Cuidado, «direito de ser» e desigualdade (Parte 3)

09/02/2018

“No hay ninguna razón para pensar que las cosas van a mejorar. Corren tiempos muy peligrosos para el mundo y no me refiero solo al tema económico, no sabemos lo que va a pasar. Soy pesimisita, pero no infeliz”. Cormac McCarthy 

Como cuidar dos demais se assumimos que nossa percepção equivocada do mundo e de como este funciona nunca poderá deter a insuportável multiplicação da desigualdade? A quem importa verdadeiramente o «direito de ser» ante tamanha desigualdade? Qual a estratégia ótima para educar o cuidado no lado escuro de um mundo tão absurdamente desigual e ao mesmo tempo - como dissemos antes - refutar toda espécie de cinismo desapiedado que se impõe por encima do nível moral que reservamos a nossos congêneres? Como refutar toda definição, teoria ou mecanismo perfeito desenhado para manter a gente convencida de qualquer coisa, apesar da evidência, da razão, da coerência e das estatísticas em contra? E já que estamos: Como podemos evitar a conclusão de que encomendar a Deus a solução da desigualdade seja a única resposta possível? [1]

A autêntica igualdade (ainda que aproximada e sempre dependente de valorações concretas) somente pode dar-se por meio do respeito, do cuidado e do reconhecimento do outro, porque a condição básica para ser um bom cidadão é receber o reconhecimento, o cuidado e o respeito que se lhe deve e outorgá-lo aos demais. Este reconhecimento/cuidado/respeito, para ser pleno e não cair na versão vulgar e perversa da caridade[2], postula e requer a harmônica integração de seres livres; e, sobretudo, implica exorcizar a resignada indiferença, fomentar o exercício de nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos.   

Para dizer em termos mais modestos e mais realistas, do que se trata é aprender a saber atender a voz do outro e de abraçar uma igualdade que abranja fraternalmente a todos os indivíduos em condições de liberdade e autonomia plena, isto é, como verdadeiros cidadãos. É necessário, na teoria e práxis do cotidiano, que nos situemos no lugar do outro para reconhecer que cada um de nós não é mais que um ser entre outros, todos os quais têm desejos e necessidades que lhes importam, o mesmo que a nós nos importam nossas necessidades e desejos: ter interesse por ou cuidar de alguém ou algo significa ou consiste essencialmente, em síntese, em considerar suas perspectivas, saber escutar suas necessidades[3], cuidar de seus interesses e outorgar a suas vozes seu devido peso como razões para atuar ao serviço dos mesmos.

Somente por essa via as vítimas sociais (“os pobres”, “os piores”, “os fracassados”, “os perdedores”, “os desafortunados”...) terão a oportunidade para emancipar a si mesma em uma «sociedade decente» cujas instituições não devem humilhar às pessoas e cujos cidadãos não se humilham uns aos outros, uma sociedade que permite viver juntos sem humilhações, discriminações e com dignidade (A. Margalit). E posto que a igualdade meramente formal não é capaz de garantir a igualdade de todo aquele que tem rosto humano (J. G. Fichte), atuar moralmente significa ajudar a extrair o melhor do ser humano para ver a desventura como uma injustiça e atuar em consequência; significa aprender que evitar, eliminar ou mitigar o sofrimento (presente e futuro) é a máxima, a norma moral absoluta, o imperativo categórico supremo, o cuidado definitivo.

Esta é a condição de possibilidade da igualdade, do «direito de ser»  e do «cuidado do outro»: a ausência ou supressão da dependência, da indiferença e da exclusão social. Uma «práxis ética» comprometida (quer dizer, uma atividade consciente e transformadora de uma circunstância humana, de certa forma de relações humanas, ao mesmo tempo em que transforma ou modela o caráter da pessoa individual) que cabe a cada um de nós, no mais íntimo de nossa consciência moral de responsabilidade pessoal e solidariedade social.

Ignorar esta responsabilidade nos deixa a mercê do azar insensível ou, o que é inclusive pior, dos parasitas exploradores travestidos das mais diversas pelagens: política, religiosa, moralista, relativista, etcétera. Depois de tudo, o ser humano não é somente a única espécie capaz de coreografar de forma ativa o futuro que quer, senão que é o único animal vivente que está cognitivamente dotado da capacidade para poder superar a indiferença, remover o sofrimento inecessário e eliminar as desvantagens evitáveis.[4]

 

[1] Este texto, dividido em quatro partes, corresponde a um fragmento, ligeiramente modificado, do artigo elaborado pelos autores (Cuidado e «direito de ser»: O que fazer com a desigualdade?) para o livro "CUIDADO E O DIREITO DE SER: RESPEITO E COMPROMISSO” - Projeto Brasil/Portugal 2017-2018; Coordenação: Tânia da Silva Pereira (UERJ), Guilherme de Oliveira (Univ. Coimbra/Portugal) e  Antônio Carlos Mathias Coltro (TJSP), Editora GZ, 2017.

[2] Não percamos de vista o mal que há na caridade: a caridade é a antítese dos direitos humanos. A igualdade é pisoteada pela caridade e sua forma cristã de humanitarismo, donde as espórtulas de «aceitação», «tolerância» e «redenção» se oferecem de forma seletiva ou são impostas desde o exterior de maneira caprichosa, contingente e temporal. A caridade, pelo geral, só beneficia ao doador, quase sempre em algum tipo de ato público interessado, e ofende a humanidade daqueles que se encontram no lado receptor: sua humanidade resulta maltratada pela dependência forçosa de outras pessoas. A caridade, enfim, como uma questão de imagem e sutil forma de perversão da noção de respeito e reconhecimento, "degrada a quien la recibe y enaltece a quien la dispensa"(George Sand).

[3] Nas relações humanas, como na vida em geral, escutar é um ato de humildade: diz que as ideias dos demais são interessantes e importantes, que as nossas poderiam ser errôneas, que ainda nos falta muito por aprender. (K. Schulz)

[4] Referimo-nos, como não pode ser de outra maneira, ao sofrimento que afeta a seres humanos reais, indivíduos de carne e osso, cada um com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, com suas próprias emoções, necessidades e interesses, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, mirar e sofrer, “uno más uno más uno más uno más uno...”(J. Wark); «Tu, eu, miradas concretas». Reconheçamos: ninguém é «humano», «digno» e «igual» em abstrato. (Joseph de Maistre)

 

Imagem Ilustrativa do Post: Desigualdade // Foto de: Breno Menini // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/621YPx

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura