabilidade do Direito Penal condizente com a pluralidade e desigualdade social brasileira, fugindo da ficção praticada atualmente, que tem falhado miseravelmente na função de constranger e retrair o punitivismo estatal seletivo.

 

  • CRIMINALIZAÇÃO E CRIME

 

A história da configuração do poder punitivo para a neutralização da conflitividade social estaria associada à formação do Estado e ao processo de acumulação de capital. O crime e seus tratamentos não constituem categorias ontológicas, morais ou “da natureza”. O sistema penal aparece como constructo ou dispositivo, relacionado à realidade econômica e social e às relações de força presentes no modo de produção capitalista[2].

Desta forma, em síntese, os processos de criminalização se dão a partir da atividade legislativa (criminalização primária), que atende aos anseios do poder estabelecido e, posteriormente, através das instituições que compõem o sistema penal (Poder Judiciário, Ministério Público e Policia) se aplicam as políticas criminais do poder (criminalização secundária). Ocorre que, essa criminalização, constada através dos dados sensíveis (dos sentidos) e empíricos, é distribuída desigualmente.

De acordo com a doutrina majoritária, pelo conceito analítico, na concepção tripartida, crime é todo fato típico, antijurídico e culpável. Para a teoria bipartida, o crime é um fato típico e antijurídico (ilícito), sendo a culpabilidade apenas um pressuposto de aplicação da pena. Tendo isso em vista, independentemente da posição dogmática que se adote, nota-se que a culpabilidade - seja funcionando como um dos elementos do crime, seja funcionando como um pressuposto de aplicação ou isenção de pena -  aciona o último e mais combativo obstáculo à pretensão punitiva do Estado, haja vista a impossibilidade prática de no labor diário, frear a expansão da tipicidade e de ser categóricas e taxativas as hipóteses excludentes de antijuridicidade.

 

  • CULPABILIDADE NORMATIVA E CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE

 

A culpabilidade é o juízo que permite vincular pessoalmente o injusto a seu autor, operando, pois, como o principal indicador oferecido pela teoria do delito para autorizar o exercício de poder punitivo sobre ele e limitar a magnitude de tal exercício[3]. Ocorre que a culpabilidade vem sendo utilizada como mero juízo de reprovação, ou seja, juízo de censura sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente, aferindo se no momento da ação ou omissão, este agente agiu com conhecimento da potencial ilicitude do fato, se era imputável e se poderia agir de acordo com o Direito, ou seja, se era exigível conduta de acordo com a norma no momento fático.

Como já demonstrando, o sistema de justiça criminal atende aos anseios do poder, produz e reproduz a realidade socioeconômica deste e, portanto, como ensina Zaffaroni, sendo o poder punitivo estruturalmente irracional, seja pela falta de uma reconhecível utilidade da pena, seja pelo inevitável vício político da seletividade, a culpabilidade não pode ser concebida como uma reprovação do agente que legitime o poder punitivo por ela habilitado, e sim apenas como um limite à irracionalidade seletiva e a seu consequente vício político.[4]

Diante disso, Zaffaroni nos brinda com um fundamento dogmático para que alcancemos uma censura mais crítica e realística da culpabilidade. Ele estabelece uma referência material da culpabilidade, por meio da política criminal posta, que pretende superar a dependência da autodeterminação do agente na culpabilidade, ou seja, a empiricamente indemonstrável possibilidade de se comportar ou não conforme o Direito, e propõe a análise do estado de vulnerabilidade na qual esse agente se encontrava no momento em que foi selecionado pelo processo de criminalização.

Sendo a seletividade do sistema penal um dado empírico, demonstrável e observável, a culpabilidade por vulnerabilidade permite vincular de forma personalizada o injusto penal a seu autor e indicar a máxima magnitude da pena cabível, de acordo com o esforço por vulnerabilidade que esse agente promoveu.[5] Entende-se àqueles mais vulneráveis, os que pertencem a camada mais baixa da hierarquia social, cuja as condições de sociabilidade familiar, educacional e econômica, são mínimas ou inexistentes (esmagadora maioria dos residentes do sistema carcerário), portanto, por essa negação de direitos básicos, empreendem pouco esforço para se posicionarem no alto nível de vulnerabilidade que se encontram perante o poder punitivo estatal (tendo em vista o caráter seletivo do sistema). Assim, deve a pena ser atenuada ou extinta de acordo com a intensidade do esforço empregado para atingir essa vulnerabilidade no momento da ação ou omissão, ou seja, pouco esforço em regra.

Em sentido contrário, aqueles mais ricos e próximos do poder, o risco de sofrer o processo de criminalização é escasso ou inexistente, portanto, o nível de vulnerabilidade perante o sistema é baixo, sendo, desta forma, necessário um alto esforço para se pôr em condições de vulnerabilidade suficiente que desperte o acionamento do sistema criminal. Assim, a pena será concebida de acordo com a intensidade deste esforço empregado, ou seja, alto esforço para chegar no ponto de vulnerabilidade habilitador da ação do poder punitivo estatal.

 

  • CONCLUSÃO

 

De acordo com a exposição feita, é preciso que se atente para a forma seletiva que o sistema penal atua no processo de criminalização, atendendo a ordem social e econômica vigente. Para que se alcance qualquer pretensão mínima de justiça, não podemos negar esse dado empiricamente verificável, sob pena permanecemos no atual sistema racista, produtor e reprodutor de desigualdades sociais. É preciso destacar que, como o neófito que aqui escreve, os juristas comprometidos com a ordem democrática, devem entender que a culpabilidade pela vulnerabilidade não quer ser mais punitiva com os mais ricos e não busca novos métodos de criminalização, pelo contrário, procura pautar uma atuação não seletiva do sistema punitivo, contendo desta forma a sua expansão genocida atual. Muitos acreditam ser utopia as pretensões garantistas, do direito penal mínimo e abolicionistas, mas utopia mesmo, é continuar acreditando em um sistema que só coleciona falhas e nenhuma glória há séculos.

 

Notas e Referências

[1] Gráfico 16, Gráfico 17, figura 4 e figura 6. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, junho/2016, p. 30, 32 e 33. Segundo o estudo, roubo, tráfico de drogas e furto, correspondem a 64% dos condenados, sendo esses, crimes de caráter patrimonial ou de subsistência alternativa diante da exclusão social. Além disso, os dados revelam que 61% dos condenados, não possuem nem ensino fundamental completo e apenas 9% possuem ensino médio completo e, por fim, 64% dos condenados são negros. Podemos observar, assim, que o sujeito padrão do processo de criminalização da pós-modernidade neoliberal é: negro, pobre e sem estudo formal.

[2] Fragoso, Christiano Falk. Reflexões criminológicas e dogmáticas acerca do crime de desobediência. Patrícia Mothé Glioche Béze, Vera Malaguti Batista. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 15

[3] Baumann Jürgen – Weber, Ulrich – Mitsch, Wolfgand, p. 387. Apud. Zaffaroni, Eugenio Raúl – Direito penal brasileiro, volume2, tomo 2/ Nilo Batista, Alejandro Alagia, Alejandro Slokar. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 160

[4] Zaffaroni, Eugenio Raúl – Direito penal brasileiro, volume2, tomo 2/ Nilo Batista, Alejandro Alagia, Alejandro Slokar. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 165.

[5] Zaffaroni, Eugenio Raúl – Direito penal brasileiro, volume2, tomo 2/ Nilo Batista, Alejandro Alagia, Alejandro Slokar. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 168

 

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