“Todos somos la obra de la naturaleza y de la historia, no sus víctimas pasivas. Todos podemos hacer un esfuerzo para darle la vuelta a la desventura, verla como una injusticia y actuar en consecuencia”. Judith Shklar
O que modela uma sociedade boa e decente, o que legitima e assegura o «direito de ser» não é a retórica ou discurso de que a igualdade significa simplesmente que as mesmas leis são de aplicação a ricos e pobres[1]. Também nossos pequenos e concretos atos mentais e de comportamento: a generosidade que dispensamos em nossas relações, a maneira como educamos nossos filhos, como ensinamos a nossos alunos, como nos relacionamos com os demais, como respeitamos cotidianamente os limites de nossos direitos e cumprimos com nossos deveres, etc...etc., são todas pequenas atitudes, decisões triviais, gestos da vida privada que, a largo prazo, têm muito mais peso que todas as guerras napoleônicas.
Já não serve de nada fugir de toda a tensão gerada pela desigualdade com a encantadora proclama de que queremos uma democracia com igualdade, ou de que a justiça pressupõe a igualdade, ou de que a igualdade pressupõe a liberdade, ou com qualquer outro slogan equivalente. O mundo não é um lugar simples (nem narrativamente nem, bem sabe Deus, eticamente) e a perspectiva de intentar fazer como se o fora é ridícula. A desigualdade como experiência fundamental é prévia a toda reflexão teórica e não precisa para expressar-se de um argumento analítico, de alguma concepção sistemática da justiça ou de qualquer discurso político. Mais bem é ao revés, pois todas nossas categorias normativas e, especialmente, as de caráter moral, jurídico, filosófico, social, econômico e político, provém da experiência e a sensação irada de repúdio ante o intolerável.
Daí que um cidadão intelectualmente honrado, e que queira propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrado também na ação), tem que tomar-se em sério a tensão entre o absurdo da (dolorosamente triste e real) desigualdade e as crenças a que dá culto, elaborá-la como tal tensão, e não aventurar-se em liquidá-la através de ecléticas composições vazias de conteúdo ou, ponhamos o caso, por intermédio do expediente retórico de uma igualdade “materialmente justa” ou “substancial”, de alguma artimanha argumentativa que sirva de vaselina para meter até o fundo determinadas ideologias, de barreiras ou contorcionismos linguísticos injustificados que fragmentam e dissimulam a realidade das coisas, de proposições praticamente cósmicas ou de qualquer outro ponto de vista que escraviza a cidadania em uma forma de vida estéril[2]. Nenhuma destas posturas é divertida ou merece dignidade. Os relatos, as ideias e as explicações da larga lista de «crenças vudus» matam o pensamento e, na mesma medida, enervam a ação.
Recordemos que a “guerra sem quartel” entre as demandas da realidade, a pantomima de uma cultura débil e insegura que pratica legalmente seu desdém à igualdade, as ambições da ética e a voracidade da extrema desigualdade passa por buscar meios e/ou alternativas realistas e factíveis (aceitáveis e legítimas) que permitam a sociedade recuperar o controle democrático sobre as decisões sociais, políticas e econômicas, e aos indivíduos - a muitos, a milhões deles – recuperar o controle sobre suas próprias vidas, quer dizer, de viver de acordo com seus próprios planos de vida. E não estamos dizendo que o fim justifique qualquer meio, senão que, eventualmente, o fim termina sendo definido e alcançado pelos meios que utilizamos.
Do contrário, atuaremos como aquele indivíduo a que se referia Woody Allen em Annie Hall, justo depois da despedida, que vai a ver ao psiquiatra e lhe diz: «“Doctor, mi hermano se ha vuelto loco. Se cree que es una gallina”. Y el médico le contesta: “Bueno, ¿y por qué no hace que lo encierren?”. Y el tipo le replica: “Lo haría, pero es que necesito los huevos”». Isso expressa muito bem o que alguns sentem acerca da desigualdade, da ausência do «direito de ser» e da falta de cuidado do outro: são completamente irracionais, insofríveis, disparatados, absurdos, inumanos… Mas cremos que seguem mantendo-os porque uma pequena parte necessita “los huevos”.
[1] Este texto, dividido em quatro partes, corresponde a um fragmento, ligeiramente modificado, do artigo elaborado pelos autores (Cuidado e «direito de ser»: O que fazer com a desigualdade?) para o livro "CUIDADO E O DIREITO DE SER: RESPEITO E COMPROMISSO” - Projeto Brasil/Portugal 2017-2018; Coordenação: Tânia da Silva Pereira (UERJ), Guilherme de Oliveira (Univ. Coimbra/Portugal) e Antônio Carlos Mathias Coltro (TJSP), Editora GZ, 2017.
[2] No livro El forastero misterioso, de Mark Twain, o protagonista, Theodor Fischer, resulta seriamente desiludido com a vida. Acompanhado por um anjo, curiosamente chamado Satanás, Fischer vê o lado escuro da vida, e a aparente desesperança que enfrenta toda a humanidade. Ao final da história, seu bom humor se restaura quando seu angelical companheiro lhe diz que a realidade - com todas suas provas e tribulações – não é mais que um pensamento em sua cabeça. "La vida misma es sólo una visión, un sueño", lhe diz Satanás. O efeito sobre Fischer foi imediato: "Una influencia sutil sopló sobre mi espíritu... trayendo consigo una sensación vaga, tenue, pero bendita y esperanzadora de que las palabras increíbles puedan ser verdad - incluso tienen que ser verdad". É a este tipo demoníaco de sujeito ao que nos referimos.
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